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O dever de fundamentação das decisões judiciais no âmbito dos juizados especiais: uma análise à luz do novo modelo processual brasileiro

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5 APLICAÇAO DO CPC/15 AO PROCEDIMENTO DA LEI 9.099/95

5.1 APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA

O ordenamento jurídico brasileiro tem suas regras básicas de aplicação e interpretação definidas pela Constituição e pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42), a qual, em seu artigo 4o, expõe norma que, trabalhada pela doutrina e pela jurisprudência, consagra o princípio da unidade do ordenamento, o qual, em síntese, pode ser definido como um axioma jurídico impositivo de um dever de coerência e harmonia entre as diversas fontes do direito que ditam a atuação e fundamentam o leque de ferramentas possíveis de ser aplicadas pelo juiz na solução de litígios.

Entre outras técnicas, este princípio impõe ao juiz, na falta de previsão expressa em determinada lei especial que foi concebida para regular determinada matéria, que este busque na lei geral a regra apta a sanar a lacuna causada pela ausência de previsão da lei especial.

Assim sendo, deve se concluir que o Código de Processo Civil, como principal diploma de regras processuais da ordem jurídica, é, além de lei prescritiva e regulamentadora de todas as regras processuais e procedimentais, uma matriz de complementação para as demais leis especiais, na qual o operador do direito deve buscar complementação para sanar lacunas e critérios de interpretação ausentes nestas.

Afinal, o procedimento da Lei 9.099/95 é um procedimento especial, e como tal, por expressa previsão do Código de Processo em seu artigo 318, parágrafo único, a ele se aplicam subsidiariamente as disposições do procedimento comum, regido pelo Código.

5.2 APLICAÇÃO SUPLETIVA E INCIDÊNCIA DA NORMA DO ARTIGO 489, § 1o, ÀS SENTENÇAS DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS

Sendo pacífico o entendimento de que o CPC/15 se aplica subsidiariamente à Lei 9.099/95, pode se afirmar que o núcleo duro da discussão em análise seria a possibilidade de aplicação da norma do artigo 489, § 1o, ao iter dos Juizados para além da mera subsidiariedade e complementaridade em caso de lacunas, isto é, uma aplicação suplementar ou supletiva permanente.

Segundo o dicionário Michaelis de língua portuguesa15, o adjetivo "suplementar" significa algo "1. Relativo a suplemento. 2. Que serve de suplemento ou de auxílio. 3. Que amplia ou completa uma explicação ou exposição anteriormente dada". Da anáise destes significados gramaticais é possível extrair facilmente o sentido da proposta de aplicação supletiva da mencionada norma do CPC/15 aos Juizados Especiais, que é de ampliar ou complementar o dever de fundamentação das decisões deste órgãos em razão do caráter unitário do ordenamento processual e do viés de instrumentalização de mandamento constitucional que carcteriza o novo modelo de fundamentação.

E, para além de uma proposta, a aplicação do modelo de fundamentação exauriente das decisões judiciais em comento é uma necessidade, cuja negação pode comprometer a segurança jurídica e a ideia de unidade do ordenamento processual, ainda que este se subdivida em microssistemas.

A incidência das diretrizes normativas do novo Código às demais leis especiais de processo se mostra cada vez mais forte desde sua vigência. Exemplo disso é a série de alterações provocadas pelo mesmo em diversas leis exparsas, incluindo a própria Lei 9.099/95, que, a partir da vigência do CPC/15, passou a prever que a oposição de embargos de declaração não mais provocavam apenas a suspensão do prazo para interposição de recurso inominado, mas sim a interrupção do mesmo, reiniciando-o do marco zero, reproduzindo-se então a norma do artigo 1.026 do Código e adequando-se a lei especial à nova regra geral.

Mais um exemplo que ilustra essa impositividade do novo modelo de processo civil à Lei 9.099/95 é a alteração da redação de seu artigo 48, que trata do cabimento dos embargos de declaração, o qual passou a dispor então que, nos Juizados Especiais Cíveis, "caberão embargos de declaração contra sentença ou acórdão nos casos previstos no Código de Processo Civil". Isso demonstra, às escâncaras, o alinhamento das premissas processuais da Lei 9.099/95 ao disposto no novo Código, certamente com o fim de se preservar a unidade e sistematicidade do ordenamento jurídico a partir da uniformização dos microssistemas ao modelo de processo constitucional trazido como regra geral. Ora, para que existam microssistemas, primeiro deve haver um sistema.

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E aqui se deve atentar para este segundo exemplo, pois esta previsão é o elo de ligação intranormas que demonstra que o Código de Processo não se aplica somente subsidiariamente aos Juizados Especiais Cíveis, mas também supletivamente!

Afinal, em sua antiga redação, este artigo 48 da Lei 9.099/95 já previa as hipóteses de cabimento dos embargos de declaração, que se limitavam às clássicas hipóteses de "obscuridade, contradição, omissão ou dúvida". Ou seja, não havia lacuna a ser sanada! O dispositivo já era completo, acabado, suficiente. A razão desta alteração, para prever o cabimento de embargos de declaração nos Juizados Especiais nas mesmas hipóteses do Código de Processo Civil, foi a construção de uma porta de entrada para a norma do § 1o do artigo 489 do Código de Processo Civil se aplicar ao procedimento especial dos Juizados Especiais.

Isto porque, conforme exposto no inciso II do artigo 1.012 do CPC/15, são cabíveis embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para suprir omissão do juiz sobre assunto de que deveria se manifestar, e, logo em seguida, dispõe o inciso II do parágrafo único deste artigo que "considera-se omissa a decisão que incorra em qualquer das condutas descritas no artigo 489, § 1o".

Diante disso, não é necessario nenhum malabarismo de raciocínio, bastando mera subsunção lógica da primeira informação com a segunda, conjugando-se os dois dispositivos acima referidos, para concluir que a sentença ou acórdão proferidos no procedimento especial dos Juizados Especiais Cíveis que não seguir o padrão mínimo de fundamentação estatuído pelo CPC/15 será nulo por deficiência de fundamentação, por omissão! Omissão que poderá ser sanada pela via dos embargos de declaração ou da apelação (CUNHA, 2015, p. 1229-1230).

Resta claro, portanto, legislativamente, que o modelo de fundamentação das decisões judiciais trazidos pelo novo Código se aplica, integralmente, aos Juizados Especiais Cíveis!

E não se diga que a aplicação desta fundamentação exauriente se contrapõe ao princípio da simplicidade, haja vista que a necessidade desta aplicação ultrapassa o mero formalismo processual e o mero capricho. Trata-se de um direito do jurisdicionado e um dever do magistrado (a fundamentação completa, exaurida).

Outrossim, também não se deve admitir que a celeridade como fundamento hábil a afastar este dever de fundamentar nos termos do disposto no Código de Processo, pois a celeridade não figura no rol de princípios constitucionais – muito embora não se negue, aqui, sua importância prática –, e com a razoável duração do processo não deve ser confundida. Se uma demanda hipoteticamente for atrasada pela necessidade de elaboração de uma decisão judicial de melhor qualidade e amplamente fundamentada, mas que ponha fim à toda discussão travada no litígio e resolva satisfatoriamente todos os pontos controversos esgotando o debate trazido pelas partes, ainda assim se poderá afirmar que houve razoável duração do processo, eis que a razoabilidade de sua duração deste se dá na medida em que o mesmo soluciona integralmente a lide em tempo proporcional à sua complexidade, e não no menor tempo possível.

Não é demais reforçar que o modelo de fundamentação de decisões judiciais previsto no § 1o do artigo 489 do CPC/15 é, além de instrumento introdutório e regulamentador do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, uma regra prevista em lei ordinária de caráter geral (o CPC/15), sendo portanto aplicável a toda e qualquer decisão judicial, qualquer que seja o procedimento (DIDIER JR. et al., 2016, p. 334).

A redação deste dispositivo é cristalina: nenhuma decisão se considera fundamentada se incorrer em alguma daquelas condutas nele previstas. Nenhuma! Seja sentença, decisão interlocutória ou acórdão. Nem o Código e nem a Constituição da República fazem qualquer distinção entre os órgãos prolatores destas decisões, de maneira que, por dedução lógica, não se pode cogitar que o Juizado Especial fique fora desta norma. Este, inclusive, é o entendimento compartilhado pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), por meio de seu enunciado 30916.

Se a própria Constituição, no artigo 98, inciso I, não previu qualquer hipótese de fundamentação mais simples para as decisões destes órgãos, muito menos lei infraconstitucional poderá fazê-lo, sendo inadmissível a relativização negativa de mandamentos constitucionais por via de lei ordinária.

Se, a par do que afirma parte da doutrina, na vigência do Código de 1973 era admitida a fundamentação sucinta, limitada a decidir apenas o "essencial" ou o "fundamental" (cujo sentido era definido pelo próprio magistrado), hoje esta não encontra mais lugar e não deve ser admitida, dada a incompatibilidade deste posicionamento com o atual Código – posterior à Lei 9.099/95 – e a mudança de paradigma operada por ele, com a imposição de norma cogente e geral cujo âmbito de incidência engolfa toda e qualquer decisão judicial, para dar maior amplitude ao exposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição.

Negar, atualmente, a aplicação do novo modelo de fundamentação em comento a qualquer sentença de procedimento especial seria criar ilegalmente categoria diversa e própria de sentença! O que é inadmissível em nosso ordenamento, senão por meio de lei.

A aplicação integral da fundamentação analítica às sentenças dos Juizados Especiais, além de promover um direito processual constitucional e democrático, serve de vetor para que se oblitere a falsa ideia que se possa ter das sentenças dos Juizados Especiais Cíveis, no sentido de que estas seriam espécie própria, distinta das sentenças do procedimento comum, como se possuíssem requisitos e pressupostos próprios.

Antonio Pereira Gaio Júnior é certeiro em sua lição, aduzindo que:

[...] a dinâmica da fundamentação analítica, adequada e específica das decisões judiciais – aqui a sentença – igualmente se aplica em sede de Juizados Especiais Cíveis, não se encontrando lugar sentenças de primeira e segunda categorias, com maior ou menor potencial justificador de fundamentação necessária, haja visto que o próprio processo como instrumento pelo qual a jurisdição opera objetivando a construção de paz social não poderá ser refém de uma simplicidade ou informalidade que somente possa justificar-se na medida de suas necessidades, o que, certamente, não corresponde à própria expressão da sentença como promotora democrática da compreensão do ato de vontade estatal (GAIO JÚNIOR, 2018).

A fundamentação e motivação são elementos nucleares de toda e qualquer decisão judicial, e, como tal, deve ser originada e desenvolvida com idêntico esmero e com os mesmos requisitos por todo e qualquer órgão jurisdicional, independentemente do procedimento que o rege e que ordena o processo até a fase final de conhecimento, que é a sentença.

Ora, o modelo de fundamentação de decisões judiciais não pode ser alterado simplesmente de acordo com o órgão que as profere. Nos Juizados Especiais Cíveis, o que deve ser simplório e de baixa complexidade jurídica é a demanda! É a causa de pedir e o pedido, e não a qualidade da decisão judicial que soluciona este litígio!

Em eventual ponderação de princípios constitucionais, ainda que a celeridade (que não se confunde com razoável duração do processo) fosse alçada ao patamar de direito fundamental, jamais poderia ser invocada como fundamento mitigador do dever de fundamentação das decisões judiciais, sob pena de, se assim o for, aleijar-se a legitimidade da função jurisdicional do Poder Judiciário e de sua própria existência, na medida em que abririam-se caminhos para que um poder estatal não eleito e incumbido de dizer o direito o fizesse sem demonstrar e justificar o porque diz o direito daquela forma, e, ao fim e ao cabo, para que o mesmo viesse a dizer o o direito sem dizê-lo.

Sobre os autores
Ricardo Trentin

Advogado no Espírito Santo. Especialista em Direito Processual Civil. Atuação em Direito Administrativo, Penal, Trabalhista, Consumidor e Família.

Julio Cesar Medeiros Ribeiro

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Advogado especializado em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRENTIN, Ricardo; RIBEIRO, Julio Cesar Medeiros. O dever de fundamentação das decisões judiciais no âmbito dos juizados especiais: uma análise à luz do novo modelo processual brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5792, 11 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72452. Acesso em: 17 mai. 2024.

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