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A controvérsia da recusa terapêutica

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4. A RECUSA NÃO APENAS DE TRANSFUSÃO DE SANGUE

A questão da RECUSA TERAPÊUTICA tem sido geralmente vinculada aos casos de recusa a transfusão de sangue por parte de pacientes testemunhas de Jeová. Entretanto, certamente não se limita apenas a esse tipo de terapêutica, mas a qualquer procedimento médico e/ou cirúrgico. Outra situação que também tem ganhado espaço no Judiciário tem sido a RECUSA A TRATAMENTO DE HEMODIÁLISE.

Cite-se o caso de um jovem de 22 anos que, recusando fazer o tratamento dialítico teve sua interdição decretada judicialmente, a pedido da própria mãe do paciente que buscou guarida judicial para permitir aos médicos fazer o tratamento dialítico contra vontade dele. Entretanto, a ordem Judicial proibia o uso de coação e/ou sedação para que isso fosse feito. Apesar de tramitar em segredo de justiça31, o caso ganhou notoriedade na mídia. Veja-se matéria jornalística:

O juiz Éder Jorge, da 2ª Vara Cível de Trindade, nomeou mãe de jovem, com doença renal, como sua curadora, para que adote as providências necessárias para o cumprimento das prescrições médicas e cuidados com a saúde. O filho já manifestou desejo de parar de tomar a medição e cessar com as sessões periódicas de hemodiálise devido à dor que sofre com o procedimento. O magistrado recomendou, ainda, que o rapaz passe por acompanhamento psicoterapêutico.

O magistrado determinou a interdição parcial e provisória do jovem, pelo prazo de 1 ano, unicamente no que se refere à sua autonomia para submeter-se a tratamento médico, especialmente as sessões de hemodiálise, autorizando a mãe a adotar todas providências necessárias para o cumprimento das prescrições médicas e cuidado da saúde, vedando a utilização de qualquer forma de coerção física, inclusive sedação.

A mãe do jovem ajuizou ação de interdição com pedido de antecipação de tutela alegando que seu filho, por vontade própria, abandonou o tratamento médico, parando de utilizar as medicações prescritas e faltando às sessões de hemodiálise. Ela disse que o filho apresenta hipogonadismo, em virtude de criptorquidia, hipertensão arterial sistêmica (HAS) e transtorno psiquiátrico grave – transtorno de personalidade/ajustamento e Transtorno de Deficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

O jovem se manifestou na ação judicial, apontando que é adulto lúcido, consciente do tratamento e das suas consequências, além de se considerar inteligente, argumentando que logrou êxito na conclusão do ensino médio através do ENEM 2016, mesmo tendo passado anos no exterior. Defendeu que seu tratamento não apresenta chances reais de cura, sendo um processo árduo e penoso sem perspectivas, requerendo a improcedência da ação.

Sentença

Em fevereiro deste ano, o juiz Éder Jorge já havia decidido neste mesmo sentido. Agora, nesta nova ação, o magistrado levou em consideração os relatórios médicos, que sugeriram a imposição da interdição do jovem, uma vez que envolve ricos de vida iminente. Citou, também, as avaliações psicológicas e psiquiátricas, todas opinando, de maneira similar, que o estado do jovem o faz tomar decisões sem reflexão e com pouco investimento emocional, impedindo-o de captar e processar as situações na complexidade requerida.

Éder Jorge explicou que o desenvolvimento cognitivo e a consciência do paciente não estão comprometidos. Contudo, disse que ele não conta com a higidez necessária para corroborar uma vontade efetivamente livre e descolada de qualquer interferência com potencial afetação ao seu entendimento e determinação.

“A renúncia a tratamento doloroso e a aceitação da morte natural como consequência da doença seriam perfeitamente possíveis no nosso sistema constitucional, se não houvessem elementos psicológicos e psiquiátricos a afetarem a capacidade de entendimento e determinação de J.H.P.C.F., já que a medicalização da vida pode transformar a morte em um processo longo e sofrido. Estar-se-ia diante da ortotanásia”, afirmou o juiz.

No caso do jovem, de acordo com o juiz, conflitos internos e perda de perspectivas contribuíram para que ele negligenciasse os aspectos emocionais da existência humana, desgostando da vida e tornando seu processo de decisão parcialmente prejudicado. Disse, ainda, que o rapaz possui capacidade cognitiva compatível com sua idade e grau de instrução, podendo alcançar o adequado desenvolvimento emocional, através do acompanhamento profissional.

“A propósito, por ocasião da audiência, tive a impressão de um rapaz muito inteligente e simpático. No entanto, até que esteja devidamente fortalecido e livre das limitações abordadas nos laudos médicos, a nomeação de curador é necessária”, concluiu Éder Jorge32.

Conforme outra reportagem:

O juiz Éder Jorge determinou novamente a interdição parcial e provisória por um ano do jovem José Humberto Pires de Campos Filho, de 22 anos, que sofre de problemas renais, mas quer ter o direito de não passar por sessões de hemodiálise, o que pode levá-lo à morte. A sentença torna a mãe dele, a microempresária Edina Maria Alves Borges, sua curadora e responsável por zelar da questão.

Apesar de decisão, o sentimento de Edina, que mora com o filho em Trindade, na Região Metropolitana de Goiânia, é de extremo pessimismo. Em fevereiro deste ano, ela já havia obtido liminar no mesmo sentido. Porém, em ambos os casos, o magistrado ordenou que o jovem não poder ser coagido fisicamente ou até mesmo sedado para realizar o tratamento.

(...)

Após a liminar que já tinha interditado o jovem por seis meses, o juiz determinou que ele passasse por uma avaliação psicológica feita pela Junta Médica do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO). O juiz explicou ao G1 que o laudo desse estudo foi fundamental para sua decisão.

"Essa avaliação teve um peso muito grande. Por se tratar de um caso de interdição, depende muito do laudo médico. Só um especialista pode definir o nível de higidez mental dele para abdicar do tratamento", pontua.

No relatório em questão, a equipe chegou à conclusão que "o paciente possui capacidade de discernimento prejudicada". Por isso, conforme transcrição feita pelo juiz do relatório médico, o jovem "encontra-se diante de uma decisão importante que envolve risco de morte e, diante do verificado, não está em condições de tomá-la na plenitude e complexidade que a situação requer".

Questionado sobre a deliberação de não permitir coerção ou força física no cumprimento da ordem, ele se justificou. "Ela [a mãe] terá que usa outros mecanismos para cumprir a decisão. Não me vi na condição de determina coerção. A falta de discernimento dele é muito pequena. Ele é praticamente consciente na plenitude de sua vontade, exceto por alguns detalhes", avalia.

Em 20 anos de magistratura, Jorge disse que nunca analisou questão semelhante. "A gente se espanta muito, fica triste e, ao mesmo tempo, bastante pensativo sobre a convicção dele em não seguir com o tratamento", opina33.

Como visto, a recusa terapêutica não se limita apenas a casos de pacientes testemunhas de Jeová recusando transfusão, mas a outros procedimentos médicos e/ou cirúrgicos.


5. O CONGRESSO NACIONAL E A RECUSA TERAPEUTICA

O CONGRESSO DA REPÚBLICA, também não tem permanecido inerte diante a complexidade e controvérsia do assunto.

Em 16/08/2017, foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o parecer favorável (com complementação de votos) ao PROJETO DE LEI Nº 5559/1634 de autoria dos deputados Pepe Vargas (PT/RS), Chico D'Angelo (PT/RJ) e Henrique Fontana (PT/RS), protocolado em 14.06.2016 e que dispõe sobre os direitos dos pacientes e dá outras providências.

Segundo a relatora, Dep. Erika Kokay (PT-DF), o projeto traz para o texto da lei questões fundamentais para o cidadão que necessita de acompanhamento de saúde. Pretende assegurar a dignidade e a autonomia dos pacientes em quaisquer situações, assegurando-lhes direitos básicos. A relatora afirma ainda que a intenção é tornar tais regras mais claras e conferir-lhes o status de normas legais. Em 29/08/2017 foi recebido na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). Referido PL, traz no seu bojo artigos importantes como:

Art. 14. O paciente tem direito ao consentimento informado sem coerção ou influência indevida, salvo em situações de risco de morte em que esteja inconsciente. (grifei)

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Da justificativa do referido PL extrai-se:

No Brasil, embora haja leis estaduais e normas infra legais sobre os direitos dos usuários, não há nenhuma norma que atribua titularidade de direitos aos pacientes, merece ser aprofundada em estudo específico destinado a tal fim. Assim, no país, não se têm leis de direitos dos pacientes, mas sim, dos usuários, indo na contramão da maior parte dos países que possuem leis sobre direitos dos pacientes e, no plano internacional, das declarações sobre direitos dos pacientes. Desse modo, constata-se a fragilização jurídica do paciente no Brasil. Com efeito, ao se atribuir a titularidade de direitos na esfera dos cuidados em saúde ao usuário, esvaziou-se a relação profissional de saúde-paciente do ponto de vista jurídico, deixando-a à margem da regulação do Estado, no que tange aos direitos dos pacientes; pois, quanto à atuação dos profissionais, os conselhos profissionais cumprem adequadamente seu papel. Dessa forma, questões como o direito à recusa de tratamento em situações de terminalidade de vida, o direito à medicação analgésica nos cuidados paliativos; o direito ao consentimento informado e o direito a cuidados em saúde seguros, não se encontram previstos em lei nacional, e são insuficientemente disciplinados em instrumentos normativos vigentes. Ademais, em razão de inexistir um arcabouço normativo-teórico no Brasil, sobre os direitos humanos dos pacientes, há uma lacuna em termos de estruturação do Estado brasileiro quanto à institucionalização de políticas e programas públicos sobre os direitos dos pacientes. Com efeito, a ausência de lei torna quase impeditiva a existência de políticas públicas, porquanto a sua consecução implica recursos orçamentários, humanos e físicos. Sendo assim, os direitos dos pacientes ainda não fazem parte de modo sistemático da agenda do Estado brasileiro, logo, não há políticas governamentais voltadas para a concretização de tais direitos.

Portanto, conclui-se pela necessidade de se ter parâmetros legais assentados no direito do paciente quanto à aceitação e à recusa de procedimentos e tratamentos, independentemente de ser uma pessoa com idade avançada, com transtorno mental ou com deficiência intelectual, sendo a premissa o dever de qualquer autoridade estatal de respeitar as escolhas pessoais do paciente. Dessa forma, diante da falta de institucionalização da promoção e da defesa dos direitos dos pacientes e do vazio legislativo que concorre para a propagação de ações judiciais violadoras dos direitos humanos dos pacientes, advoga-se a regulamentação legal do tema no Brasil.

Ainda, a PROPOSTA DO NOVO CÓDIGO PENAL35, na sua parte especial, traz uma mudança no teor do artigo que trata do crime de constrangimento ilegal. Na nova redação, se aprovada, médicos não poderão obrigar pessoas maiores e capazes a se submeter a tratamento de saúde, como transplante de órgãos e transfusão de sangue. Caso o paciente seja capaz de manifestar sua vontade, a conduta configurará constrangimento ilegal. A mudança privilegia a liberdade religiosa e a autonomia da vontade. O novo artigo que trata do crime de constrangimento ilegal estaria redigido assim:

Constrangimento ilegal

Art. 146. - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

[...] § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida, exceto se, maior de idade e capaz, o paciente puder manifestar sua vontade de não se submeter ao tratamento, ou

II - a coação exercida para impedir suicídio. (grifei)

Entretanto, a proposta apresentada em 2012 e que hoje tramita na Câmara de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) tem sido alvo de críticas e questionamentos, estando ainda na fase de discussão da sua parte geral36.

Assim sendo, a questão da recusa terapêutica também vem sendo matéria de debate no Poder Legislativo.


6. O MINISTERIO PÚBLICO FEDERAL E A RECUSA TERAPEUTICA

Em 2015, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot decidiu pelo arquivamento da representação proposta pela Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová questionando a Portaria n.º 92/98 da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF). A referida Portaria permite a transfusão de sangue sem autorização prévia do paciente ou de seu representante legal em caso de perigo de vida iminente. Nas palavras do Procurador-Geral:

[...] Caso configurada situação de risco iminente de morte, ou seja, de situação na qual a vida, direito indisponível constitucionalmente assegurado, está prestes a ser lesada, não mais será possível falar-se em direito à liberdade de religião e na necessidade de consentimento do cidadão para ser submetido à transfusão de sangue ou [de] derivados37.

Mais recentemente, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) requereu através de representação, em junho de 2017, ao também então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, a propositura perante o STF de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) com o objetivo de que o STF confira interpretação conforme à Constituição de 1988: a) à Resolução nº 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina, a fim de que sua aplicação somente ocorra quando se tratar de criança, adolescente, ou pessoa incapaz, por qualquer motivo, de exprimir a própria vontade e que não a tenha deixado expressa em documento ou qualquer outro meio idôneo; b) ao art. 146, § 3º, I, do Código Penal, no sentido de que tal dispositivo não autoriza a intervenção cirúrgica quando houver manifestação expressa em contrário do paciente adulto e capaz, permitindo somente a intervenção sem consentimento quando se tratar de criança, adolescente, ou pessoa incapaz, por qualquer motivo, de exprimir a própria vontade e que não a tenha deixado expressa em documento ou qualquer outro meio idôneo.

Para a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, a obrigatoriedade do procedimento só pode ser aplicada quando se tratar de criança, adolescente ou pessoa incapaz de exprimir a própria vontade e que não a tenha deixado expressa em documento ou outro meio idôneo. No caso de pacientes adultos e capazes, deve prevalecer a decisão do indivíduo – tendo como base os princípios constitucionais da liberdade de consciência e crença, a autonomia privada individual e os direitos à intimidade, privacidade, integridade física e psíquica, além da proibição da tortura.

A douta Procuradora Federal, na sua peça de representação, defende que:

[...] Obrigar qualquer cidadão plenamente capaz a receber transfusão de sangue contra sua vontade, ainda que em caso de iminente risco de vida, implica em violação a diversos princípios constitucionais e do direito internacional dos direitos humanos. Não há norma que obrigue o indivíduo a aceitar determinado tratamento médico, o que consiste em mera manifestação de autonomia da vontade do paciente, que inclusive pode não ter fundamento em imperativos de consciência ou religião38.

Entretanto, até a presente data, não há notícia sobre a propositura de qualquer ação por parte da Procuradoria Geral da República perante o STF.

Sobre os autores
Alejandro Enrique Barba Rodas

Médico. Especialista em Medicina Intensiva. Assistente técnico.

Diana Fontes de Barba

Advogada. Especialista em Direito Médico e Hospitalar. Barros, Barba & Cerqueira. Advocacia e Consultoria jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODAS, Alejandro Enrique Barba; BARBA, Diana Fontes. A controvérsia da recusa terapêutica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5565, 26 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69251. Acesso em: 22 nov. 2024.

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