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Tutelas de urgência no direito ambiental do trabalho: preservação da vida dos trabalhadores

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A ponderação de interesses:  direito à vida versus direito ao livre exercício da iniciativa privada. A lógica da conciliação a todo custo.

Nos casos envolvendo pedidos de suspensão judicial de interdições ou embargos, o que normalmente se vê é a utilização da técnica da ponderação de interesses, onde o direito fundamental à vida (inserido no rol dos Direitos Humanos) está sendo sopesado com o direito ao livre exercício da iniciativa privada. Contudo, entendemos que esta lógica conciliatória parece estar sendo objeto de abuso hermenêutico.

Se não é possível a renúncia ou transação conciliatória de direitos individuais, por força do artigo 9º da CLT, em se tratando de direito eminentemente difuso, como o direito ao meio ambiente hígido, a renúncia ou transação apresenta-se ainda mais proibitiva.

Reina na Justiça do Trabalho, porém, a ideia de conciliação, uma tradição que precisa ser analisada criticamente, à luz dos próprios objetivos e princípios de justiça. Sistemáticas pesquisas têm demonstrado que essa estratégia conciliatória representa uma solução precária entre as partes envolvidas, sem qualquer efeito ex ante (pedagógico) perante os demais empregadores, e tem como consequência a perpetuação do mesmo comportamento empresarial e não uma evolução natural para o caminho da legalidade (FILGUEIRAS, 2012, SOUZA, 2013, 2014, FILGUEIRAS, LIMA JUNIOR, 2015).

O que está por trás desta lógica, no nosso sentir, é a submissão tácita ao que se considera o inexorável poder patronal, sendo que este decide quando e como contratar/degradar; como e quando dispensar, regulando ainda todas as etapas da dependência econômica do trabalhador; antes, durante e depois de sua admissão.

Os argumentos adotados em decisões que seguem a lógica aqui exposta parecem corroborar esse direito potestativo empresarial, quando reafirmam que o Poder Judiciário não pode paralisar atividades econômicas potencialmente perigosas, sob pena de demissões coletivas.[20] Supõem, de forma equivocada, que demissões coletivas não podem ser obstadas pela Justiça do Trabalho, quando já existem inúmeros precedentes, inclusive do TST, asseverando a possibilidade de reversão de dispensas em massa.

A propósito,  a lógica de impossibilidade de paralisar determinada atividade para evitar “demissões” não pode ser argumento a ser considerado diante de graves ilícitos que colocam em risco a vida e a saúde do trabalhador, pois em ilícitos estranhos à esfera trabalhista (alguns de gravidade muito inferior, que sequer chega a afetar direitos fundamentais, como alguns ilícitos tributários), de natureza civil e/ou o Judiciário não costuma flexibilizar as interdições administrativas sob o argumento de inviabilizar a atividade econômica do infrator. Não se tem notícias, por exemplo, da liberação judicial de ônibus, caminhões, táxis retidos por autoridades de trânsito ou de estabelecimentos interditados por órgãos sanitários sob o pretexto de evitar desemprego ou sob pretexto de garantir livre exercício de atividade econômica.

Nesse sentido, a jurisprudência da Justiça Comum é implacável. Cite-se, a título ilustrativo, o seguinte julgado:

MATADOURO PÚBLICO - CONDIÇÕES SANITÁRIAS DEFICIENTES - HIGIENE NÃO OBSERVADA - INTERDIÇÃO NECESSÁRIA - ALEGAÇÃO DE CONSEQUÊNCIAS PARA A MUNICIPALIDADE - DESEMPREGO E CRISE NO ABASTECIMENTO- SAÚDE - PREVALÊNCIA DO INTERESSE PÚBLICO MAIOR. As ações e serviços de saúde são de relevância pública, por isso ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e controle do poder público. Havendo conflito de interesses públicos, com prova de que o matadouro municipal se encontra em péssima condição de conservação, sendo os animais abatidos sem qualquer fiscalização, em detrimento de condições de higiene e sem prévio exame do animal a ser abatido, deve ser deferida a liminar de interdição até que o município tome as medidas necessárias para afastar o risco a que a saúde pública está exposta, mesmo em detrimento do abastecimento da população e com consequência de desemprego. No conflito de princípios e interesses públicos, deve ser privilegiado o interesse maior da saúde e aquele que leva a uma solução e não aquele que mantém o problema. Cabe a responsabilidade ao município em regularizar rapidamente o problema para resguardar todos os bens em conflito. (TJMG. AGRAVO Nº 1.0522.06.020765-4/001 - Rela. Desa. Vanessa Verdolim Hudson Andrade).

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A respeito, bem observam SCIENZA e RODRIGUES (2016) que normalmente a maior flexibilidade apresentada pelo Judiciário em relação a interdições motivadas por risco de lesões a trabalhadores se explica pela falta de identificação do aplicador do direito com as potencias vítimas das lesões. Ao passo que violações ambientais, sanitárias ou de tráfego podem atingir qualquer um, violações trabalhistas tem rol de vítimas restrito aos trabalhadores envolvidos na atividade.

O limite de flexibilização nas decisões judiciais já nos foi dado de antemão pela Constituição da República, quando se efetiva o direito à vida, à melhoria das condições de trabalho e ao meio ambiente hígido, sendo extremamente temerário transpor esta fronteira quando estamos a lidar com a saúde e a vida das pessoas. Afinal, o cumprimento da lei não pode ser flexibilizado em prol de valores outros, reputados como axiologicamente superiores pelas corporações (ou pelo Judiciário), sob pena de restar autorizado, implicitamente, o sacrifício de vidas humanas em prol do almejado incremento da margem de lucro. Se o cumprimento da lei não for minimamente literal, descamba-se para um arbítrio, que em outro momento pode voltar-se contra o próprio empregador.[21]


Falso dilema entre interdição judicial e violação ao princípio da livre iniciativa ou geração de empregos.

A Justiça do Trabalho, no nosso sentir, tem que se acostumar com alegações empresariais de lamento que asseveram a iminência falimentar ou extenso prejuízo econômico, não podendo o Judiciário se impressionar com a dramaticidade exposta em determinadas petições,[22] competindo-lhes balizar corretamente o valor da vida e da saúde em confronto com o direito à iniciativa empresarial.

Compete-lhe, ainda, entender que vivemos numa sociedade capitalista, e que por isso não será buscando o consenso do infrator que as condições ambientais de trabalho vão melhorar. Ao revés, seria salutar que o Poder Judiciário Trabalhista criasse um ambiente de segurança jurídica para as empresas cumpridoras da lei, no sentido de que não vão enfrentar concorrência espúria, e forjasse, por consequência, uma etapa fundamental para preservar a vida dos trabalhadores.

Em suma, a frequência dessas medidas acautelatórias deve ser proporcional às precárias condições de saúde e segurança proporcionadas. Sendo o Brasil pródigo em acidentes, forçosa a multiplicação de comportamentos deste jaez. A política “conciliatória” promovida há décadas retoricamente como orientadora e educativa é unilateral, pois concilia com interesses empresariais, mas não com a efetividade da legislação.

Noutro passo, se a atividade produtiva, no nosso País, exige mutilação e morte exclusiva de trabalhadores – jamais dos empregadores, ressaltamos – algo precisa ser repensado, e as interdições judiciais ou administrativas servem justamente a esta reflexão. Atividades potencialmente lesivas devem ser suspensas para que a direção e administração da empresa, de forma refletida e ponderada, articule ideias e atitudes que façam com que a atividade econômica se adeque à legislação para preservação da higidez dos seus obreiros. E isto vale tanto para pequenos empreendimentos – como marmorarias com índices altíssimo de mortalidade – quanto para barragens da grandiosidade de Belo Monte.

Tais medidas preventivas, fruto exclusivo do cumprimento da lei, não irão causar demissões coletivas ou transferência de empresas para outras localidades – comunidades onde supostamente a precarização é possível. Diga-se que não há registro histórico destas previsões, afinal a Fiscalização do Trabalho interdita e embarga milhares de empresas todos os anos, e nenhuma delas encerrou suas atividades até hoje (FILGUEIRAS, 2014) por causa da aplicação do Princípio da Precaução ambiental. Mas, ainda que houvesse um bailout massivo, o Estado Brasileiro tem que deixar claro qual é o patamar mínimo necessário para a sobrevivência do empreendimento econômico, não tolerando barganhas com a saúde humana, ainda que em troca de um benefício financeiro que diz respeito tão somente aos proprietários e acionistas (mas não aos trabalhadores ou à sociedade como um todo).

É natural, e até mesmo esperado, que empregadores tentem forçar os limites da regulação do Estado, infringindo as Normas Regulamentadoras protetivas acima referidas. O que causa surpresa é tão somente que esta precarização ambiental seja corroborada por decisões judiciais.

O Poder Judiciário não tem a prerrogativa de criar empregos e nem de preservá-los ad aeternum. Somente haverá demanda na contratação de trabalhadores se houver quem possa adquirir estes produtos ou serviços que são por eles produzidos, ou seja, um mercado comprador. O que pode a Justiça é apenas conferir alguma dignidade àqueles que tem a necessidade de trabalhar para aferir renda. Logo, decisões judiciais não podem, a priori, aumentar ou diminuir o nível de emprego. Esta política pública somente pode ser realizada pelo Poder Executivo, com medidas de estímulo ou desestímulo a determinadas atividades, caracterizadas como políticas macroeconômicas, como cambial, fiscal e monetária.

Não cabe ao Judiciário Trabalhista promover a defesa de empreendimentos que não estão atendendo à sua função social.[23][24] Também não há ameaça à manutenção dos postos de trabalho, seja porque, a despeito de alguns comportamentos destoantes, há um grande quantitativo de empregadores que respeitam a legislação cujas atividades não necessitam ser paralisadas, seja porque os fatores determinantes da manutenção da atividade empresarial estão na expectativa de sua margem de lucro que é fixada por condicionantes exógenas (demanda de mercadorias pelo mercado consumidor) e não pelos custos do trabalho.


Interdição/embargo por meio de provimento jurisdicional

Frisamos aqui que o Judiciário pode não apenas convalidar os embargos e interdições efetivados pelos auditores do Ministério do Trabalho, mas pode, ele mesmo, quando provocado, engendrar a efetivação dos Princípios da Prevenção e da Precaução.

A possibilidade de interdição judicial de atividades nocivas está prevista no art. 11 da Lei n. 7347/95: “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor”.

Com efeito, em sede de tutela de urgência em ações civis públicas, com fundamento nos arts. 11 e 12 da Lei n.º 7.347/85, cabe ainda a interdição ou embargo, como medida de natureza cautelar, até que seja comprovada nos autos a regularização da irregularidades que deram ensejo à medida de urgência.

A respeito, oportuno sublinhar o entendimento firmado no Enunciado n. 60 da Jornada de Direito Material e Processual do Tribunal Superior do Trabalho:    

60. DE ESTABELECIMENTO E AFINS.  AÇÃO DIRETA NA JUSTIÇA DO TRABALHO. REPARTIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA.  I – A interdição de estabelecimento, setor de serviço,  máquina ou equipamento, assim como o embargo de  obra (artigo 161 da CLT), podem ser requeridos na Justiça do Trabalho (artigo 114, I e VII, da CRFB), em sede principal ou cautelar, pelo Ministério Público do Trabalho, pelo sindicato profissional (artigo 8º, III, da CRFB)  ou por qualquer legitimado específico para a tutela judicial coletiva em matéria labor-ambiental (artigos 1º, I,  5º, e 21 da Lei 7.347/85), independentemente da instância administrativa.  II – Em tais hipóteses, a medida poderá ser deferida [a]  “inaudita altera parte”, em havendo laudo técnico preliminar ou prova prévia igualmente convincente; [b] após audiência de justificação prévia (artigo 12, caput, da Lei  7.347/85), caso não haja laudo técnico preliminar, mas  seja verossímil a alegação, invertendo-se o ônus da  prova, à luz da teoria da repartição dinâmica, para incumbir à empresa a demonstração das boas condições  de segurança e do controle de riscos.      

Ainda que não houvesse previsão normativa expressa na Lei n. 7.347/85, comportaria a concessão da medida com base no poder geral de cautela estabelecido no Código de Processo Civil de 1973, em seu art. 798. Agora, com a vigência do Novo Código de Processo Civil (CPC/2015), a disciplina normativa para a concessão da medida de urgência de natureza cautelar, como a ora em tela, é ainda mais clara:

Art. 294A tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidência.

Parágrafo único.A tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada, pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental.

Art. 297O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória.

Parágrafo único.A efetivação da tutela provisória observará as normas referentes ao cumprimento provisório da sentença, no que couber.

Demonstrado, por meio de elementos probatórios, ainda que indiciários, a “condição ou situação de trabalho que possa causar acidente ou doença relacionada ao trabalho com lesão grave à integridade física do trabalhador” (definição de grave e iminente risco contida na NR 3), ou seja, o fumus boni iuris, o perigo da demora não apenas é presumível, é consequência natural óbvia, pois a conduta (comissiva ou omissiva) que cria “grave e iminente risco”, como a própria expressão já diz, gera o acintoso risco de morte, esfacelamento do corpo ou adoecimento agudo do trabalhador, o que caracteriza a urgência da medida interventiva.

Desta forma, a Justiça do Trabalho tem papel fundamental nesta relação, podendo, por meio de suas decisões, promover a regulação da vida das pessoas, constituindo-se assim, em elemento central de regulação de todos os bens juridicos envolvidos de forma concomitante, como a concorrência, o mercado de trabalho, o meio ambiente e, inclusive, a vida.

Contudo, a Justiça precisa encarar o problema de frente, o que não implica qualquer radicalismo; pelo contrário, apenas a promoção de padrões mínimos previstos literalmente em lei e em total consonância com a Carta Magna e regulamentos internacionais.

É certo que as demais instituições podem promover a defesa do meio ambiente do trabalho diretamente, como é o caso do Ministério do Trabalho (e a omissão dos seus agentes sujeita seus agentes à respectiva responsabilização administrativa e civil), mas a colaboração da Justiça neste enfrentamento é fundamental.

Sobre os autores
Ilan Fonseca de Souza

Procurador do Trabalho na 5ª Região (Bahia), Especialista em Processo Civil, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia.

ANDRÉ MAGALHÃES PESSOA

Procurador do Trabalho, Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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