“Mas as pessoas cultas haviam sido atraídas por esses apelos à vaidade e orgulho nacional, porque eles permitiram que todas as pessoas projetassem suas esperanças e medo no líder. Em razão dessas generalizações, as pessoas escutavam o que queriam ouvir.” (Os julgamentos de Nuremberg, Paul Roland, p.142)
Em eleições, militantes ressuscitam os surrados ismos do século XX, precedidos de comuni, imperiali, fasci etc. Mas é o narcisi que reina absoluto.
É que o ser humano tem a necessidade de se julgar pertencente a grupos de pessoas superiores, iluminadas, com direitos de nascença inalienáveis… e exclusivos! Os preconceitos têm essa origem.
Ao discriminar, não se pretende ofender os outros, mas elogiar a si mesmo. É uma declaração implícita – pública ou individual – de sua própria condição. Ofende-se o outro, adjetiva-se o outro, mas refere-se a si próprio: sou homem, logo racional; branco, portanto branco; hétero, logo normal; pai de família, portanto respeitável; cristão, acima de suspeitas; sulista, logo inteligente e trabalhador; rico, por isso competente.
O preconceito, assim como o riso[1], é um ato grupal. Discrimina-se por imitação e aprendizado. Ensina-se a discriminar para manutenção de privilégios, do status quo. O preconceito é tido, então, como uma necessidade, quase uma obrigação. Mesmo quem não se considera superior é instado a discriminar, sob pena de ser hostilizado – discrimina-se para não ser identificado como pertencente ou simpatizante do grupo que se supõe inferior.
Imagine-se a seguinte cena: jovens brancos e “bem nascidos” fazem escárnio em local público (restaurante ou bar), bebem muito, falam alto, perturbam pessoas, são inconvenientes com as mulheres. Os incomodados os definem como mal-educados, grosseiros, covardes. Mas se os vândalos fossem negros, seriam definidos como… negros! Alguns ainda fariam um gesto na própria pele para justificar que aqueles caras agem assim por sua origem. E se esse grupo de arruaceiros fosse de transexuais? Dizer-se-iam que só podiam ser transexuais, e assim por diante.
O preconceito cria, assim, defeitos comuns a todos os integrantes de um grupo. Considera-se que não há desvios individuais, mas coletivos, como se fosse uma característica negativa das pessoas que se busca inferiorizar (“gostam de aparecer”, “falam alto para chamar a atenção”, são “preguiçosos” ou “perigosos). De forma sutil e inteligente, não se nomina um defeito pontual, mas o grupo “desviado” a que a pessoa pertence. Se uma pessoa de um grupo discriminado é acusada de corrupção, por exemplo, logo debocham: isso é que dá conceder poderes a mulheres, ou a negros ou a índios etc.
Em contrapartida, as pessoas não discriminadas – ou que, embora discriminadas, tentam inferiorizar outros – se dão ao luxo de se julgarem portadoras de todas as qualidades apenas por pertencerem a determinada classe. Caso alguém de seu grupo pratique malfeitos, a distorção é considerada pontual, apenas daquela pessoa, e não da categoria a que ela pertence. Ao indivíduo “malcriado” se concede a graça de se redimir, pois continua pertencendo à casta privilegiada. É como se o ponto estivesse momentaneamente fora da curva, mas ainda acima dos “imperfeitos” de nascença.
O instrumento mais poderoso para se discriminar é o humor preconceituoso. Ao rir do outro, iluminando seu suposto defeito, o ser humano faz um discurso. Sem falar de si, revela o que acha de si próprio e de seu grupo, e convida os seus iguais a punirem o "inferior" com o riso. Segundo Bergson:
“A comicidade é aquele aspecto da pessoa pelo qual ela parece uma coisa, esse aspecto dos acontecimentos humanos que imita, por sua rigidez de um tipo de particularíssimo, o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim, o movimento sem a vida. Exprime, pois, uma imperfeição individual ou coletiva que exige imediata correção. O riso é essa própria correção. O riso é certo gesto social, que ressalta e reprime certo desvio especial dos homens e dos acontecimentos.”[2]
Mas o riso, como punição, não basta para o preconceituoso. Seu humor ideológico instiga, incentiva e, mais assustador, naturaliza a violência. É o embrulho “inocente” que torna palatável seu recheio: ódio puro. Não à toa, o discurso de ódio sério e afirmativo está em desuso, pois, facilmente identificado, gera consequências sociais (rejeição por muitos) e legais (punição); mas o escárnio, seu principal instrumento, ainda acode os narcisos, assim como os xingamentos salvam os incapazes de argumentar num debate.
Em sua defesa, os narcisistas proclamam que é apenas brincadeira, o riso pelo riso. Mas a piada é sempre a mesma: não há novidade, criatividade, nem raciocínio que leve a uma reflexão, que é o que se espera do humor dito inteligente. O preconceito se alimenta de piadas prontas, históricas, que massageiam o ego de quem as profere e daqueles que, com sonoras gargalhadas, concordam com elas. Camuflam-se numa suposta inocência para desprestigiar o inconformismo de suas vítimas ou das pessoas que deles discordam. Por isso, os narcisos também adoram notícias falsas, desde que contrárias ao outro.
A defesa de condutas violentas contra “o outro” é feita como “brincadeira”, mas cria um impulso psicológico para que indivíduos cometam crimes ou se sintam confortáveis com sua prática, pois contam com o apoio moral de seus iguais.
De fato, toda violência preconceituosa é precedida de um deboche, uma piada, uma risada sarcástica. O agressor pretende provocar uma reação do ofendido, para justificar a violência, ou para criar coragem de cometê-la (o corpo ridicularizado e inferiorizado é mais violentável).
Nesse esforço, desumanizar o outro, comparando-o a um objeto ou animal, é o caminho para a exclusão e controle social. O inferior é passível de ser punido, violentado, para purgar seu defeito, sua fraqueza, ou simplesmente para colocá-lo em seu lugar. O feminicídio íntimo atinge o corpo de um ser-objeto, que não se admite vida própria, fora da tutela (e da vaidade) do dono; o racismo atinge o corpo de um ser equiparado a um animal de carga, a um macaco ou a um inseto.
Mas é só brincadeira, defendem-se os narcisos…
Os feminicidas discordam. “Não admitirei ser chamado de corno”, é uma das justificativas brandidas no Tribunal do Júri. A piada de “Corno” sempre provoca um riso coletivo e orgástico, que manda o macho tomar uma atitude violenta, sob pena de entrar na categoria dos “cornos mansos”. Tome-se o caso de um rapaz goiano que matou sua esposa, 21 anos, porque seu nome foi divulgado numa lista denominada “ex-cornos e atuais cornos assumidos de Nova Crixás”. O advogado do acusado minimizou o ato: “Foi uma tragédia que abalaria a moral de qualquer homem. Imagina um homem tendo de enfrentar a sociedade e os amigos com essas chacotas” [3].
O controle sobre o feminino cria uma classe de mulheres recatadas e do lar, que usa roupas e transita em locais adequados. As transgressões são punidas com os tradicionais xingamentos a elas reservados, que sempre precedem os espancamentos, estupros e feminicídios.
Não por acaso, os feminicidas se orgulham de confessar o crime, embalados pelos deboches dirigidos às vítimas por internautas: “mereceu”, “provocou”, “Alguma ela aprontou”. Quando sobrevivem, as vítimas se esmeram, perante o juiz, para se colocar na categoria certa: “vivo do trabalho pra casa”, “cuido bem dos filhos”, “sou fiel” – é como se houvesse motivo justo para a violência.
Mas é só brincadeira, insistem os narcisos …
Hans Frank discorda. Em reuniões políticas, na década de 1930, oradores de certo partido causavam bocejos na plateia, enfastiada com a peroração sobre a grandiosidade de suas ideias, de seu povo, de sua nação. A maioria das pessoas os consideravam aloprados[4].
Mas aquele partido aprendeu que piadas contra um grupo vulnerável animava a plateia: aplausos e risos duravam longos minutos. Uma empatia, um vínculo “natural” surgia entre orador e ouvintes. A piada pronta os colocou no mesmo patamar de superioridade e cimentou o caminho para a barbárie. Nas propagandas, passou-se a colar a imagem do “outro” a ratos, que poderiam facilmente ser eliminados pelos inseticidas recém-criados. Em 1940, estreou em Berlim o filme “O Eterno Judeu”, que disparou:
“De todos os animais, os ratos são os mais destrutivos e nocivos. Assim também são os judeus e sua mentalidade”.[5]
Tentar colar no outro seus próprios defeitos é obsessão dos preconceituosos. O chefe de propaganda, Goebbels, profetizou: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. O deboche anestesiou toda uma geração.
Durante a guerra, já iniciada a matança de crianças em câmaras de gás, Hans Frank reuniu militares no parlamento da Galícia para comemorar o assassinato de 75.000 pessoas no mês… e ironizou: “Por acaso, eu não vi nenhum judeu hoje… O que aconteceu com os milhares de índios de pés-chatos que viviam aqui?”. Entre gargalhadas da plateia, replicou o governador do distrito (Wachter): “Os culpados (judeus) já foram julgados” [6].
Mas é só piada, protestam os narcisos…
Dylann Roof discorda. Em junho de 2015, antes de eliminar nove negros a tiros numa igreja de Charleston/EUA, o jovem branco postou num site: “ Não temos Skinheads, nenhum KKK (Ku Klux Klan) real, ninguém está fazendo nada a não ser falar na internet. Bom, alguém tem que ter um pouco de coragem de levar isso ao mundo real”. O humor racista divulgado na internet foi a deixa para a matança. O sentimento de pertença a um grupo indeterminado de pessoas o reconfortou.
Na esteira do luto pós-massacre, a esposa de um ministro israelense postou na internet: “Sabe qual é o café de Obama? Preto e fraco”. Após a repercussão da piada, a mulher deletou-a e pediu desculpas. O poder teme o poder. Ficou a lição que todos sabemos de cor: o humor voltado a inferiorizar pessoas, além de incentivar a violência, anestesia o sentimento de compaixão em face dos violentados. A gargalhada daquela mulher e dos que se divertiram com ela é a mesma de Dylann, de Hans e dos ofensores que pululam na internet, no Brasil ou na China. É a mesma que inflamou a Ku Klux Klan (KKK). É uma gargalhada histórica, compartilhada por pessoas de lugares e épocas diferentes. O humor preconceituoso mata.
Mas é só brincadeira, gritam os narcisos, armando os punhos...
Na eleição marcada por inédito atentado contra um presidenciável, prometeu-se combater a corrupção e a criminalidade, flagelos nacionais, com medidas ultrapassadas e supersticiosas. Martelou-se que a democracia, que possibilitou a revelação inédita das entranhas corruptas do Estado, é um mal por ampliar direitos antes exclusivos. Gritos e xingamentos são o remédio para (re)colocar as coisas em seu lugar. Militantes foram sarcásticos, embora honestos: “Não será bom fertilizante, mas o melhor pesticida”; até a Ku Klux Klan vibrou: “Ele soa como nós”. A banalidade do mal culminou com o assassinato de um baiano (por acaso, negro) e com a tortura, por vários homens, de uma gaúcha de 19 anos (por acaso, mulher), em quem gravaram, à canivete, o símbolo da ideologia de Hans Frank, aquele piadista dos anos 30.
Preconceito não é engraçado, é violência. Mata e fere. Não pode ser confundido com o humor de resistência, legitimado pela liberdade de expressão para o exercício da crítica, do desabafo, enfim, para questionar o poder ou revelar as contradições e misérias humanas. Por isso, o humor preconceituoso deve ser rechaçado pelos mecanismos de controle democráticos, para garantir a dignidade humana e a igualdade, objetivos constitucionais da República (art. 1º e 3º).
Por fim, é preciso reconhecer que não existem, de nascença, narcisos ou vítimas. Há situações que, dependendo do contexto, nos tornam narcisos ou vítimas. Todos somos preconceituosos em algum grau. O desafio está em controlar o narciso em nós e olhar o outro como se fosse nós mesmos. Não é preciso anuir ao outro, mas entendê-lo, ouvi-lo e influenciá-lo para que faça o mesmo. Menos redes sociais, mais livros, pode ajudar.
Notas
[1] Henri Bergson. “O riso – Ensaio sobre a significação do cômico”. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
[2] Henri Bergson. “O riso – Ensaio sobre a significação do cômico”. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
[3] “Adultério: do Assassinato à Indenização”, Fausto Rodrigues de Lima, correio Braziliense, 19/1/2009
[4] Até a chegada de Hitler ao poder, havia alemães que desconfiavam dele e até o ridicularizavam pela figura exótica (bigodinho) ou pela saudação nazista (movimento típico de miquinhos amestrados ou bonecos de corda).
[5] Filme “Arquitetura da Destruição”, dirigido por Peter Cohen, Suécia, 1992.
[6] Segue trecho do discurso de Hans Frank na Galícia ocupada:
HANS FRANK: “Party Comrade Wächter, I have to say you did well
Lemberg (capital da Galícia) is once again a true and proud German City
I do not speak about the Jews that we still have here
We will deal with them of course.
By the way, I hardly saw any of them today
What has happened?
I was told that this city used to swarm with thousands and thousands of these flat-footed Indians [sic] but I could see none
You have not done anything nasty to them, have you?”
OTTO WACHTER: “The guilty ones have already been judged.” (Documentário “O que nossos pais fizeram? Um legado nazista”, dirigido por David Evans, 2015).