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A intervenção do Estado contra a prática do cartel nas revendas de combustíveis

Agenda 21/09/2018 às 14:10

Será analisada a possibilidade da intervenção do Estado na autonomia privada com o fito de combater a prática do cartel em distribuidoras de combustíveis e a dificuldade dos órgãos competentes para investigar e punir os estabelecimentos que o praticam.

Introdução

A Constituição da República em seu artigo 170, parágrafo único [1], prevê o livre exercício de qualquer atividade econômica, prescindindo de qualquer autorização de órgãos públicos, exceto em casos legalmente previstos.

Já em seu artigo 174 [2], é atribuído ao Estado o exercício das funções de fiscalização, incentivo e planejamento, bem como impõe ao Poder Público a condição de agente normativo e regulador da atividade econômica.

Em consequencia dessas atribuições, o Estado pode, ao mesmo tempo, atuar e intervir na economia.

Importante distinguir a atuação estatal da intervenção estatal. A primeira se refere a qualquer tipo de participação do Estado no domínio econômico, seja prestando serviços públicos, ou constituindo empresas estatais para explorar a atividade econômica ou também para regular, de forma indireta, o desenvolvimento de quaisquer atividades econômicas. A segunda se refere às formas indiretas de atuação do Estado no domínio econômico ou quando explórasse diretamente atividade econômica de titularidade privada, mas seu uso mais corriqueiro é utilizado para representar qualquer maneira do Estado participar, intervir ou atuar no domínio econômico.

Tal diferenciação é assim explicitada por Fabiano Del Masso [3]:

“Preferimos utilizar a expressão atuação do Estado como uma maneira geral de se referir a todas as formas pelas quais o Estado pode desenvolver alguma maneira de participação ou de pelo menos influenciar a atividade econômica. Entendemos que o Estado atua quando participa desenvolvendo diretamente atividade econômica de sua titularidade ou intervém na de titularidade privada e também quando intervém indiretamente na prática de atividade econômica de atividade privada. Assim, o termo intervenção, com rigor, deveria ser utilizado apenas quando o Estado regula determinado mercado, sem atuar ou participar diretamente de atividade econômica de sua titularidade”.

Conclui-se, assim, que o Estado intervém no domínio econômico (privado) distintamente do modo que intervém no seu próprio domínio (domínio público).

Esta atuação do Estado no domínio econômico pode ocorrer de várias maneiras, sendo as principais: limitação da autonomia privada, pelo seu poder de polícia; prestação de serviços públicos; regulação econômica; e exploração direta da atividade econômica. A primeira será objeto da presente análise.


Limitação da Autonomia Privada para combater a prática ilícita do cartel em distribuidoras de combustíveis

O intervencionismo estatal sempre existiu na atividade econômica, seja de forma direta ou indireta. Esta última ocorre quando o Estado regula, fiscaliza, incentiva, normatiza e planeja sua atuação na atividade privada. A intervenção indireta é necessária para que a economia seja direcionada ao cumprimento dos objetivos do Estado brasileiro.

Para que se atinja o cumprimento desses objetivos, o Estado se utiliza basicamente de sua atribuição fiscalizadora (prevista no art. 174, CF supracitado).

Como bem salienta Fabiano Del Masso [4], a fiscalização estatal opera como “uma forma de acompanhamento do desenvolvimento de atividade econômica por intermédio dos agentes econômicos para que se constate se algumas das bases fixadas na Constituição, o que se fez por intermédio da estipulação de princípios, estão sendo relegadas”.

Interpretando sucintamente a excelente explicação do autor, fiscalizar significa observar o cumprimento das regras e princípios impostos.

Como exemplo dessa fiscalização do Estado, cita-se o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE)[5], autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça, que tem como objetivo orientar, fiscalizar, prevenir e apurar abusos do poder econômico, exercendo papel tutelador da prevenção e repressão do mesmo.

O CADE, após a instituição da Lei nº 12.529/2011 [6], foi estruturado pelos órgãos: (a) Tribunal Administrativo de Defesa Econômica; (b) Superintendência-Geral; e (c) Departamento de Estudos Econômicos.

Entre as competências do Plenário do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica está a de decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei (art. 9º, II, da Lei nº 12.529/2011).

Isso porque, consta, na Constituição, como um dos fundamentos do Estado, os valores sociais da livre iniciativa. Esta permite o acesso de qualquer pessoa aos mercados para a produção de mercadorias e serviços. Com a livre iniciativa, a concorrência formada gera a necessidade de desenvolvimento de estratégias competitivas, uma vez que a presença de vários ofertantes desencadeará a necessidade de os agentes econômicos se tornarem mais eficientes.

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Com a busca por maior eficiência tem-se, como consequência, a produção de produtos de maior qualidade e de baixo custo. Esta concorrência entre ofertantes tem como finalidade principal impedir as práticas de abuso de poder ou atos de deslealdade.

Entretanto, existem várias práticas que não se coadunam com o fundamento da livre iniciativa e para se evitar que tais abusos ocorram indistintamente, o Estado se utiliza do seu poder normatizador e regulador para criar normas que prevejam penas para aqueles que praticam infrações relacionadas a tais abusos.

Entre tais práticas, cita-se o cartel que é um acordo explícito ou implícito entre concorrentes para, principalmente, fixação de preços ou cotas de produção, divisão de clientes ou de mercados de atuação, ou ainda, por meio da ação coordenada entre os participantes, eliminar a concorrência e aumentar os preços dos produtos, obtendo maiores lucros, em prejuízo do mercado competitivo.

O principal motivo da chamada cartelização é a obtenção de vantagens idênticas às do monopólio, quais sejam, a maximização dos lucros e a eliminação de concorrentes indesejáveis.

Os cartéis, em regra, desenvolvem-se na clandestinidade, não resultando de nenhum ato formal ou escrito.

Um dos maiores exemplos da prática de cartel e que está em grande evidência hodiernamente é a realizada pelas distribuidoras de combustíveis (popularmente conhecidos como postos de gasolina).

Não é difícil avistar, em qualquer cidade brasileira, preços semelhantes em diversos postos de combustíveis, inclusive nas casas decimais de centavos. Até mesmo em eventuais “promoções” realizadas pelas distribuidoras os preços dos concorrentes permanecem iguais.

Por tais práticas se tornarem cada vez mais ordinárias, mais denúncias foram realizadas, possibilitando a atuação do Estado, por meio de seus órgãos fiscalizadores juntamente com os Ministérios Públicos Estaduais.

Muitas penalidades já foram impostas em diversos estados brasileiros por conta da prática de cartel no mercado de revenda de combustíveis. Para citar um exemplo, em Manaus, no ano de 2011, após operação realizada pela Polícia Federal (operação Carvão), foram condenados 13 (treze) empresários donos de postos de combustíveis pela prática de cartel.

Entretanto, tal operação não dizimou a prática, a qual continua ocorrendo constantemente em todo território nacional.

Isso porque, a imensa maioria das investigações era arquivada. A esse insucesso podem ser arrolados três fatores primordiais.

O primeiro devido a um problema informacional, em virtude de que as denúncias oferecidas não consubstanciavam embasamento legal mínimo para iniciar uma investigação.

Com efeito, por não haver embasamento substancial, ocasionava apenas punições mínimas aos infratores, de modo a incentivar a geração e a continuidade de arranjos colusivos no mercado de revenda de combustíveis.

O indício utilizado como base nas denúncias da prática de cartel é a existência de preços semelhantes nos distribuidores. Todavia, a despeito de configurar indício de prática abusiva e contrária à concorrência e à livre iniciativa, o mero paralelismo de preços entre postos de gasolina não é, por si só, suficiente para a tipificação da conduta ilegal, nos termos da lei antitruste.

A Lei Antitruste (12.529/2011) prevê em seu Título V as Infrações da Ordem Econômica, bem como as penas e o direito de ação daqueles que se sintam prejudicados [7].

O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC utiliza filtros econômicos para averiguar possíveis cartéis, observando três dados: (a) a evolução da margem de revenda do município no tempo; (b) a relação entre a evolução dessa margem e a variabilidade dos preços; e (c) a evolução das variáveis municipais frente a variáveis médias estaduais [8].

O segundo fator é a correção linear entre a margem de revenda e o coeficiente de variação dos preços de revenda. Quando essa correlação for negativa, haverá cartel, uma vez que o aumento de margem e uma grande adesão ao preço combinado resultam num cartel bem sucedido.

O último fator relatado para o insucesso das investigações relaciona-se a variação de preços dentro de um município e a variação de preços dentro do estado. Isso porque se a variação do primeiro acompanhar a variação do segundo, não haverá indício de cartel.

Dessarte, é preciso que haja prova direta do acordo entre os revendedores de combustíveis para que se possa garantir uma futura condenação. Apenas com os indícios citados é extremamente difícil a caracterização da prática abusiva.

A despeito de toda a dificuldade e dispêndio nas investigações, em informações do Ministério Público do Estado de São Paulo [9], há, atualmente, mais de 150 (cento e cinquenta) investigações relativas as setor de revenda de combustíveis, sendo muitas delas, ainda em fase sigilosa. Nos últimos anos, houve crescente operação entre as autoridades criminais e administrativas para garantir o efetivo combate a cartéis.

Vários casos têm sido julgados, ainda em instâncias inferiores, tendo os tribunais decidindo, além de imputações penais pelas infrações cometidas, dano moral por ofensa aos consumidores lesados.


Conclusão

Portanto, como já mencionado, ao impor e dar efeitos as normas de repressão ao abuso do poder econômico, abre-se espaço ao mercado concorrencial, que não existe licitamente se não houver concorrência e não for livre a iniciativa dos entes exploradores, tendo os seus direitos tutelados tanto pelo órgãos do Poder Executivo como também pelos órgãos do Poder Judiciário.

Por fim, há de se reconhecer que algumas normas regulatórias, que tratam das relações verticais entre distribuidores e revendedores de combustíveis, precisam ser avaliadas por meio de uma interação entre a autoridade antitruste e a autoridade regulatória (visando a uma atuação complementar), de modo a afastar qualquer lacuna normativa que propicie a formação de cartel no mercado.


Notas

1 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

Parágrafo Único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

2 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para p setor privado.

3 MASSO, Fabiano Del. Direito Econômico Esquematizado/Fabiano Del Masso – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p.79

4 Op. Cit. p. 101

5 Art. 4º, da Lei nº 12.529/2011. O Cade é entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional, que se constitui em autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal, e competências previstas nesta Lei.

6 Art. 5o  O Cade é constituído pelos seguintes órgãos: 

I - Tribunal Administrativo de Defesa Econômica; 

II - Superintendência-Geral; e 

III - Departamento de Estudos Econômicos.

7 Art. 36.  Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: 

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; 

II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; 

III - aumentar arbitrariamente os lucros; e 

IV - exercer de forma abusiva posição dominante. 

§ 1o  A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II do caput deste artigo. 

§ 2o  Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.  

§ 3o  As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: 

I - acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: 

a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente; 

b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços; 

c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos; 

d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública; 

II - promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes; 

III - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado; 

IV - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços; 

V - impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição; 

VI - exigir ou conceder exclusividade para divulgação de publicidade nos meios de comunicação de massa; 

VII - utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de terceiros; 

VIII - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição; 

IX - impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes preços de revenda, descontos, condições de pagamento, quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros; 

X - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços; 

XI - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais; 

XII - dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais; 

XIII - destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los ou transportá-los; 

XIV - açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia; 

XV - vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo; 

XVI - reter bens de produção ou de consumo, exceto para garantir a cobertura dos custos de produção; 

XVII - cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada;  

XVIII - subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem; e 

XIX - exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca. 

8 Ministério da Justiça. RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert; SILVA, Rutelly Marques da. Aspectos Econômicos e Jurídicos sobre Cartéis na Revenda de Combustíveis: Uma Agenda para Investigações. Brasília:  http://portal.mj.gov.br. Acesso em 28/5/2016.

9 http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Cartilhas/CarteisRevendaCombustiveis.pdf

Sobre o autor
Adriano Cézar Lins Carlos

Advogado, atualmente atuando como Assessor de Defensor Público na Defensoria Pública do Estado do Amazonas. Pós-graduado em Processo Civil e Pós-graduando em Direito Público. Atuei como estagiário e Técnico Administrativo na PGM-Manaus e como Residente Jurídico na PGE-AM. Experiência em Escritório de Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARLOS, Adriano Cézar Lins. A intervenção do Estado contra a prática do cartel nas revendas de combustíveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5560, 21 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68096. Acesso em: 22 dez. 2024.

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