4 FASE DE SELEÇÃO: A CONSOLIDAÇÃO DA REGRA DO CHAMAMENTO PÚBLICO
Como sabido, a lamentável perda da confiança pública nas instituições e a criminalização das OSCs decorreram, em grande parte, de denúncias e escândalos de casos isolados de corrupção que “parceirizavam” com “conveniência e oportunidade” e que terminavam por prejudicar a imagem de diversas organizações. A legislação, até então, nunca havia proibido a “pactuação direta”, uma vez que não impunha um procedimento de escolha obrigatório[19].
A solução ofertada pela nova legislação foi a consolidação da regra do chamamento público, assegurando assim transparência e isonomia no processo de seleção.
O Chamamento Público encontra-se definido no art. 2º, inciso XII da Lei nº 13.019/14:
Art. 2o Para os fins desta Lei, considera-se:
[...]
XII - chamamento público: procedimento destinado a selecionar organização da sociedade civil para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, no qual se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos;
Pela necessidade fática, também foram previstas regras de dispensa e inexigibilidade do procedimento de chamamento público (escolha direta), como é o caso, por exemplo, das parcerias que envolvem programas de proteção à testemunha ou vítimas ameaçadas, em razão do sigilo que lhes é intrínseco. Contudo, excetuados os casos apropriados, o amplo processo deve ser privilegiado, alinhando as propostas aos objetivos que foram devidamente traçados.
Importante destacar que a celebração de acordos de cooperação dispensa a realização de chamamento público, mas não de forma absoluta. Quando o objeto do acordo envolver comodato, doação de bens ou outra forma de compartilhamento de recurso patrimonial, o procedimento de chamamento deverá ser observado.
Nota-se que foram estabelecidas na Lei nº 13.019/14 diretrizes obrigatórias a serem observadas pelo edital do chamamento público, verdadeiros requisitos de validade material, também foi explicitada evidente preocupação com a eficiência da parceria, sendo essa “entendida num sentido lato de relação entre custos despendidos versus vantagens obtidas, emprego racional dos recursos disponíveis e efetiva obtenção dos resultados de interesse público desejados”[20].
Em linhas gerais, esse procedimento permite a ampliação do acesso a parcerias pelas organizações, “evitando que entidades constituídas apenas ‘no papel’, e que não demonstrem ter executado atividades anteriores no âmbito que se deseja realizar a parceria, possam se apresentar como melhores executoras”. Ao mesmo tempo em que possibilita que instituições novas, com valor técnico, contudo sem experiência, possam se associar a outras maiores com a previsão das redes, nos chamamentos que assim as convocarem[21].
5 SOBRE A NECESSIDADE DE CONSTANTE APERFEIÇOAMENTO DO MARCO REGULATÓRIO DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL - MROSC
Deve-se recordar que, dentre os muitos traços que lhes são peculiares, o direito apresenta um gene de mutabilidade que assegura o seu constante aperfeiçoamento. A aprovação da Lei nº 13.019/14, reconhecido o seu incontestável avanço, foi apenas o primeiro passo para a superação do ambiente de escancarada insegurança jurídica em que se encontravam as relações entre OSCs e Estado. Cabe aos atores envolvidos nessas parcerias o aprimoramento dos instrumentos e mecanismos ofertados pela lei.
Para que o novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil se estabeleça como um passo decisivo rumo a uma política pública de colaboração, fomento e cooperação com organizações da sociedade civil, será preciso construir a regulamentação da nova lei de forma colaborativa e aumentar as oportunidades de melhoria do ambiente das OSCs através do diálogo constante[22].
Analisando alguns dos desafios da agenda do MROSC, apresentados pela Secretaria-Geral da Presidência da República[23], excetuando aqueles que por sua natureza objetiva já foram vencidos, entendemos ser estes os mais relevantes:
a) Regulamentar a Lei de Colaboração, Fomento e Cooperação com OSCs (Lei nº 13.019/14), esclarecendo e adaptando o normativo às diversas realidades federativas;
b) Impulsionar ações e programas de formação de gestores públicos, conselheiros de políticas públicas e organizações da sociedade civil sobre a nova legislação, em parceria com escolas de governo, universidades, OSCs, centros de formação e órgãos públicos, incluindo programas de qualificação profissional;
c) Fomentar debates públicos e manter diálogo permanente com atores da sociedade civil, lideranças de movimentos sociais representantes de OSCs, coletivos e redes;
d) Estimular agenda de estudos e pesquisas na área, construindo uma taxonomia mais própria para o campo das organizações da sociedade civil no Brasil, que possa influenciar políticas de fortalecimento específicas e ajudar a diferenciar os tipos e portes de organizações.
A implementação de tais ações garantirá que o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil avance caminhos cada vez mais distantes, prestigiando assim os esforços legislativos e contribuindo para o aperfeiçoamento de relações de importância incomensurável.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito além dos objetivos didáticos, tendo em vista que eles reclamariam produção indiscutivelmente mais completa, as considerações tecidas no corpo deste trabalho buscaram modestamente exaltar três aspectos: 1) o papel essencial das OSCs na realização de políticas e projetos de interesse público; 2) a importante conquista, jurídica e social, da criação de um Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil; e 3) a indiscutível necessidade de aprimoramento dessa agenda.
A Lei 13.019/14, na compleição textual em que se encontra, oferece um contexto de segurança jurídica, onde as ações de solidariedade da sociedade civil poderão legitimamente unir-se as ações de colaboração, fomento e cooperação do Estado. Tudo isso, para construir um sistema harmônico, compatível com uma democracia como a nossa, que enaltece o poder do povo e assegura direitos fundamentais a todos os indivíduos.
Diante dessa nova realidade normativa, compreendida por um sistema racional, seguro e transparente, que incentiva as relações entre OSCs e Estado, a comunidade jurídica é convidada ao seu aprofundamento hermenêutico. Tais esforços contribuirão para o aprimoramento desse regime jurídico, fortalecendo assim parte essencial de nossa democracia, a solidariedade, que nas palavras do escritor Franz Kafka[24], “é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana”.
NOTAS
[1] PIRES, R.R.C; AMARAL, L.A.; SANTOS, J.C. Planejamento governamental e participação social: encontros e desencontros na experiência brasileira recente. ENAP (Escola Nacional de Administração Pública), 2014.
[2] TORRES, Ronny Charles Lopes de. Terceiro Setor: Entre a liberdade e o controle. Salvador: Ed. JusPodivm, 2013. p. 43.
[3] IPEA. Extrator de Dados. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/extrator/. Acesso em: 14 de agosto de 2018.
[4] MATOS, Rodrigo Rommel de Melo. Fundamentos, diretrizes e âmbito de aplicação da norma. In: MENDES, Michelle Diniz (Coord.). Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[5] Art. 2º, inciso II, da Lei nº 13.019/14 define como administração pública: “União, Estados, Distrito Federal, Municípios e respectivas autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, e suas subsidiárias, alcançadas pelo disposto no § 9o do art. 37 da Constituição Federal”.
[6] Art. 24, §1º, inciso II da Lei nº 13.019/14.
[7] “Instrumento que servirá de base para a gestão da parceria, pois nele serão definidas e delimitadas as ações, os objetivos, as metas e os indicadores, estabelecidos os prazos (cronograma), bens e valores, além de outros elementos que funcionem como substrato fático que permitirá a execução e concretização das atividades de interesse público que justificam a celebração dos termos de fomento e de colaboração (MURADO, 2017)”.
[8] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Secretaria-Geral da. Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil: A construção da agenda no governo federal – 2011 a 2014. Brasília: 2015.
[9] MUNICÍPIO DE VIÇOSA. Edital de Chamamento Público nº 0077/2018 – OSC – Termo de Colaboração. Disponível em: http://www.vicosa.mg.gov.br/abrir_arquivo.aspx/Edital_de_Chamamento_Publico_n_07_2018__Termo_de_Colaboracao__KarateDO?cdLocal=2&arquivo=%7B2B0E4E8E-2D76-CDED-BD3A D3DB03A0BACA%7D.pdf. Acesso em: 19 de agosto de 2018.
[10] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Secretaria-Geral da. Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil: A construção da agenda no governo federal – 2011 a 2014. Brasília: 2015.
[11] MUNICÍPIO DE ARAÇARIGUAMA. Edital de Chamamento Público para Termo de Fomento. Disponível em: http://www.aracariguama.sp.gov.br/docs/editais/595e86c4e65c4838e24b8e41f191450b.pdf. Acesso em: 19 de agosto de 2018.
[12] De acordo com MENDES (2017), “são classificadas como espécies de transferências discricionárias as transferências voluntárias (convênios e contratos de repasse), as transferências realizadas a entidades privadas sem fins lucrativos (termo de parceria, termo de fomento e termo de colaboração) e as transferências especificas (termo de compromisso)”.
[13] Na linha de MENDES (2017), “as transferências obrigatórias compreendem as constitucionais, a exemplo daquelas destinadas ao fundo de participação dos Estados e Distrito Federal e ao fundo de participação dos municípios (art. 159, I, a, b, c, d e e, da CF), e as legais, como as do Programa Nacional de Alimentação Escolar e do Programa Dinheiro Direito na Escola, ambas previstas na Lei nº 11.947/2009”.
[14] MENDES, Michelle Diniz (Coord.). Acordo de Cooperação. In: Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[15] Regulamenta a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, para dispor sobre regras e procedimentos do regime jurídico das parcerias celebradas entre a administração pública federal e as organizações da sociedade civil.
[16] MENDES, Michelle Diniz (Coord.). Acordo de Cooperação. In: Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[17] Idem.
[18] ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Minuta de Acordo de Cooperação. Disponível em: https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:pEdBAurpLMwJ:https://pge.es.gov.br/Media/pge/Minutas%2520conv%25C3%25AAnios/Conv%25C3%25AAnios%2520(atualiza%25C3%25A7%25C3%25A3o%252029%252010%25202015)/MINUTA%2520ACORDO%2520DE%2520COOPERA%25C3%2587%25C3%2583O%2520-%2520PGE.doc+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 19 de agosto de 2018.
[19] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Secretaria-Geral da. Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil: A construção da agenda no governo federal – 2011 a 2014. Brasília: 2015
[20] MANGUEIRA, Carlos Octaviano de Medeiros. Chamamento Público. In: MENDES, Michelle Diniz (Coord.). Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[21] PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Secretaria-Geral da. Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil: A construção da agenda no governo federal – 2011 a 2014. Brasília: 2015. p. 102.
[22] Idem.
[23] Idem.
[24] Franz Kafka (1883-1924), escritor tcheco de língua alemã.