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Execução da pena após segundo grau é correta: Legislativo precisa corrigir proposta de Moro

Agenda 09/02/2019 às 09:40

O ministro Moro insiste no entendimento controvertido e nebuloso (do ponto de vista formal) do STF de 2016. Trabalha com a ideia de execução provisória da pena após decisão do segundo grau. Ademais: prevê isso por meio de lei ordinária. São duas ideias muito problemáticas.

Constituição Federal (art. 5º, LVII) diz: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Lula diz que não poderia estar preso porque ainda não foi julgado definitivamente. Moro, com base na jurisprudência do STF, diz que a prisão dele é correta. Quem tem razão? Qual seria a solução definitiva para a controvérsia?

A partir do dispositivo constitucional citado e outros correlatos sabe-se o seguinte: toda prisão é definitiva após o trânsito em julgado. Antes desse momento processual, toda prisão é provisória (cautelar).

Prisão provisória (flagrante, temporária ou preventiva) jamais pode ser decretada ou mantida sem motivo concreto justificador da privação da liberdade (decisão fundamentada de juiz). Tem que ter motivo concreto comprovado e convincente.

Nossa Constituição, no entanto, não definiu o que se entende por coisa julgada. Isso vem gerando uma enorme incerteza jurídica. E a verdade é que, apesar das polêmicas, a coisa julgada continua sem definição constitucional.

Não há nenhum impedimento para que o legislador derivado reformador faça isso. Aliás, ao contrário, tudo recomenda que isso seja feito o mais pronto possível.

O conceito de coisa julgada, teoricamente, poderia vir por lei ordinária ou por Emenda Constitucional. Mas é evidente que essa segunda via confere muito mais segurança jurídica e paz social.

De outro lado, sempre que delibere sobre a limitação ou conceituação de um direito previsto na Constituição, a restrição ou explicitação deve ser feita, prioritariamente, por norma de igual hierarquia nomológica (Cézar Peluso).

Se a coisa julgada é uma garantia constitucional, parece muito evidente que a sede adequada para sua definição seja a própria Constituição. Do contrário irão continuar os questionamentos em virtude da dissintonia hierárquica nomológica.

Se a Constituição não descreveu o que é coisa julgada, há uma lacuna nela que precisa ser aclarada. Não há nenhum impedimento para se aclarar o conteúdo de um direito constitucional, sempre que respeitado seu núcleo essencial (seu núcleo duro).

Esse é o entendimento do STF, que vem acolhendo de forma temperada a teoria alemã do limite dos limites (Schranken-Schranken), sob a premissa de que não existe direito absoluto. Nem sequer o direito à vida é absoluto.

Na ADC nº 29/DF (que discutia a lei da ficha limpa), o tema do limite dos limites foi abordado de forma mais direta e específica:

 “O princípio da proporcionalidade constitui um critério de aferição da constitucionalidade das restrições a direitos fundamentais. Trata- se de um parâmetro de identificação dos denominados limites dos limites (Schranken-Schranken) aos direitos fundamentais; um postulado de proteção de um núcleo essencial do direito, cujo conteúdo o legislador não pode atingir. Assegura-se uma margem de ação ao legislador, cujos limites, porém, não podem ser ultrapassados. O princípio da proporcionalidade permite aferir se tais limites foram transgredidos pelo legislador.”.

Jamais o legislador ordinário reformador poderia abolir a garantia da coisa julgada. Direito fundamental não pode ser abolido, por se tratar de cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, inc. IV). Mas ele pode (e deve) ser explicado na própria Constituição.

Sem a definição constitucional do instituto, a doutrina e a jurisprudência se encarregaram de lhe dar um conteúdo. Elas afirmam que a coisa julgada acontece depois de esgotados todos os recursos cabíveis no ordenamento jurídico.

De outro lado, enquanto não acontece o trânsito em julgado, o réu continua presumido inocente. Presunção iuris tantum(admite prova em sentido contrário), que desaparece quando fatos e provas evidenciam a culpabilidade (responsabilidade) do agente.

Presunção de inocência

Há quatro sistemas no mundo para derrubar a presunção de inocência (e gerar a coisa julgada): (1) basta que o réu se declare culpado (esse é o sistema norte-americano do guilty or not guilty); (2) quando o réu se declara culpado e outras provas validadas pelo juiz evidenciam sua culpabilidade; (3) quando há decisão de segundo grau (a quase totalidade dos países ocidentais têm essa regra como padrão); (4) só depois de esgotados todos os recursos em todas as instâncias.

O sistema anglo-saxônico (da common law), com destaque para os Estados Unidos, segue o primeiro sistema (guilty or not guilty). Os países fora da tradição anglo-saxônica (civil law) que admitem o acordo penal entre as partes (entre autor do fato e Ministério Público) seguem o segundo sistema.

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Quando se trata de processo conflitivo (sem acordo entre as partes), a quase totalidade dos países do mundo ocidental segue o que vem escrito nas Convenções Internacionais (no nosso caso, Convenção Americana de Direitos Humanos, que exige dois graus de jurisdição). Seguem o terceiro sistema, tido e reconhecido como civilizado inclusive pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

E a Constituição brasileira? Segue o quarto sistema (talvez o único país do mundo que faça isso). Mas é uma anomalia exigir o esgotamento de todos os recursos para se executar a pena. Fatos e provas analisados por dois graus de jurisdição ou por dois órgãos distintos da Corte Suprema já derrubam a presunção de inocência nos processos sem acordo penal. Isso está contemplado expressamente na Convenção Americana de Direitos Humanos (repita-se).

Jurisprudência do STF

Até 2009 a jurisprudência do STF permitia a execução provisória da pena antes da coisa julgada final, ou seja, após decisão de segundo grau.

De 2010 a 2016 passou a observar rigorosamente o sistema do esgotamento de todos os recursos (quatro graus de jurisdição, portanto, incluindo o STJ e o STF).

Claro que os réus com enriquecida assistência jurídica, às vezes prestada pela defensoria pública, ingressavam competentemente com todos os recursos cabíveis, em todas as quatro instâncias, seja para discutir com denodo os seus direitos, seja para paralelamente protelar ao máximo a execução da pena (Pimenta Neves demorou 11 anos para iniciar a execução da sua pena por homicídio; Luiz Estevão ingressou com mais de 30 recursos nos tribunais e por ai vai).

Os Tribunais Superiores, complacentemente, aceitavam essa anômala situação geradora de sensação de impunidade, que possui mais a cara de um privilégio que de um direito. Nem todos os réus contam com uma enriquecida assistência jurídica (pública ou privada).

Em fevereiro de 2016 (por iniciativa do ministro Teori Zavascki) o STF se rebelou contra tudo isso. Decidiu (por 7 votos contra 4 – HC 126.292) que a pena pode (deveria) ser executada provisória e imediatamente após a decisão de segundo grau (que seria suficiente para derrubar a presunção de inocência).

A Constituição diz uma coisa (prisão provisória precisa de fundamento específico) e o STF passou a decidir outra (os Tribunais de 2º grau podem mandar executar a pena provisoriamente, conforme cada caso). Os réus e seus advogados, em geral, nunca aceitaram esse “ativismo” judicial. O embate tornou-se inevitável.

A insegurança jurídica se instalou definitivamente dentro do STF, que continua dividido sobre o tema. Decisão em habeas corpus não obriga que a minoria siga a maioria. E a população continua estupefata com as decisões conflitantes dos ministros.

O tratamento desigual conferido a dois réus na mesma situação (Lula e José Dirceu, por exemplo) é gerador de muita indignação.

Celso de Mello, na linha do que decidem também Marco Aurélio, Toffoli, Lewandowsky e Gilmar Mendes, em 1/7/16 (HC 135.100), decidiu que o réu não pode cumprir imediatamente a pena depois do 2º grau, porque ele continua presumido inocente. Ele já tinha dito isso no julgamento de fevereiro de 2016 (foi um dos 4 votos contrários à maioria).

No momento do julgamento do habeas corpus impetrado em favor de Luiz Inácio Lula da Silva (abril/2018) o tema ganhou repercussão nacional (se tornou midiático). Por seis votos a cinco o STF denegou seu habeas corpus. Em seguida ele foi para a prisão e lá se encontra até hoje.

A maioria dos Ministros reafirmou o entendimento que é possível a execução provisória da pena imposta em condenação de segunda instância, ainda que pendente o efetivo trânsito em julgado do processo. Entendeu que isso não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência, (ADCs nºs 43 e 44 no HC n.º 126.292/SP e no ARE n.º 964.246, repercussão geral Tema n.º 925).

Há previsão de novo julgamento para o dia 10/4/19. Com certeza a divisão entre os ministros da Corte Suprema vai prosseguir (seja o julgamento favorável ou desfavorável ao ex-presidente). Não vamos ter unanimidade.

O direito requer, para ser observado e respeitado pela população, estabilidade e previsibilidade. Nosso direito (Constituição, leis e entendimento dos juízes) está se tornando cada dia mais instável e imprevisível. A insegurança jurídica no Brasil já atingiu níveis estratosféricos.

Isso constitui um dos motivos do nosso baixo crescimento econômico nas últimas três décadas (menos de 1,5%, ao ano). A insegurança jurídica afeta os investimentos. A receita fatal para a destruição ou fracasso dos países é composta de instabilidade econômica, política e jurídica.

Até quando vai perdurar essa desgastante situação? Enquanto o legislador ordinário reformador não disciplinar o conceito de coisa julgada, não teremos segurança jurídica nem paz social nesse assunto.

 Proposta do ministro da Justiça Sérgio Moro (reforma penal de 2019):

O ministro Moro insiste no entendimento controvertido e nebuloso (do ponto de vista formal) do STF de 2016. Trabalha com a ideia de execução provisória da pena após decisão do segundo grau. Ademais: prevê isso por meio de lei ordinária. São duas ideias muito problemáticas.

Execução provisória da pena, sem a fundamentação concreta da sua necessidade, é impossível. Por que trabalhar com a ideia da execução provisória se podemos implantar a pena definitiva após o segundo grau?

E tudo seria feito por meio de lei ordinária. Aí o problema se agrava. A proposta do ministro Moro, assim, não resolve a questão. Não se apaga incêndio jogando gasolina na fogueira. Temos que desenvolver uma alternativa, porque é correta a prisão após o segundo grau.

Necessitamos definir o que se entende por coisa julgada na Constituição (na linha do que vem sinalizando os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio etc.). Não podemos mais protelar o enfrentamento do tema.

Proposta do deputado Alex Manente – PPS-SP (PEC 410/2018):

Art. 1º O inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 5º. ……………………………………………………………………..

………………………………………………………………………………

LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso. (NR)

A proposta do eminente deputado federal Alex Manente soluciona boa parte do problema. Aproveito para parabenizá-lo pela iniciativa. Define a coisa julgada após a “confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.

Mas nada diz sobre a natureza, a partir daí, do recurso especial para o STJ e do recurso extraordinário para o STF. A pergunta evidente que o interprete fará é a seguinte: em qual grau de recurso a sentença penal condenatória deve ser confirmada para se formar a coisa julgada?

Quem cuidou desse angustiante tema foi o ex-presidente do STF, Cezar Peluso, em 2011, dando aos recursos especial e extraordinário a natureza de ações rescisórias constitucionais. Esse é o caminho acertado.

Se o réu tiver seu recurso provido nos Tribunais Superiores, rescinde-se a coisa julgada e tudo isso sem prejuízo do habeas corpus que sempre pode ser manejado para impedir a execução de uma pena que tenha sido imposta de forma abusiva ou flagrantemente ilegal.

Casos escatológicos devem ser corrigidos imediatamente por habeas corpus. O erro judicial, às vezes acumulado em primeiro e segundo graus, não é tão incomum quanto parece.

Nossa proposta de Emenda Constitucional, que iremos protocolar prontamente, é a seguinte:

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Altera o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal para prever que ninguém será considerado culpado até que os fatos e as provas do processo sejam analisados em dois graus de jurisdição. Os recursos cabíveis a partir da coisa julgada contam com natureza de ação rescisória.

Art. 1º O inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 5º. ……………………………………………………………………..

………………………………………………………………………………

LVII – ninguém será considerado culpado até que os fatos e as provas do processo sejam analisados em dois graus de jurisdição. No caso de competência originária do Supremo Tribunal Federal, deve-se assegurar a revisão dos fatos e das provas no mesmo tribunal. O recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça bem como o extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, depois de formada a coisa julgada, possuem natureza de ação rescisória. (NR)

…………………………………………………………………………………..

…………………………………………………………………………………

Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Execução da pena após segundo grau é correta: Legislativo precisa corrigir proposta de Moro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5701, 9 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72002. Acesso em: 26 dez. 2024.

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