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Sindicabilidade do ato administrativo em provas de concurso público

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Agenda 07/10/2018 às 13:00

O Poder Judiciário deve agir quando constar ilegalidades oriundas de erros grosseiros em provas de concursos, e não somente quando houver a cobrança de matéria fora do edital.

RESUMO: Este artigo apresenta uma visão geral acerca da sindicabilidade do ato administrativo em concursos públicos, baseado em julgamentos dos Tribunais Superiores, sob a exegese do que decidido em sede de Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº. 632.853 – Tema 485 do STF, com ênfase na ilegalidade proveniente de erro grosseiro.

PALAVRAS-CHAVE: Sindicabilidade. Ato administrativo. Concurso Público. Recurso Extraordinário nº. 632.853. Tema 485 do Supremo Tribunal Federal.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Atos Administrativos em procedimento de Concurso Público – 2.1. Atos da Banca Examinadora – 2.2. Ilegalidade do ato administrativo e a Banca Examinadora – 2.2.1. Cobrança de questão fora do disposto no edital – 2.2.2. Existência de assertiva com divergência doutrinária – 2.2.3. Erro grosseiro, caracterizador de ilegalidade - 3. Posicionamento dos Tribunais e a configuração de ilegalidade quando há erro grosseiro – 3.1. Decisões dos Tribunais Regionais Federais interpretando o RE nº 632.853 – 3.2. Decisões do STJ interpretando o RE nº 632.853 – 3.3. Decisões do próprio STF embasadas no que decidido no RE nº 632.853 - 4. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Em determinadas ocasiões, decisões judiciais podem alterar ou anular o que decidido previamente pelo administrador público, o qual detém discricionariedade para agir em busca do melhor fim público.

É o caso, por exemplo, da anulação da nomeação de Ministro quando os requisitos legais não foram atendidos; da anulação de uma autorização para se construir ponte em área de reserva ambiental quando não houve a observância de normativo legal; da desapropriação de terras sem o adequado pagamento, dentre outras inúmeras situações.

Sob o prisma da separação dos poderes, a regra é pela impossibilidade da intervenção judicial, salvo quando o ato administrativo violar a lei, tudo conforme determina o sistema democrático de freios e contrapesos.

No que se refere aos atos administrativos praticados pela Administração Pública e pela Banca Examinadora em um procedimento de elaboração e concretização de um concurso público, tais regras devem ser, por óbvio, observadas, dada a auto executoriedade e a presunção de veracidade que gozam os atos administrativos.

Ou seja, havendo erro ou ultrapassando-se a razoabilidade quando da elaboração da questão de um concurso, o Poder Judiciário deve agir, com a finalidade precípua de manter a legitimidade da escolha do candidato melhor preparado, sob pena de se fechar os olhos às arbitrariedades eventualmente cometidas pela Administração Pública.

Referido controle judicial é de extrema importância, uma vez que a soberania das bancas não pode ultrapassar a legalidade, sob pena de se dar brecha à manipulação de resultados, situação que deve ser energicamente reprimida, uma vez que, a longo prazo, pode ser uma perigosa forma política de aparelhar o Estado com apadrinhados de um administrator com más intenções.

Tal entendimento – intervenção do Judiciário quando constatada a ilegalidade em questões de concursos – é instrumento garantidor de um Estado democrático de direito.

Neste sentido, o Egrégio STF, quando do julgamento do RE nº. 632.853, em 23/04/15, decidiu tema que vem gerando algumas divergências, dada a existência de interpretações restritivas que, caso sejam analisadas literalmente, vão de encontro ao próprio art. 5 º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988, que é claro ao afirmar que “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.[1]

Portanto, a razão do presente artigo é explicitar o entendimento atual dos Tribunais Regionais e das Cortes Superiores acerca da atuação do Poder Judiciário quando constatada a ilegalidade em questões de concurso público, em especial a existência de erro grosseiro, de modo a corroborar com a interpretação de que a Tese 485 (definida pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 632.853, em 23/04/2015), embora trate a atuação do Judiciário como minimalista, deve abarcar a correção de qualquer tipo de ilegalidade.

Isto tudo porque o acesso ao Judiciário é uma forma de concretizar a democracia constitucional. Antes, porém, faz-se necessário alguns breves comentários sobre o ato administrativo.


2. ATOS ADMINISTRATIVOS EM PROCEDIMENTO DE CONCURSO PÚBLICO

Maria Sylvia Zanella Di Pietro conceitua o ato administrativo como “[...] a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com a observância da lei, sob o regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário.” [2]

Para compreendermos melhor, relembremos os 5 elementos do ato:

COMPETÊNCIA: É o poder decorrente da lei conferido ao agente  administrativo para o desempenho regular de suas atribuições. Somente a lei pode determinar a competência dos agentes na exata medida necessária para alcançar os fins desejados. É um elemento sempre vinculado.

FINALIDADE: É o resultado que a Administração deve alcançar com a prática do ato. É aquilo que se pretende com o ato administrativo. É um elemento sempre vinculado.

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FORMA: O ato deve respeitar a forma exigida para a sua prática. É a materialização, ou seja, como o ato se apresenta no mundo real. É um elemento sempre vinculado.

MOTIVO: Consiste na situação de fato e de direito que gera a necessidade da  Administração em praticar o ato administrativo. Exemplo: é a falta de servidores que leva a Administração a realizar o concurso público. É um elemento discricionário.

Salienta-se que o MOTIVO é diferente de MOTIVAÇÃO. Esta, por sua vez, é a demonstração dos motivos, ou seja, é a justificativa por escrito de que os pressupostos de fato realmente existiram. A motivação pode ser entendida, por exemplo, com o a justificativa apresentada pela banca examinadora para a manutenção de certo gabarito.

Como é cediço, os atos discricionários da Administração Pública estão sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo observar que os motivos embasadores dos atos administrativos vinculam a Administração, conferindo-lhes legitimidade e validade.

Consoante a TEORIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES, o administrador vincula-se aos motivos elencados para a prática do ato administrativo. Nesse contexto, há vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele contido[3]

OBJETO: É o resultado prático causado em uma esfera de direitos . É um ato discricionário.

No que se refere à atuação do Judiciário quando há erro crasso ou flagrante ilegalidade no andamento de um concurso público, os defeitos do ato administrativo encontram-se, em regra, na motivação do ato e na suposta discricionariedade, que acaba por extrapolar o que é permitido pela legislação.

Em questão de concurso, o examinador tem certa discricionariedade para agir, podendo exigir do candidato, por exemplo, a posição do STJ ou do STF sobre algum tema, mas sempre deixando claro a referida exigência. A justificativa escrita para o gabarito seria o que chamamos de motivação do ato.

Por conseguinte, não pode o examinador considerar errada a resposta dada pelo candidato caso o edital ou o próprio corpo da questão não exija qual orientação a seguir. Ou seja, desde que o candidato comprove que sua resposta, em que pese divergir de um doutrinador, é plausível e embasada em outro doutrinador/área do conhecimento.

Outra situação que invalidada o ato administrativo exarado pela banca é quando o gabarito oficial utiliza fundamento inexistente ou teratológico. Há, portanto, vício nos motivos do ato.

Em verdade, a boa-fé objetiva, que se consubstancia em razoabilidade e legitimidade do concurso, deve estar sempre presente em todos os atos administrativos.

É neste sentido que a discricionariedade do ato administrativo exarado pelo examinador deve ser analisada. Ou seja: pode-se optar por cobrar do candidato diversas matérias englobadas no edital, mas nunca se poderá considerar correto resposta diametralmente contrária a teses pacíficas sobre determinado ramo do conhecimento, a menos que o examinador informe que deseja como resposta o entendimento minoritário, sob pena de afronta à boa-fé.

Neste aspectos, a sindicabilidade  configura-se como uma forma de conter abusos e deve ser interpretada sob o enfoque de uma nova sistemática do Direito Administrativo.

E é sob esta perspectiva que a tese exarada no Tema 485 do STF, extraída do julgamento do Recurso Extraordinário nº. 632.853, em 23/04/2015, deve ser interpretada.

2.1. ATOS DA BANCA EXAMINADORA

Os atos exarados em um processo de concurso público por parte da Administração são, em sua essência, atos administrativos. Qualquer ilegalidade provada, mesmo que sob a suposta alegação de discricionariedade por parte do administrador público, deve ser submetida ao controle do judiciário.

Assim, o ato da banca examinadora que declara o acerto ou erro em determinada questão objetiva é, por natureza, ato administrativo.

Especificadamente no que se refere ao controle da pontuação das questões objetivas, o Tema 485 do STF trouxe algumas discussões que serão objeto de análise e respostas no decorrer do presente artigo.

Este assunto tomou maiores proporções após 23/04/2015, quando o STF julgou o Recurso Extraordinário nº. 632.853, em regime de Repercussão Geral, gerando a seguinte tese:

Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Concurso público. Correção de prova. Não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas. Precedentes. 3. Excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame. Precedentes. 4. Recurso extraordinário provido”[4].  

Em um primeiro momento, muitos tiveram a impressão de que a Banca Examinadora e, consequentemente, a Administração Pública, somente seriam responsabilizadas se exigissem conhecimento que  ultrapassassem o limite de conteúdo elencado no edital do certame.

Tal entendimento está correto, mas vai além.

Se fosse interpretada literalmente a referida tese, estaríamos voltando no tempo, indo de encontro à concretização da Justiça. A interpretação deve pautar-se em uma análise sistêmica do Direito Administrativo, tendo em vista que os atos existentes na realização de um concurso público são “atos administrativos” na sua essência, devendo obedecer os princípios e institutos à eles aplicados.

Considerando que a Administração Pública vem, corriqueiramente, fazendo uma leitura de que – com exclusão da matéria fora do edital – qualquer cobrança desarrazoada, desproporcional ou ilegal está blindada de ataques de candidatos, dada a interpretação rasa e literal do RE 632.853 – vide enxurrada de ações na Justiça contestando gabaritos oficiais - , o presente artigo esclarece e comprova que o Tema 485 do STF, em que pese pautar por uma intervenção minimalista do Judiciário sobre aspectos inerentes à Banca Examinadora, não pode, em hipótese alguma, impedir a correção de flagrante ilegalidade cometida quando da análise de questões do concurso público.

2.2. ILEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO E A BANCA EXAMINADORA

A eventual extrapolação da discricionariedade administrativa por parte da Banca Examinadora gera o direito-dever constitucional do Poder Judiciário corrigir a ilegalidade, anulando o ato administrativo ilegal.

Portanto, resta-nos definir o que seria ato ilegal.

Abstratamente é simples: Trata-se de ato que fere a lei. Mas e nos casos concretos? O que pode efetivamente ser pensado como ilegalidade do ato administrativo?

Há diversas formas de um ato ser considerado ilegal quando da elaboração e correção de questões em concurso.

Tal conceituação é fundamental, porque, no que se refere aos atos exarados pela Banca Examinadora, o Judiciário possui âmbito de atuação mais restrito do que outros atos administrativos, por força do que decidido no RE 632.853.

Entretanto, a atuação judicial deve sempre existir, principalmente para coibir possíveis fraudes, onde aquele candidato melhor preparado, que estudou diversos normativos, doutrinas das mais variadas fontes, jurisprudências contemporâneas, etc., não pode, em hipótese alguma, ser prejudicado em detrimento daquele que assinou resposta efetivamente “errada”, mas que foi considerada “correta” por falha na motivação do ato administrativo.

Frisa-se que neste caso a Administração não pode proteger-se sob o alegado manto da discricionariedade, uma vez que seus atos, mesmo quando discricionários, devem ser amparados na lei e no direito.

Dentro deste aspecto, de modo a conceituar a ilegalidade em concurso público, fundamental analisar o que decido no Tema 485 do STF, sob 3 perspectivas:

2.2.1. COBRANÇA DE QUESTÃO FORA DO DISPOSTO NO EDITAL

Quando existirem questões cobrando matéria não exigida no edital, o Poder Judiciário, por óbvio, deve agir. Esta é a interpretação rasa e literal do RE 632.853 do STF, não havendo maiores questionamentos.

2.2.2. EXISTÊNCIA DE ASSERTIVA COM DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA

Este é um dos pontos onde surgem fundamentados questionamentos.

Quando existirem duas ou mais respostas corretas em determinada área, seja pela lógica, seja por parecer de profissionais renomados, seja pela existência de reiteradas decisões judiciais, a banca examinadora pode exigir que o candidato assinale uma resposta só, desde que oriente o mesmo sobre qual linha deva seguir.

Tal orientação deve se dar de forma objetiva e clara, preferencialmente no edital do concurso.

Nestes casos, havendo a presença da boa-fé objetiva, o Poder Judiciário não deve agir porque, mesmo existindo várias respostas para a assertiva, o administrador foi claro ao exigir este ou aquele posicionamento. Não há, portanto, ilegalidade.

Caso a banca exija determinado posicionamento doutrinário em detrimento de outro, sem embasar a exigência no edital, ou no corpo da prova, o candidato terá o direito de obter a pontuação se responder com fundamento em qualquer posicionamento devidamente fundamentado, sob pena de não haver qualquer parâmetro de atuação, onde a prova se aproximará de um jogo de adivinhação.

Dentro destes aspectos, a boa-fé objetiva é instituto norteador da legítima atuação da Banca Examinadora, devendo estar sempre presente.

2.2.3. ERRO GROSSEIRO, CARACTERIZADOR DE ILEGALIDADE

Aqui reside o maior problema encontrado na interpretação do que decidido no Tema 485 do STF, o qual pretendemos sanar com a explanação dos motivos, todos embasados e comprovados por decisões recentes, provenientes dos Tribunais Regionais Federais e das Cortes Superiores.

Pois bem. Se fizéssemos uma interpretação rasa e literal do que decidido pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 632.853, em 23/04/2015, chegaríamos a conclusão de que erros grosseiros cometidos pela Banca Examinadora não poderiam ser corrigidos pelo Judiciário, situação que vai de encontro ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, assim definido no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Na realidade, a redação do Tema 485 do STF impede que o Judiciário adentre sobre a discricionariedade administrativa da Banca, dada a soberania da mesma.

Entretanto, há permissão da atuação do Poder Judiciário quando a banca exigir questões fora do edital. Ocorre que a atuação do Judiciário não pode se limitar a este único aspecto.

Demais ilegalidades presentes no concurso devem ser sanadas pelo Judiciário, sob pena de um processo de seleção criterioso e legal tornar-se uma forma de aparelhamento do Estado por candidatos mau preparados, seja devido a negligência da Administração Pública ao elaborar um certame, seja através do dolo de um administrador com más intenções, aparelhando o Estado com candidatos selecionados por concursos fraudulentos.

Neste artigo, portanto, comprovaremos que a atuação do Judiciário em concurso público vai além da análise de congruência da matéria exigida no edital com a questão em si. Erros grosseiros, perceptíveis à primeira vista, configuram ilegalidade, apta a legitimar a atuação do Poder Judiciário.

Tal entendimento é justo, legítimo e legal.

Legal porque o ato administrativo ilegal deve ser anulado. Observe-se que o Art. 5º, inciso II da Constituição Federal dispõe que só a lei obriga, ou seja, o Ato Administrativo, para obrigar, deve decorrer diretamente da lei. Some-se a este enunciado constitucional o disposto no artigo 2º da Lei nº. 9784/99, que assim dispõe:

“Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”

Legítimo porque o Judiciário tem a competência constitucional de sanar ilegalidades levadas à ele. O art. 5º, inciso XXXV da Constituição, c/c os princípios norteadores da Administração Pública elencados no caput do art. 37º norteiam a legitimidade do ato.

Ou seja, é “a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”[5]

Justo porque, sendo o concurso público meio para selecionar o candidato melhor preparado, questões devem ser aplicadas com objetividade e com técnica apurada, de modo a efetivamente medir o conhecimento daquele candidato apto a exercer o ofício.

Sobre o autor
Felipe Cesar Michna

Procurador Federal. Graduação em Direito pela UFPR. Pos graduado em Direito Público. Pos graduado em Direito e Processo Tributário pela Universidade Positivo. Membro da Comissão da Advocacia Pública da OAB-PR subseção de Umuarama

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MICHNA, Felipe Cesar. Sindicabilidade do ato administrativo em provas de concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5576, 7 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69304. Acesso em: 21 nov. 2024.

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