4 ANÁLISE DO CONTEXTO SÓCIOECONÔMICO: BRASIL E ALEMANHA
Após analisado o contexto jurídico do problema, a seguir, faremos breves relatos acerca das diferenças do contexto socioeconômico entre Brasil e Alemanha, que devem nortear o estudo do instituto da Reserva do Possível e justificar a adaptação no momento de aplicação pelo Poder Judiciário.
Enquanto a Alemanha ocupa o 5º lugar no Ranking do Índice de Desenvolvimento Humano[22] (IDH) 2013, com IDH de 0.92 e renda nacional bruta per capita de $ 35.431, o Brasil se encontra em 85º lugar, com IDH de 0.75 e renda nacional bruta per capita – $ 10.152.
Em questão de educação, a taxa de analfabetismo[23] na Alemanha é estimada em 1%, enquanto no Brasil, beira a 9%.
Não é que se defenda a não aplicação do instituto, ocorre que o contexto em que surgira condiz com a realidade daquele país, de forma que, ao trazê-la para a situação aqui existente, é justo que se faça adequações, pois um mero recorte não se encaixaria, uma vez que o Estado social brasileiro está muito aquém do Estado social alemão, como demonstram os dados acima.
Assim, deve-se moldar o instituto, porém, de forma coerente, pois na Alemanha, o Estado oferece tantos benefícios quantos possíveis e há alto grau de efetivação dos direitos sociais, enquanto no Brasil, não se dispõe sequer o mínimo essencial.
O mínimo essencial, em contraposição à reserva do possível, é um núcleo de direitos mínimos necessários a uma existência condigna. São prestações positivas por parte do Estado, consideradas substanciais para uma vida digna, com um mínimo de respeitabilidade e para que se possa exercer a liberdade, tais como alimentação, saúde, educação, moradia, etc.
Assim, não há que falar em utilização de Reserva do Possível em um Estado não oferece sequer o mínimo essencial ao cidadão que o mantém através da contribuição e outorga de poderes, e, para piorar, utiliza-se de tal instituto para se imiscuir de uma obrigação constitucional.
Toma-se, como exemplo, ainda, a Alemanha que, entre os países com maior grau de retorno tributário está na 14ª posição, enquanto o Brasil figura entre os piores[24] na relação arrecadação/retorno, pois muito arrecada e pouco devolve através de efetivação de direitos sociais. Atualmente, ocupa o 30º lugar[25].
Por isso, defende-se, neste trabalho, a ideia de que um Estado que gaste mais de 40% a dívida pública[26], não pode alegar falta de recursos quando, em comparação com os gastos com saúde, dispõe apenas 8,7%[27] de seu orçamento para a saúde.
“A taxa é inversamente proporcional à de muitos países ricos e de alguns emergentes, em que a maior parte dos investimentos na saúde é feita pelos governos, como é o caso da Noruega (86%), Luxemburgo (84%), Grã-Bretanha (83%) e Japão (80%), além de Turquia (75%), Colômbia (74%) e Uruguai (68%)”, diz Luís Guilherme Barrucho, colunista da BBC Brasil em São Paulo.
Veja-se parte de uma matéria sobre orçamentos na revista Último Segundo[28]:
O diretor do IPEA indica que em países desenvolvidos, especialmente na Europa, a média de investimento em saúde varia entre 6% e 7% do PIB, sendo a maior parte concentrada nos gastos públicos. No Brasil, a média global é de 6,8% do PIB, considerando que estados, municípios e União respondem por 3%. “O investimento privado aqui é maior e esse é o problema, porque a maior parte da população não pode pagar e isso gera desigualdade de acesso”, avalia.
Ainda em outro estudo[29]:
No exercício 2012/2013, orçamento federal foi cerca de R$ 2,276 tri, sendo que R$ 79 bi foram para a saúde e R$ 38 bi para educação, representando 6,9% e 3,3%, respectivamente, do total das despesas primárias (de R$ 1,1 tri).
Em Países com boa qualidade de educação e saúde esse percentual bate em 20% a 40%.
A Constituição federal determina que os investimentos mínimos em educação e saúde sejam de 25% e 12%, respectivamente. Mas, como vimos, gastamos 3,3% e 6,9% respectivamente.
Ou seja, não estamos defendendo, aqui, a não aplicação da reserva do possível, ao contrário, deve-se, sim, aplicá-la, mas com cautela e intensa ponderação, para que este instituto que é deveras importante e, por que não dizer?, um avanço para a democracia, não seja banalizado, como tem ocorrido, pois nas mãos de um governo mau intencionado, torna-se um forte bloqueio para o cumprimento de suas obrigações, mas, nas mãos de um Poder Judiciário maduro e sábio, pode ser um bom instrumento de gestão orçamentária e boa uma forma de controle das exigências desproporcionais e desarrazoadas do cidadão e da própria sociedade.
5 CONCLUSÃO
Portanto, a aplicação inicial da reserva do possível não teve como finalidade servir de argumento para que o Estado negue a efetivação de direitos sociais dos cidadãos; e sim, numa rasa análise, evitar que seja obrigado a prover atividades ou serviços, de forma não razoável para cidadãos específicos, evitando tratamento desigual entre os administrados.
O que se pode perceber, no cenário jurídico atual, é um movimento de banalização na utilização do princípio. Muito embora existam julgados que se atenham a sua essência original, ainda é possível se vislumbrar um equívoco interpretativo por parte da doutrina pátria, o que acaba por desaguar numa jurisprudência que, por muitas vezes, permite ao Estado se furtar de sua obrigação de efetivar garantias constitucionais sob o véu da reserva do possível.
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Notas
[1] Paulo Bonavides adota o termo ‘gerações’, já Pedro Lenza, prefere o termo ‘dimensões’.
[2] BVerfGE é a abreviação de Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts (decisões do Tribunal Constitucional Federal).
[3] No original: Artikel 12 [Berufsfreiheit] (1) Alle Deutschen haben das Recht, Beruf, Arbeitsplatz und Ausbildungs- stätte frei zu wählen. Die Berufsausübung kann durch Gesetz oder auf Grund eines Gesetzes geregelt werden.
[4] Decisão consultada em Schwabe, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Organização e introdução por Leonardo Martins. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 656-667. Para conferir no idioma original, v.http://www.servat.unibe.ch/dfr/bv033303.html.
[5] Schwabe, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, p. 663. No original: “(...) stehen sie doch unter dem Vorbehalt des Möglichen im Sinne dessen, was der Einzelne vernünftigerweise von der Gesellschaft beanspruchen kann”.
[6] Aqui serão empregados indistintamente os termos razoavelmente e racionalmente, sem nos atermos ao conceito técnico de razoabilidade como “compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como à aferição da legitimidade dos fins”. SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In Revista dos Tribunais, n. 798, 2002, p. 32.
[7] Schwabe, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, p. 664 apud FALSARELLA, Christiane, “A reserva do possível como aquilo que é razoável se exigir do Estado”.
[8] Schwabe, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, p. 666. Sobre proporcionalidade, v. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. Acerca da distinção entre razoabilidade e proporcionalidade, consultar SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, p. 23 a 50 apud FALSARELLA, Christiane, “A reserva do possível como aquilo que é razoável se exigir do Estado”.
[9] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
[10] Oliveira, Rafael Sérgio Lima de. Calil, Mário Lúcio Garcez (2008), “Reserva do possível, natureza jurídica e mínimo essencial: paradigmas para uma definição”. Pesquisado em 02/02/2014 <www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/11_369.pdf>.
[11] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.
[12] Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2001. p. 49-50.
[13] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
[14] JÚNIOR, américo Bedê Freire, “o controle judicial de políticas públicas no Brasil”; FDV, Faculdades de Vitória, Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais, 2004.
[15] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.
[16] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.
[17] ARE 639337 AgR/SP. AG.REG. no Recurso Extraordinário com Agravo.
Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento: 23/08/2011, AGTE.: município de São Paulo, AGDO.: Ministério Público do Estado de São Paulo.
[18] RE 271286 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/09/2000, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJ 24-11-2000 PP-00101 EMENT VOL-02013-07 PP-01409
[19] REsp Nº 1.185.474 – SC, Relator Ministro Humberto Martins.
[20] Apud MARINHO, Tiago de Lima, Direito à saúde e o Supremo Tribunal Federal: mudanças de posicionamento quanto ao fornecimento de medicamentos. Conteúdo Jurídico; Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13813#_ftn17. Acesso em: 11 jun. 2014.
[21] Apud Filho, José Cláudio Carneiro, A reserva do financeiramente possível e seus paradigmas.
[22] ESTADÃO DADOS. Disponível em: <http://blog.estadaodados.com/ranking-do-indice-de-desenvolvimento-humano-idh-2013/>. Acesso em 13 de agosto de 2014.
[23] SUA PESQUISA. Disponível em <http://www.suapesquisa.com/paises/alemanha/>. Acesso em 13 de agosto de 2014.
[24] CENÁRIO MT. Disponível em <http://www.cenariomt.com.br/noticia/317028/brasil-tem-a-12a-maior-carga-tributaria-do-mundo-e-o-pior-retorno-a-populacao.html> Acesso em 13 de ago de 2014.
[25] O POVO. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/politica/2012/01/24/noticiaspoliticas,2772726/entre-30-paises-com-maior-carga-tributaria-do-mundo-brasil-da-menor-retorno-a-populacao.shtml Acesso em 13 de ago de 2014.
[26] IHU. Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/513556-orcamento-federal-de-2013-42-vai-para-a-divida-publica-entrevista-especial-com-maria-lucia-fattorelli> Acesso em 13 de ago de 2014.
[27] BBC. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/04/130402_saude_gastos_publicos_lgb.shtml Acesso em 13 de ago de 2014.
[28] ULTIMO SEGUNDO. Disponível em <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2012-09-06/saude-executa-apenas-50-orcamento-de-2012.html> Acesso em 13 de ago de 2014.
[29] CASA DO BRINCAR. Disponível em < http://www.casadobrincar.com.br/site/como-sao-os-gastos-do-governo-federal-com-a-copa-saude-e-educacao-no-brasil/> Acesso em 13 de ago de 2014