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Georreferenciamento:

histórico e questões já nem tão controversas

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Agenda 28/05/2005 às 00:00

A auto-regulação e o georreferenciamento

Como percebido, um nó górdio do sistema registral é a desconcentração normativa. Ao mesmo tempo que é necessária e útil para atender as demandas e necessidades locais e sobretudo a fiscalização dos atos praticados por notários e registradores, é extremamente penosa quando se trata de assuntos que extrapolam os limites de uma circunscrição.

Temos, assim como na questão trazida à balha, outras, cujos efeitos da decisão normativa local ora vinculam um registrador imobiliário e não o outro, de Comarca diversa, que também deverá qualificar o mesmo título, ou ora criam ao usuário do sistema uma insegurança quanto ao posicionamento do registrador de cada Comarca, de tal forma que se pode ir a uma Comarca vizinha e se ter um tratamento completamente diferente acerca da mesma matéria, enquanto não decidido em órgão central.

Cientes das dificuldades inerentes ao sistema em questões de grande relevância, temos que o Encontro de Araraquara, realizado nos dias 09, 10 e 11 de julho de 2004, aflorou uma firme convicção na classe registrária paulista: se somos Profissionais do Direito, nos termos preceituados pela Lei, devemos estar aptos a dar soluções aos problemas, e não apenas apontar estes. E, institucionalmente, se os problemas afetam de maneira inequívoca o conjunto da atividade – e no caso do georreferenciamento, o conjunto da sociedade –, temos de estar aptos a responder as demandas dos usuários com a presteza de soluções que estes esperam.

Conquanto seja cômodo entregar ao juízo Corregedor Permanente a decisão de toda e qualquer matéria controversa, o fato é que os paradigmas mudaram. O que não mudou, talvez, seja nossa forma de olhar a atividade registrária. Muitos de nós ainda a vemos como atividade meramente formal, onde a capacidade pensante fica restrita àquilo que é incontesti, seja porque a Lei é clara, seja porque as decisões dão suporte a prática do ato.

Decidindo matéria relacionada a parcelamento irregular do solo, já decidiu o Colendo Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo:

" A qualificação registrária não é um simples processo mecânico, chancelador dos atos já praticados, mas parte, isso sim, de uma análise lógica, voltada para a perquirição da compatibilidade entre os assentamentos registrários e os títulos causais (judiciais ou extrajudiciais), sempre feita à luz das normas cogentes em vigor (ApCiv 72.365-0/7, em 15/02/2001)" (destaque nosso).

A questão ali era atinente à correição da qualificação negativa procedida pelo registrador, em quadro em que vislumbrava, por elementos objetivos, a ocorrência de fraude à Lei do Parcelamento do Solo.

Entretanto, possível vislumbrar naquela decisão a leitura de que a qualificação positiva também não seja mero ato mecânico, praticado somente sob o cômodo manto da decisão judicial ou da inequívoca e manifesta vontade da Lei.

Das melhores revoluções ocorridas no Estado de São Paulo, temos como sendo uma a seqüência de concursos, a garantir que em cada Serventia Notarial ou Registral se encontre um titular apto a exercer as funções que lhe exigem a Lei Federal 8.935/94, em especial esta, de Profissional do Direito. Devem os registradores, independentemente da discussão de se a qualificação é meramente formal ou adentra em aspectos de direito material, e sem que esse seja o foco, atuar com os instrumentos que o Direito disponibiliza, não somente para o enquadramento de uma qualificação negativa, mas também para a consecução de uma qualificação positiva.

Fazer e saber porque fazer é importante. Ao mesmo tempo, trabalhar com espírito institucional se faz mister, justamente para atender os anseios do destinatário final dos serviços: o cidadão.

Temas como o georreferenciamento e suas hipóteses de cabimento não podem e não devem, por obrigação legal do agente delegado de atuar com eficiência e presteza e proceder de forma a dignificar a função (artigo 30, incisos II e V, da Lei Federal 8.935/94), ficar ao sabor do tempo, nem sempre senhor da razão.

Aquele que se nega a assumir sua qualidade de Profissional do Direito e permanece com atuação mecânica anda em descompasso da dignidade esperada do Registrador no exercício de sua atividade.

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Com esse ânimo e essa atitude, os debates virtuais dos registradores paulistas integrantes do e-group "outorgadelegações", que culminaram com o Encontro de Araraquara, organizado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, geraram uma certeza: é possível auto-regulamentar matérias que vão de prática dos atos à cobrança de custas sem a constante turbação dos órgãos censores, devendo os registradores a estes se dirigir em casos específicos, onde há dúvida fundada e de conteúdo localizado.

O georreferenciamento e suas conseqüências está enquadrado dentro daquelas matérias que, pela extensão e complexidade, se formos discutir tópico por tópico em expedientes de dúvida ou administrativos, certamente teremos grandes dificuldades de harmonização, seja pelo controle desconcentrado a que nos referimos e que remete muitas vezes a distintas decisões, seja pela dificuldade em se plantear a discussão centralizadamente.

O Encontro de Araraquara serviu como base para esta lição, e dali surgiram posições efetivamente institucionais, mas que ainda demandaram um maior nível de discussão para um posicionamento firme dos registradores. Tanto quanto mais seguimos uma orientação institucional, mais estamos próximos de uma qualitativa auto-regulação, a dizer, próximos de decidirmos o como proceder em matérias controversas tendo como beneficiário final o usuário dos serviços.

Evidente que, sujeitos que estamos ao poder censório e normativo, se uma matéria vem a ser auto-regulada de uma forma e posteriormente sobrevêm decisão normativa em sentido contrário, devemos seguir esta, até mesmo face o contido no artigo 30, inciso XIV da Lei Federal 8.935/94.

Entretanto, se a auto-regulação é fruto de um debate profundo e com fundamentos jurídicos e/ou principiológicos sólidos, creio devamos seguir a orientação institucional em quadro de inexistência de normativa.

Como fruto daquele Encontro, tivemos dúvidas posteriores que foram depuradas em um debate franco e que vieram a ser sanadas de maneira inequívoca no Encontro de Londrina, também promovido pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, realizado nos dias 05, 06 e 07 de maio de 2005. Cremos, dentro do espírito de defender a auto-regulação institucional, não devam prevalecer as opiniões pessoais, mas uma orientação que reproduza o pensamento registrário.

Dentro dessa ótica, vamos trabalhar adiante alguns temas polêmicos, e conquanto por vezes não demonstrem nossa opinião pessoal, a conclusão será aquela adotada institucionalmente. Por derradeiro, trataremos de duas hipóteses (alienação fiduciária de bem imóvel e atos societários), sob a nossa ótica, conquanto o assunto tenha sido objeto de debate, mas não de deliberação.

Vamos, a seguir, abordar tópico por tópico questões controversas, e que devem merecer a especial atenção dos registradores.


HIPOTECA E O GEORREFERENCIAMENTO

A questão da hipoteca ganhou especial relevância graças a sua função econômica, de instrumento de garantia para circulação do crédito, notadamente o rural, via de regra constituída pelo registro de cédulas rurais.

A leitura e aplicação direta do parágrafo 2º do artigo 10 do Decreto 4.449/2002 poderiam levar a um travamento dos negócios imobiliários envolvendo imóveis rurais e uma limitação da circulação do crédito, com conseqüências danosas ao produtor e ao conjunto de pessoas que vivem em função da produção agrícola.

Lido com a frieza do texto constante do Decreto, significaria inviabilizar, sobretudo a partir de outubro de 2005, um dos pilares da economia do Brasil: o setor agrícola.

Como consectários imediatos, podemos imaginar a menor concessão de crédito, a queda dos investimentos, com repercussão imediata na diminuição da produção, do emprego, da circulação de alimentos e da exportação.

Não se conformavam os registradores em entender ser essa a vontade do Estado. E isso por uma análise conjuntural: reforma-se a ordem tributária, reoordena-se o papel do Estado-Juiz, retirando-o das questões que envolvem meramente interesses patrimoniais de partes maiores e capazes, criam-se melhores mecanismos de execução imobiliária, fomenta-se tal crédito, aumentam-se as parcerias bilaterais, fortalecem-se as exportações, e tudo isso com vistas a travar a partir de outubro de 2005 o mercado rural? Não, com certeza os registradores sabiam não ser essa a vontade do Estado.

Com o georreferenciamento, a vontade primeira era a de dar substância física ao crédito imobiliário garantido por hipoteca de imóvel rural.

Não está longe da lembrança, as terras sobrepostas encontradas em alguns Estados do país. Essa sobreposição criava uma existência jurídica ao que não existia de fato. Uma vez dada existência matricial ao imóvel sobreposto, este estava pronto para ser colocado no mercado, tanto para alienação, como para garantia.

O problema da sobreposição somente surgiria, via de regra, ao se buscar a tomada da posse do bem imóvel ou já na fase de arrematação decorrente de execução da dívida hipotecária. Naqueles momentos se percebia que o que se tinha por direito não existia no campo fático.

Não se predispõe esse trabalho a analisar as causas da existência das sobreposições, mas sim a demonstrar que o georreferenciamento veio no sentido de evitar que tais situações perdurassem ou voltassem a ocorrer. Purifica-se a propriedade imobiliária determinando seu objeto, e se põe em circulação bem certo e determinado.

Como conseqüência, determina-se o território nacional, com a seqüência de atos de georreferenciamento, notadamente se no futuro estendido aos limites urbanos. Mas aqui já é outra questão.

Pois bem. Dentro dessa visão econômico-social-conjuntural do país, não se poderia compreender como desligada dessa realidade a redação do parágrafo 2º do artigo 10 do Decreto 4.449/2002, ora transcrito:

"Parágrafo 2º Após os prazos assinalados nos incisos I a IV, fica defeso ao oficial de registro de imóveis a prática de quaisquer atos registrais envolvendo imóveis rurais de que tratam aqueles incisos, até que seja feita a identificação do imóvel na forma prevista neste Decreto." (destaque nosso)

A primeira leitura justificadora do limitado alcance deste parágrafo foi feita pelo notável 3º registrador paulistano, Doutor George Takeda, lembrando regra básica de que o parágrafo deve ser lido dentro do contexto do caput do artigo em que inserido. E está com a razão quando assim o afirma, somente podendo ser entendido que os atos de desmembramento, parcelamento, remembramento e transferência é que efetivamente estão vedados.

Mas surge a segunda questão problemática decorrente justamente do ato de transferência previsto no artigo 10 do Decreto 4.449/2002: reza o artigo 1.420, segunda parte, do Código Civil Brasileiro que " só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca ". (destaque nosso)

A questão que se tornou complexa e foi alvo de franco e produtivo debate entre os registradores era: o bem imóvel rural, após os prazos previstos no georreferenciamento e que impõem a obrigatoriedade deste para as hipóteses de transferência, são inalienáveis?

Se a resposta é positiva, não há como se fugir da vedação imposta pela segunda parte do artigo 1.420 do Código Civil Brasileiro.

Entretanto, há que se ponderar que esse artigo, notadamente em sua segunda parte, é voltada à inalienabilidade "stricto sensu", ou seja, àquela que efetivamente existe por imposição legal ou decorrente da vontade.

A Lei que implementou o georreferenciamento não criou nova forma de inalienabilidade; apenas trouxe ao cenário jurídico uma obrigação de ordem administrativa, com finalidade não de retirar o bem do mercado, tornado-o inalienável, como ocorre, via de regra, com as indisponibilidades e as garantias hipotecárias cedulares, por exemplo, mas sim de depurar o imóvel, visando pelo cumprimento de um ato administrativo (certificação de memorial descritivo junto ao INCRA), evitar a sobreposição.

A determinação normativa é feita com vistas a evitar que voluntariamente o proprietário de uma terra rural dela se desfaça sem antes cumprir a exigência administrativa. Enquanto seu fim não for se desonerar do bem, nada impede que ele postergue a prática do ato de georreferenciamento e tire o proveito econômico-social da propriedade, diga-se de passagem, em plena concordância com a finalidade prevista para a mesma em nossa Constituição Federal.

A ordem não era e não poderia ser dirigida a quaisquer terceiros que eventualmente contratem com o proprietário da terra. Somente aquele terceiro que deseje adquirir determinada área rural ficará sob o aguardo do cumprimento da restrição imposta ao titular de domínio. Ainda assim, não estará direcionada a orientação administrativa ao terceiro-adquirente, mas ao titular de domínio, que certamente terá dificuldades para alienar seu bem pelo preço justo de mercado e de maneira formalmente correta.

Em outras palavras, não se deu características de inalienabilidade ao bem, mas de restrição de caráter administrativo, sem o condão claro e incontestável de retirar o imóvel rural do mercado.

Se a restrição é visando à disposição voluntária do bem, nada impede seja o imóvel dado em garantia hipotecária mesmo após expirados os prazos, pois em tal situação, ou paga-se o crédito e se cancela o registro hipotecário, ou ingressa em mora o devedor e a alienação não se dará por vontade sua, mas por força de mandamento judicial, a dizer, a alienação será forçada, e não voluntária. Qualquer espírito fraudador da norma poderá ser percebido em juízo, se houver, esporadicamente, ânimo de fraude entre devedor e credor.

Dessa forma, a conclusão chegada pelos registradores, notadamente após longo período de debate, é acertada no sentido de se viabilizar o registro da hipoteca sem vinculação ao prévio georreferenciamento.


AUTOS JUDICIAIS E O GEORREFERENCIAMENTO

Aqui também já está pacificada a questão pelos registradores. A necessidade de observância do georreferenciamento nos autos judiciais que versem sobre imóveis rurais decorre de previsão expressa contida no artigo 225, parágrafo 3º, da Lei Federal 6.015/73.

Uma leitura ampla realmente é de todo inadequada, pois evidente que o georreferenciamento aqui deve ser exigido naqueles autos judiciais cujo objeto central da demanda é o imóvel. Assim é possível vislumbrar a necessidade de georreferenciamento em autos de ação de usucapião e retificação de área, por exemplo, diferentemente ocorrendo com as hipóteses em que o imóvel rural não é o centro do processado.

Em verdade, essa disposição está ligada à origem do georreferenciamento. Em alguns Estados brasileiros, onde a sobreposição foi verificada com maior freqüência, em diversos casos se verificou que sua origem não raras vezes estava na incorreta prestação de informações levadas a expedientes de retificação de área e de usucapião, tendo os vícios contaminados os mandados que por sua vez ganharam a publicidade registrária.

A intenção aqui se torna mais patente quando se verifica a disposição do artigo 3º, parágrafo primeiro, do Decreto 4.449/2002, lembrando-se o Executivo tão somente da hipótese de usucapião. Isto porque a usucapião, por ser aquisição originária, teria o condão de extirpar os vícios do imóvel.

Já não se pode dizer o mesmo, como veremos, da transmissão causa mortis ou de alienação forçada, pois o centro da demanda não é o imóvel, que é afetado reflexamente pelo objeto central da ação.

Exigível, portanto, o georreferenciamento, somente nas hipóteses em que o imóvel for o objeto central da ação judicial.

Sobre o autor
Emanuel Costa Santos

2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Araraquara, Estado de São Paulo, coordenou o 19º Encontro Regional do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, realizado em Araraquara – SP, em julho de 2004, tendo como tema central o georreferenciamento de imóveis rurais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Emanuel Costa. Georreferenciamento:: histórico e questões já nem tão controversas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 692, 28 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6780. Acesso em: 23 nov. 2024.

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