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A representação comercial autônoma e o contrato de agência

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Agenda 01/08/2005 às 00:00

A lei especial dos representantes comerciais não está revogada pelo Código Civil de 2002, que não logrou êxito em unificar o direito civil e o comercial, tampouco encerrou ou decretou a inexistência das obrigações comerciais.

I – INTRÓITO

As dificuldades advindas da conclusão de negócios jurídicos pelas próprias partes contratantes, em virtude de diferenciados motivos, dentre os quais se destaca a incapacidade material e humana, levaram ao surgimento de uma atividade (até então, não profissionalizada) de intermediação. Tal atividade tinha por finalidade fomentar a realização daqueles negócios (concluindo-os ou, apenas, agenciando propostas).

A idéia central, portanto, consistia no fato de que, se os referidos negócios fossem realizados diretamente pelas partes contratantes, provavelmente não lograriam êxito em serem concretizados. Neste contexto, ou seja, para completar esse hiato da atividade empresarial, é que emergiu a representação comercial, como verdadeira fonte auxiliar da atividade empresarial [01].

As origens do instituto da representação remontam à legislação européia (REQUIÃO, 1994:04-08), em particular, ao Código Civil italiano e à Lei Germânica sobre Representação Comercial, maiores influências do Direito brasileiro. No plano nacional, pode-se dizer que as origens remetem à própria necessidade premente (oriunda da evolução das práticas comerciais e do desenvolvimento dos mecanismos de comunicação) de se promover a eficaz circulação de riquezas (especialmente, a de produtos), viabilizando a chegada ao segmento consumidor.

Com efeito, registra Rubens Requião (1994) que, nos idos antigos, a fabricação dos produtos, por si só, não garantia a sua chegada ao público alvo, uma vez que as dificuldades de comunicação e transporte eram verdadeiras barreiras à expansão e realização dos negócios. E este cenário ainda se agravava, pois, em um estágio primitivo, o próprio fabricante (artesão) era também o vendedor. Com a evolução produtiva, surge um novo paradigma: o empreendedor não realiza a venda direta ao segmento consumidor, uma vez que, reconhecidamente, não possui condições de explorar, também, a atividade da venda. Assim, passava o empreendedor a recorrer à mão de obra alheia e à estrutura de intermediadores capazes de efetivar a circulação do produto ou serviço [02].

Necessitando, então, o empresário de transpor os limites físicos de seu estabelecimento, em virtude do volume do comércio, tornou-se importante – estrategicamente – que alguns de seus vendedores atuassem em outras praças, a fim de captar clientela ainda não cativada.

Essa nova acepção da atividade fez nascer a figura do viajante ou pracista (realizavam os negócios em nome próprio, mas, no interesse do produtor/comitente: "comissão mercantil" [03]). Em seguida, dentro de uma nova atmosfera, os pracistas deixam de ser empregados ou comissários, para terem como atividade precípua o agenciamento de negócios (sem mais possuir vínculos laborais e de exclusividade com o fabricante), de forma autônoma e independente. Aparece, neste momento, o fenômeno da representação comercial.

A representação comercial, então, embora regulada apenas em 1965, dissiminou-se no meio comercial. Isto se deu, ademais, provavelmente pelo fato de o exercício da representação não demandar maiores qualificações profissionais, podendo ser, a princípio, exercida por qualquer pessoa, mesmo sem capital, bastando ter capacidade para a atividade (agenciamento de negócios) [04].

Nada obstante a atividade já ser desempenhada no passado, os normativos jurídicos, entre eles o Código Comercial Brasileiro de 1850, não cuidavam de discipliná-la. A despeito disso, ela se consolidou. Os movimentos da classe (entre eles, o sindical [05], cuja razão de existência era a profissão de fato, já que alguns sindicatos foram constituídos antes mesmo da regulamentação legal da profissão) afloraram-se e a luta pela legalização passou a ser cotidiana (com destaque para as manifestações em eventos e seminários acadêmicos).

A regulamentação da profissão, contudo, não foi tranqüila, tampouco rápida. O legislador brasileiro, embora já tivesse ciência do efetivo exercício da representação comercial, somente após anos de muita pressão reconheceu a importância da atividade e a necessidade de se "dar maior nitidez aos direitos e deveres recíprocos" (SAAD, 2003:09).

Nessa nebulosidade é que, cedendo às pressões (entre as quais merece atenção especial o Congresso de Araxá/MG, de 1949, e o 1º Congresso Nacional dos Representantes Comerciais, em São Paulo/SP, em 1961) [06], foi editada a lei n. 4.886/65, após veto total do Projeto de Lei 2.794/61, com alteração do substitutivo n. 38/63, apresentado pelo então Senador Eurico Resende; projeto este que pretendia igualar a representação ao contrato de trabalho dos vendedores, pracitas e viajantes (REQUIÃO, 1994:10).

O "representante", pelo que se infere daquela lei especial, poderia ser definido como aquele que desempenha a mediação para a realização de negócios mercantis;; figura responsável pela mediação do negócio jurídico em nome de uma das partes [07]. Durante muitos anos, essa "essência" foi o entendimento predominante entre os doutrinadores brasileiros.

Recentemente, com a promulgação da Lei n. 10.406/2002 – Código Civil – e a conseqüente inserção do contrato de agência no ordenamento privado, o legislador suscitou uma questão doutrinária interessante: teria o Código revogado a Lei n. 4.886/65 e o antigo contrato de representação comercial autônoma, substituindo-o pelo novel contrato de agência?

A resposta, objetivo do presente trabalho, é árdua. Senão, veja-se.


II – A REPRESENTAÇÃO COMERCIAL E AGÊNCIA NO EXTERIOR E NO BRASIL

As bases da conhecida representação comercial remontam ao Código Civil Italiano, de 1942, mais precisamente ao instituto da agenzia. Ao traduzir literalmente agenzia, temos como correspondente, em vernáculo, a palavra agência. Entretanto, isto não equivale a dizer que a agência do direito brasileiro seja idêntica à agenzia do direito italiano.

Ora, segundo a definição do codex italiano, pelo contrato de agência "assume uma parte, estavelmente, o encargo de promover, por conta de outra, contra retribuição, a conclusão de contratos em uma zona determinada" [08] (tradução livre). De início, verifica-se que o instituto italiano assemelha-se ao atual contrato de agência, previsto no vigente Código Civil brasileiro, entretanto, tem por natureza a conclusão do negócio pelo agente, o que não é elemento do contrato de representação de comercial no Brasil. Igual natureza à Italiana está prevista, respectivamente, na legislação Francesa, Suíça e Alemã, verbis:

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"É agente comercial o mandatário que, a título de profissão habitual e independente, sem ser ligado por um contrato de locação de serviços, negocia e, eventualmente, conclui compras, vendas, locações ou prestações de serviços, no nome e por conta de produtores, de industriais ou de comerciantes." [09]

"O agente é aquele que assume a título permanente, a obrigação de negociar a conclusão de negócios para um ou vários mandantes ou de concluir em seu nome e por sua conta, sem ser ligado em relação a eles por um contrato de trabalho." [10]

"É representante de comércio toda a pessoa que, a título de exercício de uma profissão independente, seja encarregada permanente de servir de intermediária em operações negociadas por conta de um empresário ou de os concluir em nome deste último. É independente quem pode organizar o essencial de sua atividade e determinar seu tempo de trabalho." [11]

Nota-se que, na legislação européia, a agência ou representação comercial (nomenclatura preferida pela lei alemã) tem por finalidade a intermediação de negócios, contudo, sempre aliada à possibilidade de poder o "agente" concluir o negócio.

A lei brasileira de 1965, todavia, em regra (parágrafo único do art. 1º), excepciona a possibilidade do representante comercial autônomo realizar atos de conclusão do negócio. E, ao prever a possibilidade de conclusão, determina que se apliquem as normas atinentes ao mandato mercantil, o que conduz à conclusão de que o fechamento do negócio pelo representante comercial não é ato caracterizador da natureza jurídica da representação comercial.

Assim, embora a nomenclatura utilizada pelo ordenamento brasileiro seja "representante" e a adotada por parte dos países europeus seja "agente", tem-se que todos os ordenamentos legais trataram do mesmo negócio jurídico, isto é, da atividade de intermediação de negócios. Entretanto, no Brasil, a conclusão do negócio não é ato caracterizador da atividade de representação comercial [12].

Respeitados juristas (entre eles, Ricardo Nacim Saad [13], Orlando Gomes [14] e Rubens Edmundo Requião [15]) corroboram com o entendimento exposto. Fran Martins (1976:337), em igual diapasão, anota que o representante comercial é "a parte que se obriga a agenciar propostas ou pedidos em favor de outra", mediante remuneração, com o fito de propiciar a realização, por terceiros, de negócios mercantis [16]. De fato, "o representante comercial somente agencia, não tem nenhuma ingerência interna nem deve influir no desfecho do ato mercantil." [17]

Logo, não podia ser outra a conclusão, mormente pelo fato do parágrafo único excepcionar a aplicação da legislação atinente ao mandato mercantil, o que conduz ao único raciocínio de que, nesse momento, isto é, no ato de fechamento do negócio, a essência do contrato deixa de ser predominantemente de representação comercial, de agenciamento, para ser de mandato mercantil.

Destarte, se os poderes de conclusão dos negócios em nome do suposto representado (então, mandante) não diferem o contrato de representação comercial dos demais contratos, não podem ser considerados como da essência do instituto.

Nada obstante, o conceituado Prof. Sílvio de Salvo Venosa sustentou que o contrato de representação comercial não foi revogado pelos artigos 710 e seguintes da Lei Federal n. 10.406/02, pelo fato de que a agência se difere – em sua própria natureza – da representação comercial. Revigorou, com isso, a tese difundida por Pontes de Miranda e, entre nós, acolhida pelo ilustre Rubens Requião [18]. Dos mais relevantes e respeitados argumentos do Prof. Sílvio Venosa extrai-se o seguinte:

"Portanto, tendo em vista a natureza diversa dos dois contratos, ao menos em nosso sistema, não há razão para identificar a representação autônoma com a agência. Ambos os negócios jurídicos devem ser tratados como contratos distintos. O representante comercial é mais do que um agente, porque seus poderes são mais extensos. O agente prepara o negócio em favor do agenciado; não o conclui necessariamente. O representante deve concluí-lo. Essa é a sua atribuição precípua. Não é necessário que o agente seja qualificado como comerciante. A agência pode ter natureza civil. O representante, por via da própria orientação legal, será sempre comerciante. Por sua vez, o distribuidor não terá os poderes de representação, situando-se em âmbito menor que o representante comercial." (VENOSA, 2003:576)

E foi a partir desse raciocínio [19] que o prestigiado civilista e professor afirmou que o Código Civil de 2002 não revogara a legislação especial da representação comercial. Categoricamente, disse que a nova lei geral não tratou do mesmo instituto regulado pela legislação específica dos representantes.

Em que pese a notória erudição e cultura jurídica do ilustre Professor, tal raciocínio não pode prevalecer, eis que está em voga não se a "agência" corresponde, de fato, à "representação comercial" (ou seja, se são figuras únicas, sinônimas), mas, se o instituto jurídico regulado no art. 710 da Lei n. 10.406/02 é o mesmo instituto jurídico regulado no art. 1º da Lei n. 4.886/65 [20], porém, adaptado ao novo sistema legal, qual seja, o direito privado unificado [21]. Esta é a resposta que, salvo melhor juízo, deve se buscar e não se, em tese, "agência" e "representação comercial" não são o mesmo negócio jurídico.

Nesse esforço, o exame minudente dos diplomas legais mencionados basta para a conclusão de que se trata dos mesmos institutos jurídicos, porém, sob rótulos e sistemas jurídicos diferentes. Confira-se:

Lei n. 4.886/65

Lei n. 10.406/2002

"Art. 1º. Exerce a representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para, transmiti-los aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios.

Parágrafo único. Quando a representação comercial incluir poderes atinentes ao mandato mercantil, serão aplicáveis, quanto ao exercício deste, os preceitos próprios da legislação comercial."

"Art. 710. Pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada, caracterizando-se a distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada.

Parágrafo único. O proponente pode conferir poderes ao agente para que este o represente na conclusão dos contratos."

Requisitos para caracterização

Requisitos para caracterização

a)pessoa jurídica ou física;

b)sem relação de emprego;

c)caráter não eventual;

d)por conta de outra pessoa;

e)mediação para realização de negócios mercantis, por agenciamento de propostas ou pedidos;

f)podem praticar ou atos de conclusão dos negócios;

g)neste caso, aplicar-se-á a legislação atinente ao mandato mercantil.

a)pessoa;

b)sem vínculo de dependência;

c)caráter não eventual;

d)à conta de outra pessoa;

e)realização de certos negócios;

f)podem praticar ou não atos de conclusão dos negócios;

g)aplica-se, no que couber, as regras concernentes ao mandato (art. 721).

O conteúdo jurídico dos institutos é o mesmo. Divergem-se, tão somente, no que toca à nomenclatura adotada (rótulo da espécie contratual) e em dois únicos aspectos: o Código Civil de 2002 retira a dualidade de pessoas "jurídica" e "física" do texto legal da lei dos representantes comerciais, bem como a expressão "mercantil" dos negócios agenciados.

A razão, entretanto, é muito simples e se respalda no novo sistema jurídico adotado que unificou (ainda que tenha sido uma unificação legislativa, irrelevante do ponto de vista dogmático), ou tentou unificar, o direito privado brasileiro. Como o Código Civil supõe não existir negócios civis e negócios mercantis, mas, apenas, negócios, não conservou a distinção legal. No que toca às "pessoas", a diferença é aparente: o Código Civil, por questão sistemática, em sua "Parte Geral", inseriu a disciplina das "pessoas" como gênero ("Das Pessoas", Livro I), de modo que as pessoas naturais e jurídicas são espécies (e foram tratadas em "títulos" - "Título I" e "Título II", respectivamente).

Aliás, relembre-se que o próprio projeto de lei do atual Código, durante sua tramitação legislativa, tratou o instituto como "representação comercial". No entanto, a Comissão Revisora substituiu a expressão por "contrato de agência e distribuição" [22]:

"22. Nesse contexto, bastará, por conseguinte, lembrar alguns outros pontos fundamentais, a saber: (...)

x) Reformulação do contrato de agência e distribuição para atender à lei especial que disciplina a matéria sob o título impróprio de ‘representação comercial’. As ponderações feitas pelos interessados foram levadas na devida conta, o que vem, mais uma vez, confirmar a diretriz seguida no sentido de se procurar sempre a solução normativa mais adequada aos distintos campos da atividade, conciliando-se os interesses das categorias profissionais com as exigências da coletividade." (Discurso na Exposição de Motivos) [23]

Denota-se que o art. 710 da Lei n. 10.406/02 "disciplina a matéria" que se encontra tratada no art. 1º da Lei n. 4.886/65, não havendo razão para se buscar, na teoria ou doutrina estrangeiras, elementos que fundamentem entendimento no sentido de que o contrato de agência não é o mesmo instituto que a representação comercial. Importa saber se a lei civil brasileira de 2002 tratou da mesma matéria [24] já disciplinada – o que fica indiscutível ao se examinar a Exposição de Motivos na parte supra transcrita – sob um novo rótulo, sem, todavia, alterar a substância (o conteúdo) além daquilo necessário à adaptação ao sistema, isto é, salvo pequenas inovações [25].

Destarte, sem embargo das opiniões diversas, a resposta sobre a questão central, qual seja, se a lei de representação comercial foi revogada pelo Código Civil atual, não se estriba a partir da possível diferenciação entre os institutos jurídicos. A resposta, data venia, encontra-se na teoria geral do direito intertemporal, nos princípios e, principalmente, na Lei de Introdução ao Código Civil de 1942.


III – A LEI ESPECIAL ANTERIOR E A LEI GERAL POSTERIOR

Dispõe a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu 2º, que não se destinando a lei à vigência temporária terá vigor "até que outra a modifique ou revogue". Explicitando as hipóteses de "modificação ou revogação", o § 1º do referido artigo positiva o princípio da lei posterior com duas nuances: a primeira, quando a lei expressamente declarar a lei anterior revogada e, a segunda, quando regular inteiramente a matéria ou for incompatível com a lei anterior. Em seguida, o § 2º preconiza que a nova lei geral que trate de temas afetos a lei especial, já existente, não a revoga nem a modifica.

Sob esses preceitos, tem-se que a nova e posterior lei geral que venha a estabelecer disposições panorâmicas a par das já existentes em lei especial, não revoga tal lei especial (nem ab-roga nem derroga), tampouco a modifica. A lei anterior, portanto, conserva-se incólume.

Assim sendo, a resposta almejada pelo presente estudo aparenta ser de fácil alcance, contudo, não é tão simples, pois, como se definiu anteriormente (item II), o contrato de agência é a mesma figura jurídica que a tratada pela Lei n. 4.886/65, o que impõe verificar se houve ou não revogação tácita, já que a expressa, em vista das disposições finais e transitórias da Lei n. 10.406/2002 (especificamente, artigo 2.045), não houve.

A propósito, insta lembrar o ensinamento de Washington de Barros Monteiro (1997:27) segundo o qual a revogação tácita pode se dar quando for a lei posterior incompatível com a lei anterior ou quando a lei posterior regular inteiramente a matéria já regulada na pré-existente lei. Nesse sentido, indaga-se se a Lei n. 10.406/02 regulou inteiramente a matéria tratada na Lei n. 4.886/65.

A resposta é negativa. Ora, a Lei n. 4.886/65, diversamente do Código Civil (art. 710), não teve por objeto regular o "contrato de representação comercial", mas, por outro lado, pretendeu regulamentar uma profissão, atendendo aos anseios da classe que já exercia a atividade, mesmo sem ser regulamentada [26]. Assim, percebe-se que a lei de representação comercial visou regulamentar uma profissão e, portanto, um direito constitucional (o da livre atividade econômica) e não disciplinar e tipificar uma espécie de contrato, como objetivou o Código Civil.

Aliás, um exame mais detido das legislações, isto é, da Lei de 1965 e do atual Código Civil, é suficiente para se perceber que a antiga lei trata de diversos assuntos, entre os quais se destaca a criação (e atribuição de competência) de Conselhos Federais e Regionais para fins de fiscalização do exercício da profissão e as instituições de faltas profissionais e respectivas penas [27]. Por outro lado, o Código Civil, em singelos doze artigos, tratou, apenas, de definir o contrato de agência e os principais direitos do agente. Note-se, então, a diferença básica: a lei de 1965 regulamentou uma profissão [28] e a lei de 2002 tipificou uma modalidade de contrato.

Diante disso, é forçoso concluir que o Código Civil não tratou da mesma matéria objeto da lei de 1965, tendo, apenas, inserido, em seu texto, normas gerais acerca de uma espécie de contrato, espécie esta que já estava regulada sob o rótulo da representação comercial. Portanto, parece claro que o Código Civil versou sobre disposições gerais em face das disposições especiais já existentes e, assim sendo, não há revogação (ab-rogação ou derrogação) ou mesmo modificação (adaptação ao novo Código), na esteira do § 2º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942.

A aplicação desse §2° citado (modificação/adaptação da lei antiga à lei nova) já foi debatida por vários doutos civilistas [29]. O emérito Prof. Caio Mário da Silva Pereira consolidou a matéria de forma irretocável:

"Incompatibilidade poderá surgir também no caso de disciplinar a lei nova não toda, mas parte apenas da matéria, antes regulada por outra, apresentando o aspecto de uma contradição parcial. A lei nova, entre os seus dispositivos, contém um ou mais, estatuindo diferentemente daquilo que era objeto da lei anterior. As disposições não podem coexistir, porque se contradizem, e, então, a incompatibilidade nascida dos preceitos que disciplinam diferentemente um mesmo assunto, impõe a revogação do mais antigo. Aqui é que o esforço exegético é exigido ao máximo, na pesquisa do objetivo a que o legislador visou, da intenção que o animou, da finalidade que teve em ira, para apurar se efetivamente as normas são incompatíveis, se o legislador contrariou os ditames da anterior, e, em conseqüência, se a lei nova não pode coexistir com a velha, pois, na falta de uma incompatibilidade entre ambas, viverão lado a lado, cada uma regulando o que especialmente lhe pertence.

Esta coexistência não é afetada, quando o legislador vote disposições gerais a par das especiais, ou disposições especiais a par das gerais já existentes, porque umas e outras não se mostram, via de regra, incompatíveis. Não significa isto, entretanto, que uma lei geral nunca revogue uma lei especial, ou vice versa, porque nela poderá haver dispositivo incompatível com a regra especial, da mesma forma que uma lei especial pode mostrar-se incompatível com dispositivo inserto em lei geral. O que o legislador quis dizer (Lei de Introdução, art. 2º, § 2º, Projeto de Lei Geral de Aplicação das Normas, art. 4º, parág. único) foi que a generalidade dos princípios numa lei desta natureza não cria incompatibilidade com regra de caráter especial. A disposição especial irá disciplinar o caso especial, sem colidir com a normação genética da lei geral, e, assim em harmonia poderão simultaneamente vigorar. Ao intérprete cumpre verificar, entretanto, se uma nova lei geral tem o sentido de abolir disposições preexistentes. " (PEREIRA, 1996:84)

Destarte, não sendo a lei nova incompatível com a lei anterior, não há revogação ou modificação. Como bem explicou o saudoso Prof. Caio Mário, em tais casos, a lei especial irá tratar do caso especial e a lei geral irá tratar dos casos gerais não açambarcados pela lei especial. Na hipótese em estudo, a lei anterior é bem ampla e tem por objeto regular uma profissão e um direito constitucionalmente garantido. A nova lei apenas trata de uma espécie de contrato de direito privado, nada mais.

Sobre o autor
Felipe Fernandes Ribeiro Maia

advogado em Belo Horizonte (MG), MBA em Direito de Empresa e da Economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro. A representação comercial autônoma e o contrato de agência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 758, 1 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7093. Acesso em: 22 nov. 2024.

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