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Furto de uso militar: por uma leitura restritiva

Agenda 28/11/2018 às 08:35

Na conduta de furto de uso, há debate sobre sua criminalização ou não. No direito penal comum, houve entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o ato não merece atenção penal, já que não há tipificação no Código Penal.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende expor a figura do furto de uso, com suas diferenças de consequência no Direito Penal Comum e no Especial Militar. A distinção reside que o Código Penal Comum não tipificou esta conduta, levando a sua atipicidade, enquanto que no Código Penal Militar ela existe, tendo pena de detenção. 

Finalidade importante é demonstrar as razões que geram estes dois resultados - atipicidade e pena de detenção - sobre furto de uso. No Direito Penal Comum há prevalência da intervenção mínima da matéria penal sobre as relações sociais, ou seja, apenas o que realmente atinge bens jurídicos relevantes merece tipificação penal. Nesta lógica, a identificação de um uso sem autorização seria um irrelevante penal. Já na órbita militar, a hierarquia, o respeito, a correção de atitudes e a moralidade perante a corporação são valores e deveres militares, sem os quais a missão fica comprometida, atingindo assim seu destino constitucional.

Feita a necessidade da manutenção do furto de uso militar, parte-se para o devido enquadramento desta figura. Doutrinadores auxiliam na criação de requisitos, mas o contexto da conduta é ainda fator fundamental para sua correta identificação. A necessidade do artigo propor uma leitura atenciosa e restritiva ao furto de uso, advém de decisões que ora se atém aos critérios adotados pela doutrina, ora expandem para além dos requisitos, observando a situação fática em que a conduta foi praticada. Parte-se da defesa que, por se tratar de benefício penal, por gerar absolvição, sua aplicação será restritiva para acarretar a devida resposta do Estado e da sociedade.


2 FURTO DE USO MILITAR: POR UMA LEITURA RESTRITIVA

No Direito Penal Comum, a conduta de fazer uso momentâneo de coisa e restituí-la logo depois, sem depreciação, não caracteriza crime. A razão disso é a ausência de vontade de apoderamento da coisa, de dolo, e, como o crime de furto exige este elemento subjetivo, não havendo assim furto culposo, o fato acaba por não ter adequação com a norma penal, não tendo sequer tipicidade, um dos elementos para que haja crime, logo, não há sua configuração. Entretanto, no âmbito militar, o legislador optou por criminalizar esta conduta. Esta postura do Código Penal Militar está atrelada à extrema necessidade de correção de atitudes, respeito e disciplina ao militar, tendo inclusive como primeiro sujeito passivo a Administração Pública Militar, e não a vítima proprietária da coisa.

A partir do momento que o furto de uso cometido por militar é visto como atentado aos próprios valores militares e à sua corporação, o legislador preferiu criminalizar a conduta, ao invés de deixá-la na atipicidade. A correção de atitudes é exaltada em diversas normas e códigos de conduta militares. Por ela, a organização transmite seus valores, adquire poder de influência sobre os subordinados e tem como resultado o cumprimento da missão. Neste cenário, a conduta de tomar bem alheio, sem permissão, ainda que por breve momento, não é tolerável, não sendo visto como mero ilícito civil e atipicidade penal. O tratamento dado é proporcional, qual seja detenção de até seis meses, podendo ter pena aumentada pela metade se for veículo motorizado.

A mensagem passada pela Justiça Militar é de que condutas ilícitas sobre o bem de pessoas, demonstra o quão aquele agente não obedece regras e noções de cidadania, temas ímpares para o militarismo. O objetivo não é apenas resguardar o aspecto patrimonial, mas, principalmente, a moral administrativa. Neste pensamento, o qual, adere-se, mesmo que haja devolução breve do bem furtado, deverá haver a sanção penal considerando que houve afronta à corporação da Administração Militar, envolvida em elevada disciplina e respeito, por serem condições de claro, imediato e perfeito cumprimento da tarefa. Está lógica de ressaltar a força da moralidade administrativa também ocorre na relativização do princípio da insignificância. O Superior Tribunal de Justiça não permite sua aplicação, com a consequente absolvição, quando envolver crimes contra a Administração Pública, na concepção de que a moralidade administrativa se sobressai sobre a conduta ilícita do agente. Para ilustrar, traz-se o mencionado entendimento:

Súmula 599 STJ: O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a Administração Pública.

A análise que se extrai deste rigor militar é de que os valores devem ser respeitados e, então, a leitura do furto de uso deve ser restritiva, já que ela beira ao ilícito penal. Sendo benefício por gerar atipicidade da conduta, sua leitura será fechada. A leitura aberta cria risco à posse de bens, desestabiliza a paz social e transmite ideia de desrespeito aos bens alheios, não sendo próprio de um Estado Democrático de Direito. Para tanto, criaram-se requisitos para o furto de uso, como:

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a) assenhoramento definitivo, entendido como “o ânimo de apossamento definitivo, espelhado pelos termos para si ou para outrem” (NUCCI, 2007, p. 690).

b) breve uso.

c) não haja prejuízo ou dano.

Nesse sentido, a jurisprudência:

SENTENÇA CONDENANDO O RÉU PELA PRÁTICA DO CRIME DE FURTO QUALIFICADO PELO ABUSO DE CONFIANÇA E PELO CONCURSO DE PESSOAS, DELITO PREVISTO NO ARTIGO 155, § 4º, INCISOS II E IV, DO CÓDIGO PENAL. APELO DEFENSIVO BUSCANDO A ABSOLVIÇÃO, POR ATIPICIDADE DA CONDUTA DE FURTO DE USO, OU A REDUÇÃO DA PENA PELA ATENUANTE DA CONFISSÃO.

Como cediço, para a caracterização do crime de furto é necessário que o agente subtraía a coisa alheia móvel, para si ou para outrem, com animus de assenhoramento. Além da vontade de subtraiar, exige-se a presença do elemento subjetivo do tipo específico que se traduz de apossamento definitivo do que não lhe pertence, o que não se verifica. O réu desde a sua prisão em flagrante, declarou que apenas pretendia pegar o carro emprestado e devolver na mesma noite, o que foi confirmado pela prova nos autos, tendo o veículo sido restituído íntegro. (0007506-21.2012.8.19.0028 – APELAÇÃO – 1ª Ementa Des(a). LUIZ ZVEITER – Julgamento: 02/08/2016 – PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL APELAÇÃO CRIMINAL. TJRJ. Data de Julgamento: 02/08/2016, grifo nosso).

Temos de ter extremo cuidado na configuração do furto de uso. Todo o caminho do crime e as circunstâncias do fato devem ser estudadas. Analise-se o acórdão do TJ/RJ abaixo. Acusado arromba portão de casa, consome bens da residência e sai com quadriciclo. A decisão configurou furto de uso porque os pertences do acusado ficaram na casa, passando a ideia de que retornaria. Perceba que o agente que teve a audácia de invadir domicílio, consumir produtos, mereceu análise de que teria a sensatez de voltar à residência, pois lá havia deixado seus pertences. Na análise do contexto, a sensatez de retornar é derrubada pela insensatez pela invasão de domicílio e consumo de bens alheios. Entende-se que não haveria furto de uso, visto que o agente já até invadiu o domicílio. Seguem dados sobre a decisão judicial:

0001969-96.2016.8.19.0030 – APELAÇÃO - 1ª Ementa Des(a). JOAQUIM DOMINGOS DE ALMEIDA NETO - Julgamento: 27/06/2017 - SÉTIMA CÂMARA CRIMINAL APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO E FURTO QUALIFICADO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. Conforme se depreende das declarações supracitadas, o apelante foi até à residência da vítima, oportunidade em que arrombou o portão, adentrou na casa, lá dormindo e fazendo refeições, se comportando como se proprietário fosse inclusive fazendo uso dos pertences que guarneciam a casa. Posteriormente, saiu dirigindo o quadriciclo que se encontrava na casa, deixando claro que pretendia voltar, ao deixar lá seus bens pessoais. Assim, pelo que se percebe da dinâmica incontroversa dos fatos a questão é de caráter civil, possessória, não se podendo admitir liquidez do sistema penal para tratar pela via extrema indistintamente qualquer conflito resultante da convivência humana. As garantias fundamentais do processo e do direito penal devem ser mantidas como contenedores do sistema, com mínima intervenção penal no fato social. O próprio alegado furto, que por si só afastaria por consunção eventual violação de domicílio, esbarra na dúvida de a apreensão seria para mero uso ou não. À conta de tais considerações, quer pela regra de intervenção mínima do direito penal, quer pela consunção, a solução absolutória se impõe. PROVIMENTO DO RECURSO. Íntegra do Acórdão - Data de Julgamento: 27/06/2017

No âmbito militar, a atenção se mantém. Em recente decisão, o Superior Tribunal Militar – STM, condenou por unanimidade aspirante à oficial médico do Exército por furto de uso de ambulância. O oficial era responsável pelo atendimento do contingente da Brigada de Infantaria Paraquedista em operação de pacificação no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Pela denúncia do Ministério Público Militar, em determinada hora da noite, o aspirante à oficial constrangeu o motorista da ambulância militar a entregar para si o seu fuzil e demais equipamentos necessários à missão e o obrigou a dirigir até o bairro da Lapa. Inicialmente foi denunciado por furto de uso do armamento e da ambulância, tendo sido posteriormente absolvido do furto do armamento, mas mantida a condenação no furto da ambulância, sendo pena aumentada por ser veículo motorizado e ser a única que prestava atendimento na operação.

Por estas decisões, percebe-se que a análise contextual da conduta é de suma importância. Os requisitos da presença de dolo de se assenhoramento, uso momentâneo e devolução no mesmo local, sem dano, são fundamentais, uma vez que dão um parâmetro do que seria furto de uso. Mas a análise situacional, casuística faz diferença, auxiliando sobremaneira a correta aplicação da pena e realização de justiça. Cabe acrescentar que por vezes se questiona a existência deste tipo penal na vida militar. Entende-se que sua aplicação é adequada ao ambiente militar e, que este rigor deveria ser levado ao Direito Penal Comum, não para propor criação do tipo penal furto de uso, mas sim para gerar interpretação rigorosa.


3  CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do presente artigo possibilitou esclarecer as diferentes consequências do furto de uso nas vidas civil e militar. Diante do crime de furto de uso no mundo militar, analisou-se sua pertinência e necessidade de manutenção. No furto de uso civil, sua atipicidade é compreensível principalmente pela falta de dolo na conduta, porém, seu enquadramento deve ser restrito, assim como já ocorre no Direito Penal Militar.


4 REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 599. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20%27599%27).sub. >. Acesso em: 01. nov. 2018.

BRASIL. Superior Tribunal Militar. Apelação Criminal 0001969-96.2016.8.19.0030 –Des(a). Joaquim Domingos de Almeida Neto - Julgamento: 27/06/2017.

BRASIL. Superior Tribunal Militar, 2018. Disponível em: <https://www.stm.jus.br/informacao/agencia-de-noticias/item/5177-medico-e condenado-por-usar-indevidamente-ambulancia-e-armamentos-que-estavam-a-servico-das-forcas-de-pacificacao-do-complexo-da-mare>. Acesso em: 01. nov. 2018.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral: Parte Especial. 3. ed. rev. Atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 690.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Celio Roberto Canuto. Furto de uso militar: por uma leitura restritiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5628, 28 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70286. Acesso em: 2 nov. 2024.

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