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O crime de estupro de vulnerável e as alterações promovidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência

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Agenda 23/09/2019 às 15:33

4 COMPATIBILIDADE DO TIPO PENAL DE ESTUPRO E A CAPACIDADE CIVIL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Conforme já exposto, após a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência houve um divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que trouxe uma carga axiológica repleta de reconhecimento de direitos tendentes a quebrar paradigmas, gerando igualdade e propiciando ferramentas para a inclusão das pessoas com deficiência no contexto social.

Entre os direitos conferidos, salienta-se o reconhecimento daqueles relacionados à sexualidade da pessoa com deficiência, expressamente previstos nos artigos 6º, inciso II; 8º; 18, incisos VI e VII; e ainda, 85, §1º; todos da Lei de Inclusão à Pessoa com Deficiência.

Diante do reconhecimento de tais direitos e autonomia da pessoa com deficiência no tocante aos aspectos de sua vida sexual, surge o questionamento se essa independência retira a proteção trazida pelo artigo 217-A do Código Penal.

Na ótima penal, o reconhecimento da autonomia à sexualidade das pessoas com deficiência teria lhes tirado a condição de vulneráveis, deixando, assim, de classificá-las como vítima do estupro de vulnerável?

Verifica-se, a partir das disposições das duas normas, que a resposta é negativa. Isso porque, os efeitos da incapacidade devem ser proporcionais à exata medida da ausência do discernimento, a fim de que não se tolha, sob pretexto protetivo, a autonomia do sujeito, mas também não se o abandone desprotegido quando precisa desse manto protetor da lei (MENEZES, 2016).

Assim sendo, o objetivo da lei é o de preservar, ao máximo, a autonomia do deficiente, respeitadas as limitações do caso concreto. A regra é de que a curatela só atinja relações patrimoniais, logo, o curador não deverá interferir nas relações existenciais, preservando-se, assim, a autonomia e a dignidade do curatelado (FIUZA, 2015).

Ressalta-se que o Estatuto, diante do reconhecimento dos direitos sexuais à pessoa portadora de deficiência tornou expresso que tais pessoas também estão sujeitas a desejos, aspirações, vontades e necessidades típicos dos demais seres humanos, abrindo os olhos da sociedade para tal realidade (SANTOS, 2017).

Nesse contexto, avalia-se que as pessoas com deficiência devem-se atentar para a relatividade de sua vulnerabilidade. Para Cléber Couto (2015), a vulnerabilidade do portador de enfermidade ou deficiência mental, quando em razão disso, falta-lhe discernimento para a prática do ato, deve-se interpretar que o crime somente ocorrerá se a patologia que acomete a vítima retirar-lhe o necessário discernimento para a relação sexual. Logo, o crime só ocorrerá se provada a imaturidade biopsicoética, que afeta a livre determinação no plano das atividades sexuais.

Então, só se caracterizará o crime quando o agente conhecer e aproveitar-se da situação, pois não se pode impedir que aquele que possua deficiência ou enfermidade tenha o direito de amar e ter uma vida sexual (COUTO, 2015)

Denota-se que a capacidade de compreensão do deficiente, a partir da Lei de Inclusão, passa a ser visto como regra. De forma excepcional não estará presente, ensejando medidas protetivas legais nos mais diversos campos, inclusive o penal.

É necessária a compreensão de falta de discernimento como incapacidade de exprimir a própria vontade. Essa capacidade a própria vontade tem de satisfazer um requisito de validade, não é um conceito que se conforme apenas no plano físico, com emissão de palavras, gestos, entre outros. A vontade demonstrada com capacidade é a livre e consciente, livre de fraude, coação, erro, violência, etc., ou seja, a liberdade real é caracterizada por uma ação consciente e informada (PEREIRA, 2015).

Tratando-se de estupro de vulnerável, não se pune a relação sexual pelo simples fato de ter sido praticada com alguém nesta condição, como ocorre no caso do menor de quatorze anos. Caracteriza-se o crime se o agente mantiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, em virtude de enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para consentir com o ato. Dessa forma, ao contrário do que se verifica no caput, é imprescindível apurar no caso concreto se a pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental tinha ou não discernimento para a prática do ato (CUNHA, 2017).

Ainda, segundo Rogério Sanches (2017, p. 500):

O Estatuto da Pessoa com Deficiência em nada interfere na caracterização do crime de estupro de vulnerável, pois desde a edição da Lei 12.015/09, em que a presunção de violência foi extirpada do nosso ordenamento jurídico, é necessário apurar se a enfermidade ou a deficiência mental de que padeça alguém ocasiona a falta de discernimento. As disposições do art. 6° do Estatuto podem servir para reforçar a indicação do Código Penal, mas não há mudança substancial na incidência do tipo.

Logo, a vulnerabilidade não será analisada com base somente na existência de enfermidade ou doença mental, mas na autonomia da vontade da pessoa com deficiência. A partir disso, verifica-se a necessidade de uma interpretação compatível com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em consonância com as disposições legais previstas no Código Penal (SANTOS, 2017).

Demonstra-se que, embora a Lei de Inclusão tenha trazido a garantia de direitos subjetivos, como aqueles sexuais e reprodutivos, não importa dizer que o Código Penal produzirá interferências nos direitos assegurados aos indivíduos contemplados pela nova legislação. O exercício de tais direitos pressupõe que o deficiente tenha capacidade de entender as consequências dos atos praticados, não ocorrendo, então, com aqueles que tenham a consciência afetadas por alguma enfermidade, deficiência intelectual, ou ainda, que por causa transitória não possa oferecer resistência (CAPUCHO; SOUZA, 2018).

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O Tribunal de Minas Gerais tem adotado o posicionamento da análise do caso concreto para julgamento das causas. Extrai-se:

EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL – ESTUPRO DE VULNERÁVEL – VÍTIMA INTERDITADA – APLICAÇÃO DA LEI Nº 13.146/15 – RECONHECIMENT DE “ABOLITIO CRIMINIS” – ATIPICIDADE DA CONDUTA – IMPOSSIBILIDADE – RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.- O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15) em nada interfere na caracterização do crime de estupro de vulnerável, pois desde a edição da Lei nº 12.015/09, em que a presunção de violência foi extirpada do nosso ordenamento jurídico, é necessário apurar se a enfermidade ou a deficiência mental de que padeça alguém ocasiona a falta de discernimento.- As disposições do art. 6º do referido Estatuto podem servir para reforçar a indicação do Código Penal, mas não há mudança substancial na incidência do tipo, razão pela qual, não se trata, no caso em comento, de reconhecer o “abolitio criminis” (art. 217-A, §1º, do CP), tampouco a atipicidade da conduta do condenado. (TJMG – Agravo em Execução Penal 1.0637.14.001814-3/001, Relator(a): Des.(a) Wanderley Paiva, 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 06/12/2016, publicação da súmula em 25/01/2017) (MINAS GERAIS, 2017, grifou-se).

Ainda, já se posicionou o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro[7], que não havendo comprovação de que a vítima, à época do fato não possuía o necessário discernimento para a prática do ato, não está configurada a tipicidade do delito previsto no artigo 217-A, §1º, do Código Penal (RIO DE JANEIRO, 2017).

Nota-se que o Estatuto veio reforçar algo já trazido desde a vigência da Lei n. 12.015/09, em que a presunção de violência foi excluída do ordenamento jurídico brasileiro, gerando a necessidade de apurar se a deficiência mental ocasiona a falta de discernimento. Ausente tal discernimento, resta-se comprovada a incidência do tipo penal previsto pelo artigo 217-A do Código Penal (SOARES, 2017).

Assim, demonstra-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência teve repercussões na esfera penal, mas para tornar mais sólida a aplicação das proteções e garantias de direitos do portador de alguma enfermidade ou deficiência, adequando-se caso a caso, diante da realidade normativa que ainda traz inseguranças e incertezas quanto a sua aplicação (SOARES, 2017).

Verifica-se, diante do exposto, que incumbe aos operadores do Direito saber distinguir o portador de enfermidade ou deficiência mental, enquanto sujeito de direito e, assim, plenamente capaz de exercer atos da vida sexual, daquele em que a enfermidade lhe retire a consciência e discernimento, tornando-o vítima de exploração sexual.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência refletiu diretamente nas incapacidades adotadas pela codificação civil, fazendo com que, atualmente, haja apenas uma causa de incapacidade absoluta, dizendo respeito apenas ao fator etário.

Frente à deficiência, a capacidade será a regra, podendo ser relativizada em alguns casos excepcionais. Referida alteração gerou questionamentos quanto à proteção trazida pelo Código Penal, no que diz respeito ao crime de estupro de vulnerável, ao dispor que o enfermo ou deficiente mental tem plena capacidade para exercer atos da vida civil, inclusive sexuais. Discutiu-se desde logo a incompatibilidade entre as duas normas, gerando entraves quanto à aplicação tanto da proteção legal trazida pelo Código Penal, quanto à liberdade inaugurada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Contudo, tal incompatibilidade é meramente aparente, pois a Lei n. 12.015/09 desde então deixava claro a necessidade de se apurar concretamente o discernimento necessário para a prática dos atos sexuais. A capacidade trazida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência em nada interferiu na tipificação do Estupro de Vulnerável, tampouco retirou a proteção do portador de enfermidade ou deficiência.

Logo, deverá ser feita uma análise a cada caso concreto, a fim de se verificar o discernimento da vítima para posterior caracterização do delito. Assim, a pessoa com deficiência terá livremente o exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos sem perder a proteção penal quando se encontrar em estado de vulnerabilidade.


REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Art. 3o  São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. 

Art. 4o  São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;  II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos.

[2] Art. 84.  A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

[3] § 1o  Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.

[4] Art. 1.783-A.  A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.                         (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015)        (Vigência)

[5] Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima: (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)

a) não é maior de catorze anos; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)

b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009);

c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência. 

[6] Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.   

[7] TJ-RS – APL: 00057972620148190045 RJ 0005797-26.2014.8.19.0045, Relator: DES. JOAQUIM DOMINGOS DE ALMEIDA NETO, Data de Julgamento: 10/12/2015, SÉTIMA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 17/12/2015 14:00.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VEDANA, Paola C.. O crime de estupro de vulnerável e as alterações promovidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5927, 23 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67057. Acesso em: 22 nov. 2024.

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