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O instituto da delação premiada e sua validação constitucional

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Agenda 18/10/2018 às 08:35

4. DELAÇÃO PREMIADA E SUA CONSTITUCIONALIDADE

O presente capítulo é o objetivo principal deste estudo. Tal verificação é indispensável para que se saiba se esse instituto encontra guarita no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no âmbito do direito processual constitucional na vertente da tutela constitucional do processo que “[...] é matéria atinente à teoria geral do processo [...] em sua dúplice configuração: a) direito de acesso à justiça (ou direito de ação e de defesa); b) direito ao processo (ou garantias do devido processo legal).” (CINTRA, 2010, p. 86).

Mas a delação premiada também exprime a ideia de que o estado foi ineficiente e a investigação pode ser abreviada, bastando, para isso, o Estado obter auxílio, com a oferta de um prêmio ao delator, que é diretamente interessado no desfecho do processo, por um sistema de trocas. E a discussão sobre a constitucionalidade processual criminal da delação premiada ganha principal interesse, porque “[...] se de um lado há a ideia [sic] de trazer um indivíduo acusado de um crime a atuar como auxiliar da justiça na punição de seus co-autores [sic], por outro lado há um ataque aos princípios fundamentais sobre os quais se estrutura o Estado Democrático de Direito”. (TASSE, 2006, p. 270).

4.1 A moral e a moralidade administrativa na delação premiada

A moral pode ser conceituada como “um conjunto de normas e regras destinadas a regular as relações dos indivíduos de uma comunidade social dada”. (VASQUÉS, 1969, p. 25). A delação, que possui um cunho de traição, por quebrar o vínculo de confiança entre o denunciante e o denunciado, é vista na sociedade como algo imoral, ao passo que muitos doutrinadores também não vêm com bons olhos o instituto, sendo que não seria justo dar um novo emprego, identidade ou domicílio de um delator.

Mas o direito é valorativo, podendo comportar diversos entendimentos e a racionalidade, apesar de balizar vários valores humanos, não é por si só um elemento que justifica uma imposição limitativa ao direito, e nesse mesmo sentido há o entendimento de que existe um mínimo ético necessário à vida em sociedade onde é exigido que as relações humanas sejam adaptadas às normas jurídicas e às normas morais.

De outra banda, outra parte da doutrina permite certa flexibilização da aplicação da moral, apesar de a delação premiada, que apresenta um conteúdo moral suspeito, pode ser aceita em um determinado ordenamento jurídico, bastando para isso, entender que a moral, aplicada ao mundo real, deve ser adequada às necessidades humanas.

A delação premiada está baseada “[...] na mais pura ética e moral e ainda, é de essência puramente pedagógica, pois ensina que não há nada de mal em se arrepender de erros passados, bem como em tentar reparar ofensas feitas à sociedade [...]”. (GUIDI, 2006, p. 22-23).

Em virtude de o instituto da delação premiada beneficiar o Estado, deve-se lembrar o princípio da moralidade administrativa, previsto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 37, caput, o qual informa que todas as esferas da administração pública obedecerão, dentre outros princípios, ao da moralidade para a tomada de suas decisões. Mas não é só a administração pública que deve seguir e respeitar este princípio, e sim também o particular ao se relacionar com o Estado, e o ato administrativo “não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto [...]”. (MEIRELLES, 2009, p. 90).

Existem os que defendem que a delação premiada é revestida de imoralidade, pela quebra da confiança, desagregando a sociedade a ordem constitucional instituída. Mas não levaram em conta que a própria investigação criminal, por muitas vezes, é iniciada por uma delação advinda de qualquer pessoa do povo, conforme autorização disposta no Código de Processo Penal em seu artigo 5º, parágrafo 3º. Tal direito é a figura do “delatio criminis”, em sede da qual, qualquer do povo, na condição de membro da sociedade (ameaçada ou lesada pelo crime), colabora com as autoridades públicas, fornecendo informações sobre um delito. Aqui está um fato de que o Estado se utiliza da delação como meio para se iniciar um processo criminal.

As distinções existentes entre a delação premiada e a delatio criminis residem no fato de aquela exigir que o agente assuma sua culpa pela infração penal e de que será concedido um benefício penal pela efetiva colaboração. Mas existe quem defenda que não se pode aceitar que o Estado incentive a prática de atos imorais, dentre os quais se insere a delação, como forma de atenuar ou excluir a pena de envolvidos na prática de certas infrações penais, assim como que feita a delação por qualquer um, é imoral não sendo bem vista pela sociedade e muito menos pelo delatado.

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Ademais, em Brasil (2016), há no ordenamento jurídico a obrigação da delação prevista no artigo 116 da Lei nº 8.112 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União), que foi instituído com o dever do servidor público de transmitir ao superior qualquer tipo de irregularidade que tiver ciência em razão do cargo; em caso de descumprimento, estará o servidor público sujeito à penalidade administrativa de advertência respondendo também pelo crime de condescendência criminosa, que está assim tipificado no Código Penal, em seu artigo 320.

Conforme visto, a legislação brasileira considera como moralmente correta a delação feita por um funcionário público por ser relevante à administração pública. E para o Estado é difícil aceitar a delação como sendo algo imoral, pois se utiliza deste instituto tanto para proteger a sociedade quanto para apurar irregularidades dentro de suas repartições.

4.2 Respeito à dignidade da pessoa humana na delação premiada

A discussão da moralidade da delação premiada abre o questionamento quanto ao respeito da dignidade da pessoa humana, pois, a delação não inclui socialmente o criminoso, já que valoriza a traição, tratando o homem como coisa que negocia com sua própria torpeza, reduzindo o delator como um mero meio de prova com um preço a se pagar que é a redução da própria pena. E essa negociação feita pelo Estado é amoral, ferindo o fundamento constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana, visto que a delação é a busca da verdade através da barganha da liberdade do delator.

Já em outro caminho, “a delação, por si só, ensejaria o despertar sobre aquele que ‘praticou a má ação de um sentimento de arrependimento e de reversão da postura de colisão com os valores negados com a ação ilícita”. (AZEVEDO, 1999, p. 06). Assim sendo, a delação é uma forma de o agente criminoso reparar os danos já causados à sociedade, agindo assim pelo direito e fazendo jus ao benefício previsto na legislação que trata da delação premiada.

A dignidade da pessoa humana constitui-se em “um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais [...]”. (MORAES, 2009, p. 22).

Ao permitir que o agente criminoso delate seus comparsas, o Estado está limitando a abrangência do fundamento da dignidade da pessoa humana. Mas, essa limitação ocorre de forma restrita e excepcional, já que na delação premiada, que se trata de uma situação extraordinária, não é incentivado a denunciação pelo Estado, pois nem todos os indivíduos são aptos a delatar, visto ser exigida do delator a participação na conduta criminosa e também que ele voluntariamente assuma sua culpa, exigências essas que, por si sós, reduzem a atuação desse instituto.

O instituto da delação premiada a todo o momento coloca em xeque a dignidade da pessoa humana, pois, o agente criminoso, que delata os outros comparsas, em virtude de seu arrependimento, passa a trair a si próprio, pois ele denega o objetivo original de sua conduta que é a criminalidade, “[...] passando a aceitar o castigo a que esteja sujeito e fica insatisfeito consigo mesmo pela violação da lei, estando disposto a não mais fazê-lo, bem como de reparar o dano causado assumindo posição de colaboração para com o Estado”. (GUIDI, 2006, p. 150).

Na delação premiada, o delator está em busca de algo mais valioso, não se apegando nos riscos de sua conduta ao delatar, permitindo assim relativizar eventual perda da dignidade humana. Dessa forma, o delator arrependido, utiliza-se da delação visando auxiliar o Estado na elucidação dos fatos, privilegiando a justiça acima de qualquer outro sentimento.

4.3 Devido processo legal na delação premiada

Em Brasil (2016), a Constituição Federal de 1988 no artigo 5º, incisos LIV e LV, assegura aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, garantindo ainda que nenhum indivíduo tenha sua liberdade privada sem o devido processo legal. Este direito fundamental amplo aborda várias garantias constitucionais, que asseguram às partes de um processo o exercício de seus direitos e faculdades processuais, bem como para o correto exercício da jurisdição (dizer o direito).

4.3.1 Sigilo na delação premiada X o princípio da publicidade

 Como lembra Guidi (2006), durante as investigações preliminares na fase judicial, o delatado não pode ter conhecimento da delação para evitar que ele intimide testemunhas, destrua provas e vestígios. Em razão disto, para se preservar o delator, o acordo não pode constar no processo ou ser utilizado como prova no mesmo.

 Mas impedir que o delatado tenha acesso ao acordo de delação, além de infringir os princípios da ampla defesa e do contraditório, viola o princípio da publicidade, que garante a todos que os atos administrativos sejam públicos e que os agentes públicos, o juiz que preside o processo no caso da delação premiada, tenham seus atos fiscalizados por toda a sociedade.

Todavia, o sigilo dos atos processuais da delação premiada encontra suporte na Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso LX, o qual diz que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. (BRASIL, 2016, p. 27). E neste mesmo artigo, no inciso XXXIII, traz os casos as informações são restringidas, “[...] ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. (BRASIL, 2016, p. 26).

No caso da delação premiada ocorre uma colisão de direitos fundamentais, onde por um lado está a publicidade dos atos processuais e por outro a possibilidade do sigilo dos acordos de delação, com possível violação da ampla defesa e do contraditório do delatado.

Moraes (2009) lembra que o conflito de dois ou mais direitos ou garantias fundamentais deve ser resolvido evitando-se que ocorra a inaplicabilidade completa de todos eles, devendo ser proporcionalmente reduzida a abrangência de cada um dos direitos ou garantias em desacordo para que a interpretação da Constituição esteja em concordância com o correto sentido de seus princípios. Dessa forma os bens jurídicos devem ser coordenados e combinados para que se chegue a uma harmonização da aplicação da Constituição Federal.

Manter o sigilo temporário da delação premiada traz várias situações que Moraes (2009) aborda, como dar efetividade às diligências nas investigações preliminares é importante para a segurança do delator, garante também a defesa da intimidade do delatado, pois, a divulgação prematura de uma denúncia falsa, sem a devida confirmação, pode acabar com a honra de uma pessoa, violando para ela o fundamento da dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à integridade da imagem, sendo esses tutelados constitucionalmente.

Outro ponto controverso é o fato de o acordo de delação premiada ter o sigilo decretado, tornando-o inacessível ao delatado, violando, assim, o exercício da ampla defesa do acusado, pois inexiste a possibilidade de se defender, e contraditar, o que não está a ele acessível. Esse aspecto é importante, pois, o delatado se defende de fatos que estão no processo, sendo impedido tão somente de ter acesso ao acordo de delação que tão somente importa ao delator. E independentemente do conteúdo desse tratado, caso ele não venha ao processo e não seja contraditado, não poderá esse acordo ser utilizado como meio de prova em desfavor do delatado.

Tal situação está prevista na Constituição Federal no artigo 93, inciso IX, que exige que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas, sob pena de nulidade (BRASIL, 2016, p. 38). Portanto, caso o juiz fundamente a sentença condenatória com base em um documento secreto, deverá esta ser anulada pela violação do princípio da publicidade. O delatado demonstrando eventual prejuízo causado pelo conteúdo sigiloso existente no acordo de delação, pode requerer ao Poder Judiciário para que esse seja afastado, pois é obvio que o sigilo da delação premiada não possui força suficiente para superar o princípio constitucional da garantia da ampla defesa.

4.3.2 Direito ao silêncio na delação premiada

Em Brasil (2016), a Constituição Federal institui no artigo 5º, inciso LXIII, que o preso tem o direito de permanecer em silêncio, pela aplicação do princípio da não autoincriminação, dando a ele a garantia de não gerar provas contra si próprio. Ocorre que na delação premiada, uma das exigências é a de que o delator assuma sua culpa, relativamente aos crimes que pretende delatar. E “[...] não há que se negar que, diante da possibilidade de obtenção do prêmio estatal, o indivíduo tem sua liberdade vulnerada, restando compelido a cooperar com o desenvolvimento da atividade empreendida pelo Estado.” (CARVALHO, 2009, p. 114). Então, ao se firmar o acordo de delação, não deverá ser omitido do delator a informação que a delação deve ser livre e consciente existindo para ele o direito de permanecer em silêncio, esclarecido por advogado ou autoridade de que não tem o dever de cooperar.

Junto a isso, deverá ser esclarecido ao delator que o auxílio tem que ser efetivo, que para a concessão do benefício da delação premiada, posteriormente, o magistrado analisará o real auxílio da delação para a instrução processual, bem como a inclusão do delator em programa de proteção. O acordo deve ser submetido à homologação judicial para que se verifique a inexistência de qualquer vício que o macule.

A inobservância desses esclarecimentos gera nulidade processual, devendo ser excluídas do processo todas as provas anteriores que foram obtidas com a delação, e também as provas posteriores dela derivadas. Portanto, o acusado ao delatar tem duas possibilidades: manter-se em silêncio ou auxiliar nas investigações; e, optando por essa última, determina para ele a renúncia ao direito de não se autoincriminar, mas, abre-se para ele o direito de receber dos benefícios atrelados à delação premiada.

Carvalho (2009) ensina que o princípio da não autoincriminação prepondera sobre o acordo de delação premiada, já que o delator, que também é coautor do delito delatado, durante o interrogatório pode não confirmar o teor da delação, invocando seu o direito ao silêncio. Tal atitude é possível, pois, a renúncia a esse direito no acordo de delação não é absoluta, pois se trata de direito fundamental amparado pela Constituição Federal.

Sobre o autor
Ricardo Werner Friedrich

Graduado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e advogado atuante na Comarca de Santa Cruz do Sul/RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDRICH, Ricardo Werner. O instituto da delação premiada e sua validação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5587, 18 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68107. Acesso em: 23 dez. 2024.

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