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A aplicabilidade do princípio da proteção integral no procedimento infracional

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Agenda 09/07/2018 às 14:33

Refletimos sobre o princípio da proteção integral como filosofia a ser seguida por todos os intérpretes e aplicadores do direito, inclusive quando o indivíduo sentado no banco dos acusados é criança ou adolescente.

Resumo: O presente trabalho pretende abordar o Princípio da Proteção Integral como filosofia a ser seguida por todos os intérpretes e aplicadores do Direito, de modo que as crianças e adolescente sejam reconhecidos como sujeitos de direitos principalmente no âmbito infracional, em que há risco de restrição e privação de determinados direitos na execução de medidas socioeducativas, em virtude da sua natureza impositiva, sancionatória e retributiva. Para uma análise crítica da utilização do Princípio da Proteção Integral no âmbito do procedimento infracional pelos Tribunais pátrios foi utilizada como parâmetro a recente decisão proferida no HC 346.380-SP pelo Superior Tribunal de Justiça.

Palavras-chaves: Princípio da Proteção Integral; medida socioeducativa; procedimento infracional 


1)    INTRODUÇÃO

A fragilidade das crianças e dos adolescentes é pressuposta, vez que são pessoas ainda em formação. Assim, o Princípio da Proteção Integral busca proteger esta parcela da população, conferindo direitos e privilégios que minorem tal condição. 

Os movimentos internacionais se ergueram diante das graves violações aos direitos das crianças e dos adolescentes, marginalizados pela comunidade adulta e entendidos como mero objeto desta, originando declarações e tratados internacionais, os quais elencam princípios, diretrizes e regras e impõem compromissos aos Estados-partes.

Inspirado nestes movimentos, o constituinte de 1988 positivou o Princípio da Proteção Integral, que mais tarde embasou o Estatuto da Criança e do Adolescente. Como em todo âmbito infanto-juvenil, no procedimento infracional, o princípio Proteção Integral deve nortear a interpretação e aplicação do direito, visto que trata-se de processo cujo resultado final, em regra, será aplicação de medida socioeducativa. 

O princípio em estudo dependerá, no âmbito infracional, do reconhecimento do Direito Penal Infanto-juvenil, uma vez que a resposta estatal se revelará na execução da medida socioeducativa, cuja natureza é punitiva e sancionatória, em que pese, com fim educativo. Apesar de já consagrada a Doutrina da Proteção Integral, ainda se observa, na práxis jurídica, a adoção de uma visão paternalista, apregoada pelo sistema tutelar, em que o magistrado age conforme sua convicção, sem observar os interesses do verdadeiro interessado, por vezes o relegando a mero objeto processual.

Assim, o presente estudo busca realizar uma análise crítica da utilização de princípios garantistas, em especial da Proteção Integral, nas decisões dos Tribunais pátrios, tendo como parâmetro a recente decisão no HC 346.380-SP, no qual o Superior Tribunal de Justiça entendeu ser possível a imediata execução da medida socioeducativa de internação decorrente de sentença de primeiro grau não transitada em julgado, ainda que o adolescente tenha permanecido em liberdade durante o procedimento. 


2) MANIFESTAÇÕES INTERNACIONAIS EM FAVOR DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

Ao longo da história, as crianças e adolescentes vieram a receber a paulatina atenção dos Estados na busca de instrumentos protetivos dos direitos que a eles eram atinentes. Pode-se dizer que são direitos relativamente novos se lembrarmos que, historicamente, esse público não era considerado titular de direitos, e sim, apenas como uma extensão da família ou uma expectativa para vida adulta. 

As crianças e adolescentes são titulares dos direitos humanos, até mais que os próprios adultos. São eles sujeitos de direito, que devem ser protegidos, uma vez que se trata de pessoas em desenvolvimento. A compreensão de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento foi uma construção gradativa. Essa é a atual compreensão da comunidade jurídica nacional e internacional. 

A primeira normativa internacional a garantir direitos e uma proteção integral às crianças e adolescentes foi a Declaração de Genebra de 1924 que determinava “a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial”. Esta Declaração foi feita pela União Internacional “Save Children”, contendo os princípios básicos de proteção à infância e trazendo a proposta de que os países deveriam pautar suas atividades de acordo com alguns preceitos básicos.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a Declaração foi ampliada e aprovada pela Assembleia da Sociedade das Nações (MACIEL, 2013).Desta feita, em 20 de novembro de 1959, a Assembléia Geral, órgão máximo da ONU, aprovou a Declaração Universal dos Direitos da Criança, contendo dez princípios, e aumentando assim, profundamente o direito dos menores.

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Assim, a Declaração dos Direitos da Criança foi um verdadeiro “Divisor de Águas” na nossa atual legislação de menores, visto que foi a pioneira em consolidar os direitos da criança e do adolescente, teoricamente dando a eles o apoio e a segurança de que tanto necessitavam, em razão de sua qualidade de pessoas em desenvolvimento. Insta mencionar que o Brasil é signatário desta declaração, assumindo internacionalmente o compromisso de garantir e efetivar todos os direitos da criança e do adolescente, efetivando o que mais tarde seria denominado de Doutrina da Proteção Integral.

A proteção integral dispensada à criança e ao adolescente encontra suas raízes mais próximas na Convenção sobre os direitos da Criança de Nova Iorque. Nesse sentido ensina Wilson Donizete Liberati que: 

"A nova teoria, baseada na teoria da total proteção dos direitos infanto-juvenis, tem seu alicerce jurídico e social na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, no dia 20.11.89. O Brasil adotou o texto, em sua totalidade, pelo Dec. 99.710, de 21.11.90, após ser ratificado pelo Congresso Nacional" (Dec. Legislativo 28, de 14.9.90). (Pág 16)

Insta mencionar que o texto da Convenção dispõe sobre o reconhecimento da dignidade a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (CHAVES, 1997). No que diz respeito à proteção integral da criança, em especial na aplicação de medidas socioeducativas, o artigo 40 da Convenção, em epígrafe, prevê que os Estados devem respeito aos direitos humanos e as garantias legais, tratando as crianças de modo apropriado ao seu bem estar. Vejamos a íntegra do Artigo 40:

Artigo 40.

1. Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança a quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse ou declare culpada de ter infringido as leis penais de ser tratada de modo a promover e estimular seu sentido de dignidade e de valor e a fortalecer o respeito da criança pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de terceiros, levando em consideração a idade da criança e a importância de se estimular sua reintegração e seu desempenho construtivo na sociedade.

2. Nesse sentido, e de acordo com as disposições pertinentes dos instrumentos internacionais, os Estados Partes assegurarão, em particular:

a) que não se alegue que nenhuma criança tenha infringido as leis penais, nem se acuse ou declare culpada nenhuma criança de ter infringido essas leis, por atos ou omissões que não eram proibidos pela legislação nacional ou pelo direito internacional no momento em que foram cometidos;

b) que toda criança de quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse de ter infringido essas leis goze, pelo menos, das seguintes garantias:

I) ser considerada inocente enquanto não for comprovada sua culpabilidade conforme a lei;

II) ser informada sem demora e diretamente ou, quando for o caso, por intermédio de seus pais ou de seus representantes legais, das acusações que pesam contra ela, e dispor de assistência jurídica ou outro tipo de assistência apropriada para a preparação e apresentação de sua defesa;

III) ter a causa decidida sem demora por autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial, em audiência justa conforme a lei, com assistência jurídica ou outra assistência e, a não ser que seja considerado contrário aos melhores interesses da criança, levando em consideração especialmente sua idade ou situação e a de seus pais ou representantes legais;

IV) não ser obrigada a testemunhar ou a se declarar culpada, e poder interrogar ou fazer com que sejam interrogadas as testemunhas de acusação bem como poder obter a participação e o interrogatório de testemunhas em sua defesa, em igualdade de condições;

V) se for decidido que infringiu as leis penais, ter essa decisão e qualquer medida imposta em decorrência da mesma submetidas a revisão por autoridade ou órgão judicial superior competente, independente e imparcial, de acordo com a lei;

VI) contar com a assistência gratuita de um intérprete caso a criança não compreenda ou fale o idioma utilizado;

VII) ter plenamente respeitada sua vida privada durante todas as fases do processo.

3. Os Estados Partes buscarão promover o estabelecimento de leis, procedimentos, autoridades e instituições específicas para as crianças de quem se alegue ter infringido as leis penais ou que sejam acusadas ou declaradas culpadas de tê-las infringido, e em particular:

a) o estabelecimento de uma idade mínima antes da qual se presumirá que a criança não tem capacidade para infringir as leis penais;

b) a adoção sempre que conveniente e desejável, de medidas para tratar dessas crianças sem recorrer a procedimentos judiciais, contando que sejam respeitados plenamente os direitos humanos e as garantias legais.

4. Diversas medidas, tais como ordens de guarda, orientação e supervisão, aconselhamento, liberdade vigiada, colocação em lares de adoção, programas de educação e formação profissional, bem como outras alternativas à internação em instituições, deverão estar disponíveis para garantir que as crianças sejam tratadas de modo apropriado ao seu bem-estar e de forma proporcional às circunstâncias e ao tipo do delito.

Como instrumento legal em âmbito internacional, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança é o de maior representatividade nas conquistas e direitos implementados em favor da infância e adolescência. 


3) A POSITIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL NO BRASIL

Do movimento internacional iniciam-se movimentos sociais no Brasil, em meados de 1980,  representativos do Direito da Criança e do Adolescente no cenário jurídico, diante da indignação com a realidade social vivenciada por crianças e adolescentes brasileiros violados na quase totalidade de sua cidadania. Acerca dos movimentos sociais em prol dos direitos da criança e do adolescente, Kátia Maciel destaca que

A conjuntura político-social vivida nos anos 1980, de resgate da democracia e busca desenfreada por direitos humanos, acrescida da pressão de organismos sociais nacionais e internacionais, levou o legislador constituinte a promulgar a “Constituição Cidadã” e nela foi assegurado com absoluta prioridade às crianças, adolescentes e ao jovem o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (Maciel, 2013)

Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988 é o marco legal do princípio da proteção integral da criança e do adolescente no Brasil, positivado, mais precisamente, em seu artigo 227. Senão vejamos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.             

Nas palavras de Antônio do Amaral e Silva e Munir Cury, “a Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história brasileira, aborda a questão da criança como prioridade absoluta, e a sua proteção é dever da família, da sociedade e do Estado”.

Ora, a principal mudança trazida pelo constituinte foi conceber a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, comuns e especiais, rompendo com a doutrina até então proclamada de que o menor era objeto de direitos do mundo adulto. Assim, analisa-se a criança e o adolescente como sujeito de direitos comuns a todos indivíduos e direitos especiais decorrentes da sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento físico e mental. Outra vez a Carta Magna rompe com os paradigmas anteriores e estabelece proteção especial à essa população vulnerável ao mundo adulto.

Nesse sentido o §3º do artigo 227 da Constituição da República:

§ 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII;

II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;

III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola;                      (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;

V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;

VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;

VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins.

No entanto, as disposições genéricas contidas na Constituição da República não foram suficientes para efetivar o princípio da proteção integral, necessitando de uma normativa voltada exclusivamente à criança e ao adolescente. Foi este o apelo da comunidade nacional e internacional, decorrentes das manifestações sobre os direitos da criança. Nessa direção afirma Munir Cury que: 

"Se é certo que a própria Constituição Federal proclamou a doutrina da proteção integral, revogando implicitamente a legislação em vigor na época, a Nação clamava por um texto infraconstitucional consoante com as conquistas da Carta Magna." (Cury, 2008)

Surge então o Estatuto da Criança e do Adolescente, sancionado pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, com entrada em vigor em 12 de outubro de 1990, pormenorizando os direitos da criança e do adolescente e os deveres da família, sociedade e Poder Público para assegurá-los. Insta mencionar que, desde os primeiros artigos, o Estatuto em epígrafe deixa transparecer sua base principiológica, qual seja, a proteção integral. Segue a íntegra dos artigos 1º e 3º.

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes a pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata a lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Ao longo do Estatuto da Criança e do Adolescente, os direitos previstos de forma genérica na Constituição Federal vão sendo afirmados e regulamentados, sempre com objetivo colocar os menores a salvo de toda forma de negligência, discriminação exploração, violência, crueldade e opressão.De maneira sistemática, o Estatuto em comento organiza seu texto de forma a dispor sobre os direitos fundamentais da criança e do adolescente no Título II.

São reconhecidos os seguintes direitos fundamentais: o direito à vida e à saúde (arts. 7º a 14), à liberdade, ao respeito e à dignidade (arts. 15 a 18), à convivência familiar e comunitária (arts. 19 a 52), à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer (arts. 53 a 59) e à profissionalização e à proteção no trabalho (arts. 60 a 69).

Além destes outros direitos e garantias podem ser elencados como por exemplo os direitos quando privado de liberdade (artigo 124), direitos processuais assegurado o devido processo legal  (artigo 110), e direitos individuais, difusos e coletivos (arts. 208 a 224). Sobre os direitos fundamentais da Criança e do Adolescente Paulo Lúcio Nogueira comenta que 

Tais direitos devem ser assegurados com absoluta prioridade, justamente em se tratando da criança e do adolescente, pela família, pela comunidade, pela sociedade e pelo Poder Público, devendo todos contribuir com sua parcela para o desenvolvimento e proteção integral do menor. (Nogueira, 1993)

O princípio da proteção integral não se trata de mais um princípio incorporado na legislação pátria a fim de acalmar os ânimos dos movimentos sociais sem, contudo, implementar os direitos dele decorrentes. Apesar de realidade fática estar em descompasso com a legislação menorista o princípio da proteção integral tem uma importante função, qual seja nortear a interpretação do Estatuto e demais leis em benefício dos menores, havendo a prevalência dos seus interesses, no que diz respeito às condições peculiares destas pessoas, ainda em desenvolvimento.Merece destaque os ensinamentos de  Roberto Elias que dispõe que

A ênfase que se dá à proteção integral é pertinente, pois não se pode pensar no menor apenas como alguém que precisa ser alimentado para sobreviver, como um simples animal. É deveras importante atentar para o seu desenvolvimento psíquico e psicológico. (Elias, 1994)

Sobre a autora
Amanda Louise Ribeiro da Luz

Defensora Pública do Estado do Espírito Santo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia. Especialista em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direito do Consumidor pela Universidade Leonardo Da Vinci – UNIASSELVI. Aprovada no concurso público para Defensor Público da Bahia. Aprovada no concurso público para Defensor Público do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUZ, Amanda Louise Ribeiro. A aplicabilidade do princípio da proteção integral no procedimento infracional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5486, 9 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66600. Acesso em: 21 nov. 2024.

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