Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Direito à moradia - diretrizes internacionais sobre o tema

Exibindo página 2 de 2
Agenda 05/11/2018 às 14:30

3. Direito à Moradia Adequada

Tendo sido apresentados, no tópico anterior, alguns dos principais documentos internacionais relacionados com a consolidação do direito à moradia, pretende-se, então, tratar sobre o conceito de moradia adequada, abordando-se os fatores e condições que o estruturam.

Como já explicitado, o direito à moradia integra, desde o ano 2000, o rol dos direitos sociais expressamente previstos pela Constituição Federal brasileira. Para Alexandre de Moraes (2003), os direitos sociais, ao serem compreendidos como direitos fundamentais do homem, exigem do Estado prestações positivas, as quais devem possibilitar a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos mais vulneráveis, de forma a equalizar as situações sociais desiguais.

Corroborando este entendimento, José Afonso da Silva (2005) aponta os direitos sociais como “pressupostos do gozo dos direitos individuais”, uma vez que a satisfação daqueles tende a proporcionar situações de igualdade material entre as pessoas, tornando, assim, mais possível o exercício efetivo da liberdade.

O direito à moradia, por sua vez, é compreendido por José Afonso da Silva da seguinte forma:

O direito à moradia significa ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No “morar” encontramos a idéia básica da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação, o que sobressai com sua correlação com o residir e o habitar, com a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. O direito à moradia não é necessariamente o direito à casa própria. Quer-se que se garanta a todos um teto onde se abrigue com a família de modo permanente, segundo a própria etimologia do verbo morar, do latim “morari”, que significa demorar, ficar [...] (SILVA, 2005, p. 313)

Ao tratar da relação entre o direito à moradia e a dignidade da pessoa humana, Helano Márcio Vieira Rangel e Jacilene Vieira da SIlva (2009) relembram a ideia de Estado Democrático de Direito e estabelecem o direito à moradia como um desdobramento da função social da propriedade – prevista na Constituição Federal de 1988 tanto na parte relativa aos direitos fundamentais (artigo 5º, XXIII), quanto no capítulo referente aos princípios da atividade econômica (artigo170, III). Em nossa ordem jurídica, a função social da propriedade atua, portanto, estruturando o direito à propriedade, dando a ele conteúdo e sentido.

Diante da perspectiva de se compreender a importância do direito à moradia, cumpre reforçar a relação da moradia com a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos sobre o qual se estrutura a República Federativa do Brasil, de acordo com o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Elza Maria Alves Canuto (2008) destaca o direito à moradia como um pressuposto à efetivação da dignidade da pessoa humana, em seu sentido material. Para a autora, uma situação de dignidade humana material é aquela na qual o “mínimo existencial” seja atendido, estando abarcados neste mínimo os direitos sociais. Neste sentido, afirma-se que sem habitação não há dignidade humana que se concretize.

Portanto, em uma situação onde não se tem devidamente assegurado ao sujeito o direito à moradia, tem-se de imediato uma violação também ao princípio da dignidade da pessoa humana, podendo ainda ser observado que a violação ao direito à moradia determina e afeta de forma grave o exercício de outros direitos básicos, tais como a saúde, a educação, o trabalho e o lazer. 

O texto constitucional, entretanto, ao estabelecer, em 2000, o direito à moradia como um direito social, não trouxe consigo um conteúdo mínimo a respeito da moradia que estava sendo assegurada. A definição de parâmetros mínimos relacionados à moradia, porém, já havia sido realizada internacionalmente, através de um documento publicado pelo Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o PIDESC, denominado “Comentário Geral n. 4”, o qual será abordado a seguir.

3.1 Comentário Geral n.4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

No que diz respeito ao direito à moradia, em 1991, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais editou o Comentário Geral n. 4, que tratou sobre a definição de moradia adequada, servindo como um instrumento importante de consubstanciação deste direito. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Comentário Geral n. 4 sobre o Direito à Moradia Adequada, 1991)

De acordo com este Comentário Geral, o direito à moradia não deve ser compreendido e concretizado a partir de uma concepção minimalista ou restrita sobre o que se entende por moradia. O direito à habitação deve ser assegurado a todos, independentemente de renda, e vai muito além do que se ter apenas um teto para se abrigar, devendo ser concebido como o direito a se viver em algum lugar com paz, segurança e dignidade. 

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

O supracitado Comitê reconhece neste Comentário Geral que a adequação de uma moradia pode variar, em alguma medida, em razão de características específicas do país ou comunidade que se analisa, mas ele afirma que, em relação à moradia, alguns aspectos devem ser considerados e assegurados em qualquer lugar, sob quaisquer circunstâncias. Sob este entendimento, para que uma moradia possa ser considerada adequada, segundo o referido Comitê, os seguintes fatores precisam ser atendidos: a) Segurança jurídica da posse; b) Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura; c) Custo acessível; d) Habitabilidade; e) Acessibilidade; f) Localização; g) Adequação Cultural.

No que diz respeito à segurança jurídica da posse, o documento analisado reconhece a diversidade de formas de origem da posse, tais como a locação, o arrendamento, a habitação cooperativa, as ocupações informais, e afirma que independente da forma, faz-se necessário garantir às pessoas certo grau de segurança jurídica que as proteja legalmente contra os despejos forçados, perturbações ou outras ameaças.

Quanto ao segundo fator, afirma-se que uma moradia adequada deve contemplar certas instalações fundamentais para saúde, segurança, conforto e nutrição de seus moradores. Assim, há que se ter acesso à energia para cozinhar, água apropriada para beber, aquecimento, iluminação, instalações sanitárias e de asseio e formas de armazenar comida, eliminar lixos e dejetos, drenagem do local e serviços de emergência.

Além disso, uma moradia adequada deve ser de custo acessível, sendo assim necessário que os gastos relacionados a ela não comprometam a satisfação de outras necessidades básicas daquele grupo doméstico. Destaca-se, ainda, que o custo de uma moradia adequada deve ser compatível com o nível de renda percebido nos Estados partes e que os governos devem adotar medidas para que isso seja de fato uma realidade. Estabelece-se, assim, que os Estados devem fornecer subsídios para aqueles que se encontrem incapazes de conseguir uma moradia adequada a um custo suportável, bem como prover formas e níveis de financiamento que atendam às necessidades habitacionais de sua população. Sob tal perspectiva, é previsto, também, que os inquilinos devem ser protegidos contra preços ou aumentos não razoáveis dos custos do aluguel.

A moradia adequada deve ser, ainda, composta por um espaço apropriado, capaz de garantir aos seus ocupantes segurança física e protegê-los contra as intempéries do tempo e do clima, além de protegê-los contra ameaças à saúde, riscos estruturais e vetores de doenças, constituindo-se, assim, em um local habitável. 

Sob a perspectiva de que a moradia deve ser acessível aos titulares desse direito, o Comentário Geral n. 4 estabelece que tanto as leis quanto as políticas e programas destinados à habitação devem considerar as necessidades especiais de grupos em situações de vulnerabilidade, de grupos desfavorecidos, sendo citados os idosos, os portadores de doenças crônicas, deficientes físicos, vítimas de desastres naturais e moradores de área de risco, dentre outros. Afirma-se que esses grupos devem ser considerados, em alguma medida, de forma prioritária na realização do direito à moradia. Neste ponto, esclarecem que os governos devem agir para aumentar o acesso à terra por parte de grupos empobrecidos ou sem-terra, devendo este constituir-se em um objetivo político central.

Quanto ao aspecto localização, para ser adequada, uma moradia precisa situar-se em um local que permita o acesso de seus moradores a opções de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e outros serviços públicos essenciais. A consideração desse aspecto é importante, uma vez que se reconhece que tanto nas grandes cidades como nas áreas rurais, as famílias costumam gastar boa parte de seu tempo e de seus recursos para se deslocarem de sua residência até o local de trabalho. Observa-se, também, que não se deve construir moradias próximas a locais poluídos, ou nas imediações de fontes de poluição.

Por fim, salienta-se que as políticas de habitação e os materiais e a forma como são construídas as moradias devem permitir a expressão de identidade cultural e da diversidade das habitações.


4. Considerações Finais

Analisando as diretrizes internacionais relacionadas ao direito à moradia, observa-se de forma inequívoca que esse direito transcende a ideia de se ter apenas um teto para abrigar-se, devendo estar presentes diversos fatores e condições, os quais, pode-se dizer, derivam de outros direitos humanos e do princípio da dignidade da pessoa humana. Corroborando este entendimento, Nelson Saule Júnior destaca que:

O direito à moradia derivado do direito a um nível de vida adequado configura a sua indivisibilidade e interdependência e inter-relacionamento, como direito humano, por exemplo, com o direito de liberdade de escolha de residência, o direito de liberdade de associação (como as de moradores de bairro, vila e comunidades de base), com o direito de segurança (casos de despejos e remoções forçadas ou arbitrárias ilegais), o direito de privacidade da família, casa e correspondência, com o direito a higiene ambiental e o direito de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental. (SAULE JUNIOR, 1997, p. 67)

Conforme demonstrado ao longo desse trabalho, essa concepção abrangente do direito à moradia envolve, de forma necessária, o resguardo da privacidade, da saúde, da segurança jurídica da posse, da acessibilidade física, do custo suportável, da estabilidade estrutural. Além disso, há que se ter garantido o acesso ao abastecimento de água e ao saneamento básico e sua localização deve permitir o acesso ao trabalho e a outros serviços básicos. 

Diante das normas e diretrizes internacionais relacionadas ao tema, considera-se indispensável a implementação de políticas públicas consistentes e multidimensionais com o intuito de que o direito à moradia possa ser, de fato, desfrutado por grande parte da população brasileira, não devendo ser esquecido que essa moradia tem de estar integrada à cidade.


5. Referências 

AVELAR, Daniel; PRONER, Carol. A Natureza Jurídica dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, Sua Harmonização e Aplicabilidade no Ordenamento Brasileiro. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, jul./dez. 2011.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. 

CANUTO, Elza Maria Alves. O Direito à Moradia Urbana como um dos Pressupostos para a Efetivação da Dignidade da Pessoa Humana. Tese, Universidade Federal de Uberlândia, 2008.

GOMES, Francisco Donizete. Direito Fundamental Social à Moradia: Legislação Internacional, Estrutura Constitucional e Plano Infraconstitucional. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. A Agenda Habitat, 1996. 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comentário Geral n. 4 sobre o Direito à Moradia Adequada (Art.11.1), 1991. 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos, 1996. 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Vancouver sobre os Assentamentos Humanos, 1976. 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966. 

RANGEL, Helano Márcio Vieira; SILVA, Jacilene Vieira da. O Direito Fundamental à Moradia como Mínimo Existencial e a sua Efetivação à Luz do Estatuto da Cidade. Veredas do Direito, Belo Horizonte. v. 6, jul. a dez., 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia.  Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, n. 20, dez., 2009.

SAULE JUNIOR, Nelson. O Direito à Moradia Como Responsabilidade do Estado Brasileiro. Cadernos de Pesquisa, n. 7, 1997.

SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25.  ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONALDI, Emanuele Fraga Isidoro. Direito à moradia - diretrizes internacionais sobre o tema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5605, 5 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68877. Acesso em: 5 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!