A nomeação de sindicalistas para altos cargos diretivos da Administração Pública traz o risco de os interesses corporativistas se sobreporem aos interesses públicos consubstanciados nas políticas e nas ações do governo. Como diz o adágio popular, não há como servir a dois senhores, em especial quando os interesses são antagônicos. No caso aqui analisado, a pauta sindical que defende interesses corporativistas da Auditoria-Fiscal do Trabalho se sobrepôs às normas constitucionais e legais que regem as políticas de provimento de cargos em comissão e de funções comissionadas fixadas pelo Presidente da República.
A auditora-fiscal do trabalho Maria Teresa Pacheco Jensen era diretora de Relações Intersindicais do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait) quando foi nomeada para o cargo de secretário de Inspeção do Trabalho, o que se deu em 14/06/2016. Empossada, obteve a designação de João Paulo Ferreira Machado para o cargo de diretor do Departamento de Fiscalização do Trabalho da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). Por coincidência, ele era o então Diretor de Inspeção do Trabalho do mesmo Sinait. Sindicalistas, portanto, passaram a comandar a Inspeção do Trabalho (em 30/05/2018 a secretária foi exonerada do cargo). Boa parte dos auditores viu nessas nomeações para a SIT uma vinculação indesejável entre sindicato e governo.
Um dos efeitos do sindicalismo administrativo se materializou na elaboração do Regimento Interno da SIT no final de 2017. Nele foi incluído o art. 4º que motiva este artigo. Eis a transcrição[1]:
“Art. 4º Os cargos e funções comissionadas na estrutura da Secretaria de Inspeção do Trabalho serão providos, exclusivamente, por servidores integrantes da carreira de Auditoria-Fiscal do Trabalho, exceto os relativos às áreas de apoio administrativo.”
Destinar os cargos em comissão DAS e as Funções Comissionadas do Poder Executivo (FCPE) exclusivamente aos auditores-fiscais do trabalho é ilegal e fere a Constituição Federal.
Para uma análise adequada, principia-se por esclarecer que o presidente da República editou o Decreto 8.894/2016, que aprova a estrutura regimental e o quadro dos cargos em comissão DAS e das FCPE do Ministério do Trabalho. O seu art. 6º determina que “o Ministro de Estado do Trabalho editará regimento interno para detalhar as unidades administrativas integrantes da Estrutura Regimental do Ministério do Trabalho, suas competências e as atribuições de seus dirigentes, no prazo de sessenta dias, contado da entrada em vigor deste Decreto.” Não há, portanto, atribuições ao ministro do Trabalho para dispor sobre o percentual de cargos em comissão e das FCPE. Mas foi justamente o que fez o então ministro Ronaldo Nogueira como resultado da assessoria deficiente de sua secretária de Inspeção do Trabalho. Trata-se de um artigo “jabuti”, porque a matéria não foi autorizada pelo Decreto.
Indagada por meio do Serviço de Informação ao Cidadão, a SIT informou que a proposta regimental não foi acompanhada de exposição de motivos. Logo, é impossível verificar a fundamentação da iniciativa.
A par da falta de previsão no Decreto, o indigitado dispositivo regimental viola o inciso V do art. 37 da CF, o § 1º do art. 2º da Lei 13;346/2016, além do Decreto n.º 5.407/2005.
A CF, em seu art. 37, inciso V, estabelece que as atribuições de direção, chefia e assessoramento no serviço público são de dois tipos: i) funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargos efetivos; e ii) cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira, conforme casos, condições e percentuais previstos em lei. Se a Carta Fundamental exige um percentual para servidores de carreira, é porque o percentual restante deve ser destinado a pessoas sem vínculo com a Administração.
Há, portanto, uma reserva legal para o preenchimento dos cargos em comissão. Alude-se ao que Adilson Abreu Dallari denomina direito fundamental de acessibilidade ao serviço público por parte de qualquer cidadão habilitado, que constitui, aliás, um direito do catálogo dos direitos humanos[3]. Ou conforme referido por Ruy Espíndola, o direito político fundamental de participar da coisa pública[4].
Apesar da reserva legal, não há lei disciplinando o dispositivo constitucional. Tanto é verdade que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) n.º 44[5], com pedido cautelar, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifeste sobre a omissão legislativa. Em seu arrazoado, a CFOAB argumenta que tramitam no Senado Federal duas espécies de proposições que tratam da regra constitucional aludida (PEC 110/2015, que dá nova redação ao inciso V do art. 37 da CF[6], e o projeto de lei do senado – PLS n.º 257/2014[7], propondo-se a regular o inciso V em análise). Mas nenhuma das proposições completou o ciclo legislativo para ingressar no ordenamento jurídico.
Uma oportunidade para suprir a omissão surgiu quando se deu a discussão parlamentar da Medida Provisória (MP) 731, de 10/06/2016, que dispunha sobre a extinção de cargos em comissão do Grupo Direção e Assessoramento Superior (DAS) e a criação das FCPE. Naquela ocasião, foi apresentada emenda parlamentar n.º 8 que reservaria percentuais de cargos em comissão DAS para servidores de carreira, o que viria a regulamentar o inciso V do art. 37 da CF. Porém, a emenda foi rejeitada por inconstitucionalidade com base no art. 246 da CF[8]. Portanto, a omissão legislativa ainda permanece.
Muito embora a CF imponha a reserva legal sobre o disposto no inciso V do seu art. 37, o fato é que o Decreto 5.497/2005, em seu art. 1º, com redação do Decreto 9.021/2017, estabelece os percentuais mínimos dos cargos em comissão que deverão ser preenchidos exclusivamente por servidores de carreira. Conforme o art. 1º, cinquenta por cento dos cargos em comissão DAS níveis 1, 2, 3 e 4 e sessenta por cento para os níveis 5 e 6 são reservados a esses servidores de carreira. Os percentuais restantes são destinados a pessoas sem vínculos com a Administração. Projetando-se esses critérios para cada órgão, então o art. 4º do Regimento Interno da SIT descumpre a regra do Decreto.
Porém, tal Decreto desafia a reserva legal imposta pela CF, como foi bem observado pelo CFOAB na petição inicial da ADO 44 nestes termos:
“Ademais, em que pese a intenção de disciplinar a matéria, constata-se a inadequação do instrumento utilizado, haja vista que o decreto não se presta a usurpar competência conferida à lei, por força do art. 37, inciso V, da CF. Trata-se de matéria com reserva legal constitucionalmente prevista, cuja inovação normativa denota violação ao princípio da legalidade (art. 5º, CF).”
À luz desses fundamentos, a destinação dos cargos em comissão DAS da SIT exclusivamente aos auditores-fiscais do trabalho violou o inciso V do art. 37 da CF, o art. 6º do Decreto 8.894/2016, e o art. 1º do Decreto 5.497/2005.
Analisa-se agora a ilegalidade da destinação das FCPEs da SIT exclusivamente aos auditores-fiscais do trabalho.
A matéria é tratada na Lei n.º 13.346/2016, que resultou da conversão da MP 731/2016 referida acima. Segundo prescreve o art. 2º, § 1º, da Lei mencionada, todas as FCPEs são destinadas exclusivamente a servidores públicos ocupantes de cargos efetivos oriundos de órgão ou entidade de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Não são privativos de servidores federais. Até mesmo funções de confiança que antes eram destinadas exclusivamente a servidores de determinados órgãos e entidades perderam essa característica, conforme art. 9º da Lei n.º 13.346/2016. A única exceção alcança o Departamento de Polícia Rodoviária Federal (§ 2º do art. 4º da Lei 13.346/2016). Contudo, os cargos em comissão DAS do Departamento não são exclusivos dos servidores das respectivas carreiras.
Situação um tanto semelhante com o Departamento de Polícia Federal ocorreu na Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB). No caso, a Lei 11.457/2007, em seu art. 14, parágrafo único, com a redação da Lei 13.464/2017, reconhece como privativos dos servidores efetivos da SRFB os cargos de DAS e as FCPE respectivas, ressalvando que os servidores que se aposentaram nos cargos efetivos da Receita Federal só têm acesso aos cargos de confiança, mas não às FCPE. Mas essa regra colide com a disposição constitucional do inciso V do art. 37 da CF. Parte-se da premissa que a reserva legal constitucional tem destinação universal para todos os órgãos públicos. Logo, uma lei casuística dirigida a um órgão específico desprestigia o comando constitucional.
Voltando ao caso da SIT, menciona-se que no trâmite legislativo da MP 731/2016 e que viria a ser convertida na Lei n.º 13.346/2016, o Sinait mobilizou-se para garantir certas prerrogativas aos seus representados por meio de emendas propostas por parlamentares, que é, diga-se, o caminho republicano a ser seguido. Dentre elas, as de números 30 e 32 propunham nova redação para o § 2º do art. 5º da MP, prevendo que “são de exercício privativo (...) de servidores integrantes da carreira referida no art. 9º da Lei n.º 10.593, de 6 de dezembro de 2002[9], as FCPE e os cargos em comissão de Superintendente Regional do Trabalho e Emprego.” Tais emendas foram rejeitadas pelo relator porque as superintendências não contam com FCPE específica, e, quanto ao caráter privativo, a justificativa é que “a medida não atenderia ao interesse público, mas, tão-somente, a interesses corporativos.” Observe-se que as emendas não tratam de cargos DAS da SIT. E as FCPE não eram apenas das superintendências.
Mas o fato de o Poder Legislativo ter vetado as emendas não demoveu o Sinait de seus propósitos corporativistas. E os promoveu por meio de sua representante na Administração do Ministério do Trabalho. Como já referido, a secretária sindicalista cuidou então de inserir o indigitado art. 4º no Regimento Interno da Secretaria de Inspeção do Trabalho sem chamar a atenção.
Usar uma portaria para driblar a rejeição legislativa e a lei depõe contra a ética e o preparo intelectual que se espera de servidores públicos que se propõem a dirigir instituição que goza de proteção constitucional (CF, art. 21, XXIV). Tal manobra afeta a credibilidade e a legitimidade da Inspeção do Trabalho.
Objetivamente, o Regimento Interno da SIT restringe o direito fundamental de qualquer cidadão de ser nomeado para cargos de DAS (CF, art. 37, V), bem como restringe o direito de qualquer servidor público brasileiro de qualquer poder dos entes federados (Lei 13.346/2016, art. 2º, § 1º) de ter acesso às FCPE da SIT.
Contrariamente ao dispositivo regimental, as regras da Constituição Federal, da Lei 13.346/2016 e do Decreto 5.497/2005 autorizam que uma pessoa sem vínculo com a Administração seja nomeada para o cargo em comissão de secretário de Inspeção do Trabalho ou de diretor de departamento. E nada impede que um médico do trabalho do serviço de vigilância sanitária de um município seja nomeado para uma FCPE no Departamento de Segurança e Saúde da SIT. A bem da verdade, um procurador do Trabalho já foi assessor da SIT. E até mesmo um sindicalista chefiou uma seção do Departamento de Segurança e Saúde da mesma secretaria.
A artimanha do artigo “jabuti” no Regimento Interno da SIT provoca outra constatação quando comparada com outro episódio marcante ocorrido no Ministério do Trabalho que bem revela condutas inadequadas de lideranças da categoria.
Por ocasião do embate gerado pela portaria do então ministro Ronaldo Nogueira que restringia as ações de combate ao trabalho análogo ao de escravo[10], a SIT emitiu nota técnica apontando ilegalidades na portaria. Do trecho introdutório da nota técnica se extrai o seguinte argumento jurídico erigido por autoridades da SIT como crítica ao então ministro Ronaldo Nogueira, com a ênfase acrescentada:
“É importante ressaltar que o poder regulamentar conferido aos Ministros de Estado pelo art. 87, parágrafo único, inciso II da Constituição Federal, não autoriza a sobreposição destes à Lei, mas ao contrário, por ser um poder de natureza derivada, somente pode ser exercido à luz da lei existente, sob pena de cometimento de abuso de poder regulamentar e invasão de competência legislativa.”
Ora, esse argumento se aplica ao caso do Regimento Interno também. E revela uma contradição das autoridades da SIT. O abuso de poder regulamentar e a invasão de competência legislativa que as autoridades da SIT atribuíram ao ministro Ronaldo Nogueira no caso do trabalho análogo ao de escravo estão presentes na iniciativa dessas mesmas autoridades da SIT de proporem ao mesmo ministro que as nomeações para cargos DAS e FCPE da Secretaria recaíssem exclusivamente sobre auditores-fiscais do trabalho, violando a Constituição Federal e a lei que rege a matéria, o que configura, ao fim e ao cabo, os mesmos abuso de poder regulamentar e invasão de competência legislativa imputados ao ministro. É um típico caso de argumento contraditório: a prática antes condenada é útil quando convém aos interesses próprios. Isso demonstra o pouco apreço das autoridades da SIT pela equidade e pela coerência argumentativa.
O mérito na reserva exclusiva dos cargos DAS e das FCPE da Inspeção do Trabalho para os auditores-fiscais do trabalho deve ser debatido e deliberado pelo Poder Legislativo, espaço republicano onde os representantes eleitos pelo povo decidirão o que é melhor para o interesse público à luz da Constituição Federal. É nesse espaço institucional que o Sinait e as autoridades da Inspeção do Trabalho podem atuar para defender prerrogativas aos auditores-fiscais do trabalho. E se submeter às decisões soberanas do Parlamento, sem artimanhas.
A atual conjuntura político-administrativa é o momento adequado para isso. Com efeito, a partir de 1º de janeiro iniciou-se a Administração do presidente eleito Jair Bolsonaro, o que implicará na edição de medidas provisórias e a proposição de leis sobre o serviço público federal. Mas deve ser relembrado que o inciso V do art. 37, na parte que trata dos cargos em comissão, não pode ser regulamentado por meio de medida provisória. Em todo o caso, é o Poder Legislativo que deve decidir sobre a destinação exclusiva de cargos DAS e FCPE para determinadas categorias.
Anuncia-se que a norma regimental aqui criticada deu ensejo a uma intromissão indevida do Ministério Público do Trabalho quando uma pessoa sem vínculo com a Administração foi nomeada para cargo DAS de Assessora da SIT. É o tema de próximo artigo.
Notas
[1] BRASIL. Portaria n.º 1.153, de 30.10.2017, DOU de 13/11/2017, Seção 1, p. 82 e ss.
[2] https://www.oantagonista.com/brasil/o-cercadinho-itamaraty/
[3] DALLARI, Adilson Abreu. Princípio da Isonomia e Concursos Públicos. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº. 6, abril/mai/junho, 2006. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 26/06/2016
[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-09/ruy-espindola-constituicao-serio-deficit-compreensao.
[5] BRASIL. STF. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5318189
[6] BRASIL. SENADO FEDERAL. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3036737&disposition=inline
[7] BRASIL. SENADO FEDERAL. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/118493
[8] CF, art. 246. “É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a promulgação desta emenda, inclusive.” A restrição atinge o inciso V do art. 37 da CF, pois sua redação resulta da emenda n.º 19, de 1998. E a redação do art. 246 foi dada pela emenda n.º 32, de 2001.
[9] “Art. 9º A Carreira Auditoria-Fiscal do Trabalho será composta por cargos de Auditor-Fiscal do Trabalho.”
[10] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2017/10/18/internas_economia,634444/portaria-de-trabalho-escravo-faz-fiscais-parar-atividades-em-oito-es.shtml