Resumo: O presente artigo objetiva traçar um breve panorama crítico a respeito da desarmonia constitucional existente no contexto específico da ação de desapropriação quando deparada com o direito fundamental dos sujeitos expropriados à percepção de prévia e justa indenização em dinheiro. No ensejo, diante do reconhecimento de repercussão geral do tema pelo Supremo Tribunal Federal no bojo do Recurso Extraordinário de nº 922.144, ainda pendente de julgamento definitivo, a temática será também abordada em vista do ortodoxo regime de precatórios igualmente instituído pela Constituição Federal de 1988. Os aspectos e as premissas que qualificam cada um desses institutos serão sutilmente arrazoados, desta feita para determinar a sistemática de pagamento que se apresenta mais consentânea com a dinâmica constitucional em vigor.
Palavras-chave: Direito Constitucional, Processual e Administrativo; Ação de Desapropriação; Indenização Justa e Prévia em Dinheiro; Regime de Precatórios.
INTRODUÇÃO
Temos todos forte inclinação a considerar o que é legal como legítimo, a tal ponto que são muitos os que falsamente consideram como certo que toda a justiça emana da lei. Basta que a lei ordene e consagre a espoliação para que esta pareça justa e sagrada diante de muitas consciências.[2]
(Frédéric Bastiat)
O Estado é um sujeito que tem no cinismo a sua marca preponderante: teorizado no interesse de uma coletividade, dela extrai presumida legitimidade para justificar a sua própria violação de direitos, conformando-a em lei e em outros que tais para dar-lhe falsa conotação de filantropia, de modo a qualificar-se como tendente a um bem comum, transcendental, que suplanta egoísmos e individualidades.
Mas o Estado é ficção, manipulado por decisões e condutas de alguns poucos agentes que lá estão e que, consagrando-se pela burocracia praticada do alto de seus gabinetes, da vista obscurecida pela posição de autoridade que opulentamente ocupam, exercem em nome dele a soberba do poder.
E não é só: quando a lei por ele(s)mesmo elaborada, e já per seespoliadora, torna-se um entrave ao exercício do arbítrio absoluto, por jogo de retórica faz um circo de teses e teorias, um malabarismo de argumentação que não se preocupa minimamente em camuflar a sua evidente intenção de constranger, embora se ponha a rebater sistematicamente a transgressão cometida pelos que não ele, quando desfavorável a seus exclusivos e “benevolentes” interesses, num movimento de hipocrisia manifesta.
Trazendo-se a lume a discussão travada no Recurso Extraordinário de nº 922.144, em tramitação no Supremo Tribunal Federal – STF, objetivamos escapar de uma possível abstração ideológica que se conceberia a partir da visão estabelecida nas linhas anteriores, demonstrando-se concretamente uma situação de esbulho estatal, maquiado por uma – sempre existente – majestosa enunciação jurídica.
Ali criou-se um aparente reboliço constitucional: o de que, no contexto das ações de desapropriação, estaria havendo discrepância entre a regra constitucional que determina o pagamento de indenizações pela sistemática dos precatórios e o direito fundamental que garante aos indivíduos que sofreram expropriação o seu percebimento de forma justa, prévia e em dinheiro.
Nesse enleio, realizaremos inicialmente uma concisa explanação a respeito das linhas gerais que caracterizam a ação de desapropriação, esmiuçando o viés procedimental que implica o esvaziamento do direito de propriedade dos particulares em benefício do Estado sob a perspectiva do direito fundamental à percepção de indenização justa, prévia e em dinheiro, daí proferindo as críticas que reputamos mais importantes.
Posteriormente, discutiremos de maneira abreviada as balizas mais expressivas do regime constitucional dos precatórios, demonstrando não somente as matizes jurídicas que o convalidam, mas principalmente a sua realidade prática em termos de concretização indenizatória, fazendo-se, por fim, o cotejo entre as premissa constitucionais suscitadas a partir da análise do caso concreto tratado, especificando a discussão que ensejou o reconhecimento de repercussão geral sobre o tema, delimitando o feitio constitucional que se lhe imprimiu e destacando as manifestações que reputamos mais relevantes para a compreensão da controvérsia, para o fim último de sugerir o desate que haveria de ser dado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em vista daquilo que nos parece mais consentâneo com a dinâmica constitucional em vigor.
AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO E O DIREITO FUNDAMENTAL À PRÉVIA E JUSTA INDENIZAÇÃO EM DINHEIRO
Para que possamos definir os contornos mais gerais que caracterizam a ação de desapropriaçãoé preciso colocar a própria figura da desapropriaçãoem posição de significação conceitual, já que tida como finalidade última objetivada pelo referido expediente procedimental.
Consiste a desapropriação em ato de subtração patrimonial praticado pelo Estado que suprime despoticamente o direito de propriedade exercido por indivíduo sobre determinado bem integrante de seu acervo particular, a pretexto de dar-lhe fim mais inclinado com os interesses de uma indeterminada coletividade, interesses que, em nossa realidade tangível – que não pode ser negligenciada por devaneios teóricos –, materializam-se pelas decisões de uma classe política que não é altruísta, e que tem na perpetuação de seus cargos e posições o fim mais ansiado e resguardado.
É idealizado juridicamente por escritores mais contemporâneos – e.g. Letícia Queiroz de Andrade[3]– como uma prerrogativado Estado que se desdobra por consequência do “princípio da preponderância dos interesses públicos sobre o privado”, ou ainda da “preponderância do interesse que extraia diretamente do bem seu melhor proveito público”, o que nos parece uma visão eufemística do fenômeno, diante da realidade dos acontecimentos.
Pois que a desapropriação se apresenta, verdadeiramente, como um poderdo Estado fincado num secular ambiente de caudilhismo sistêmico, fruto de uma autoreconhecida supremaciados interesses públicos sobre os privados, e que, tida por iluminada, grandiosa, presumidamente mais afinada com as necessidades da população em geral, faz-se eternizar nos textos legais e especialmente nos discursos políticos.
Não por menos, a desapropriação foi incorporada ao texto da Constituição Federal, que lhe destinou tratamento especial, conformando-a em 04 (quatro) espécies constitucionais, aqui cogitadas com fincas nos ensinamentos do notável doutrinador processualista Francisco Wildo[4]: 1. Desapropriação por utilidade e/ou necessidade pública; 2. Desapropriação por interesse social[5]; 3. Desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária; e 4. Desapropriação urbano por não aproveitamento de áreas deficientemente utilizadas.
Acabam por guardar particular importância para o desenvolvimento desse trabalho somente as espécies constitucionais que se fundam em critérios “não sancionatórios” (itens 1 e 2), por assim dizer, não denotativas de qualquer relevo à conjuntura comportamental ostentada pelo sujeito que sofre o ato expropriatório, e que têm no artigo 5º, inc. XXIV da Constituição Federal seu arcabouço apriorístico:
Art. 5º (...)
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;[6]
Em que pese a não mais tão recente carta constitucional datar dos idos de 1988, o mecanismo processual das ações de desapropriação desse jaez tem suas vestes baseadas em escritos ainda mais anacrônicos (Decreto-Lei nº 3.365/1941e Lei nº 4.132/1962), elaborados em premissas sociopolíticas absolutamente alienígenas quando comparadas àquilo que se experimenta nos dias atuais; quadras em que achava-se a sociedade profundamente subjugada a movimentos ditatoriais.
Compreendida a desapropriação como um mecanismo de extinção do direito de propriedade que se impõe compulsoriamente[7], dissolvendo-o por violência e força, afigura-se inexistente aquilo que por aí se denomina de “desapropriação amigável” ou “desapropriação efetivada mediante acordo”[8]– expressão contida até mesmo nas letras ultrapassadas dos sobreditos diplomas legais –, aqui compreendida no sentido de haver manifestação plena e consciente de vontade do titular em alienar o domínio exercido sobre bem, a torná-lo negócio jurídico bilateral e, portanto, uma compra e venda travestida[9], não cogitando-se, em termos desapropriatórios, procedimento específico para semelhante arranjo, senão o tanto que há de se observar em vista da dinâmica natural da administração pública (e.g. contratos administrativos, licitações, etc.).
Em contrapartida, quando se apercebe a perversão patrimonial que qualifica o ato expropriatório propriamente dito, mutilador de um direito preexistente à concepção e ao surgimento da figura do Estado – por este somente “garantido”, e não “criado”[10]–, e a despeito de seu revestimento de “legalidade” aparente, seria de se esperar uma ortodoxia que fizesse resguardar, sem tergiversações, o direito fundamental que lhe corresponde precedentemente, a saber, o percebimento, pelo expropriado, de indenização justa, prévia e em dinheiro.
Entretanto, o fluxo procedimental que vigora atualmente, com lustro nas legislações mencionadas acima (Decreto-Lei nº 3.365/1941 e Lei nº 4.132/1962), constitui panorama que apequena o citado direito fundamental, relativizando a sua importância por meio de deontologia formalista, que tem na propriedade um conceito meramente vernacular, sem substância, vazio de realidade.
Por meio dessa legislação, a ação de desapropriação ficou materializada num procedimento bifásico, composta pela fase administrativa e pela fase judicial.
O primeiro passo da fase administrativa abrange preliminares burocráticas já imaginadas no âmbito da administração pública: planejamento, delimitação do escopo e avaliação de impacto social, identificação e caracterização das unidades imobiliárias afetadas, análise de viabilidade e possibilidade de medidas alternativas, instrução documental (projetos, plantas, mapas, registros), e outras medidas afins[11].
A etapa de maior relevância no contexto da fase administrativa, todavia, é a que se desenvolve em segundo passo, com a expedição do que se denomina de declaração de utilidade pública e interesse social, especialmente diante de alguns efeitos canhestros operados pelo ato, certamente já opressores do constitucional direto de propriedade, e que serão aqui melhormente escrutinados, em detrimento da análise de outros elementos que reputamos vicinais no que se refere aos objetivos deste trabalho.
Isso porque, dentre outros tantos, a expedição da sobredita declaração provoca: a) autorização para que autoridades administrativas penetrem nos imóveis relacionados no ato administrativo, possibilitando-lhes, inclusive, fazer uso de força policial em caso de oposição (art. 7º do Decreto-Lei nº 3.365/1941); e b) fixação da realidade do imóvel para fins de valoração da indenização, inclusive no que toca a seu estado de conservação e às benfeitorias existentes, considerando que, posteriormente à data da publicação do decreto, somente serão indenizáveis as benfeitorias necessárias e as úteis, estas últimas exclusivamente no caso de terem sido previamente aprovadas pelo Poder Público[12].
Significa dizer, então, que já daí há manifesta amortização do constitucional direito de propriedade, na medida em que ao Estado se garante ingressar em imóvel que não lhe pertence, constrangendo o dono, que por sua vez fica coagido a não realizar qualquer melhoramento em seu próprio imóvel, sabedor de que eles serão absolutamente desconsiderados para efeito de mensuração da indenização devida, tendo, inclusive, que atingir o ápice da veneração forçada ao necessitar recolher a “aprovação” do poder público para proceder com benfeitorias úteis no interior de imóvel de sua exclusiva titularidade.
Ora, se imediatamente após a mera expedição de um ato administrativo protocolar o direito de propriedade transmuda-se de pleno para parcial[13], não é difícil enxergar evidente malferimento ao texto constitucional.
Como justificar, antes mesmo da implementação da indenização devida, a supressão de dois direitos fundamentais: o constitucional direito à propriedade – que só assim o é quando pleno, observando limites estritamente constitucionais – e o direito fundamental ao recebimento de justa indenização em dinheiro por decorrência da desapropriação, que deve ser sempre prévia? É mesmo crível qualquer alegação prescritiva que ordene uma manipulação do espaço-tempo? Que afete a cronologia e, portanto, a natureza mesma das coisas? Pode o ontem ser o amanhã? Penso que não, e o faço com escora em lição do insuperável professor e doutrinador Marcos Bernardes de Mello[14]:
O fato natural existe. É por si mesmo, independentemente das qualificações que o homem lhe atribua. Jamais se pode dizer nulo um nascimento, ou uma morte, por exemplo, precisamente porque ocorrem no mundo das realidades naturais e, por isso mesmo, não podem ser desconsiderados sem que se contrarie a própria natureza das coisas.
Os atos posteriores à emissão da declaração de utilidade pública, como terceiro passo da fase administrativa da ação de desapropriação, revelam técnicas de cunho eminentemente orçamentário, destinadas a parametrizar o valor da “prévia e justa indenização em dinheiro”, de forma a dotá-la e compatibilizá-la com as legislações orçamentárias de impositiva observância pelos gestores (Lei Orçamentária Anual – LOA, Plano Plurianual – PPA e Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO), além de compatibilizá-lo com a Lei de Responsabilidade Fiscal[15].
Por diante, dá-se início à fase judicial da ação de desapropriação, a qual, num sincronismo premeditado que se conjuga às idiossincrasias inconstitucionais da anterior fase administrativa, torna definitiva a legalização do constrangimento indevido – mas despreocupado – do lídimo e constitucional direito à propriedade.
São os seguintes aspectos processuais da fase judicial que, tal e qual atualmente textualizada, descaracterizam, de forma mais nítida, qualquer legitimidade constitucional que originalmente lhe seria ínsita: a) a imissão provisória – definitiva – na posse do imóvel em expropriação (art. 15 do Decreto-Lei nº 3.365/1941); b) a restrição – indevida – de matéria a se discutir nesse ambiente processual (art. 20 do Decreto-Lei nº 3.365/1941); e c) a assimetria relacional dos efeitos do recurso de apelação (apenas devolutivo, para o expropriado, e devolutivo e suspensivo, para o expropriante – art. 28 do Decreto-Lei nº 3.365/1941).
Pela contextualização do trabalho, e diante de sua colossal disparidade com a dinâmica constitucional em vigor, causa maior estupefação a regalia de que se vê dotado o Estado quando, sob pretexto de urgência, comprovada por sua mera alegação, pode imitir-se provisoriamente na posse do imóvel que pretende desapropriar, bastando que deposite em juízo preço cujo valor ou é estabelecido unilateralmente por ele próprio ou corresponde a quantia notoriamente vexatória diante da realidade que se vê praticada no mercado:
Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens;
§ 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação do réu, mediante o depósito:
a) do preço oferecido, se êste fôr superior a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito ao impôsto predial;
b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, estando o imóvel sujeito ao impôsto predial e sendo menor o preço oferecido;
c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do impôsto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior;
d) não tendo havido a atualização a que se refere o inciso c, o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originalmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel.[16]
Antes de tudo, logo se vê o achincalhamento processual do indivíduo perante o Estado: este parece poder simplesmente alegarurgência para tomar para si antecipadamente a posse do imóvel, sendo despicienda a respectiva comprovação[17].
Isso acaba refletindo um absolutismo inveterado quando conjugado a normas que textualmente pretendem: a) coibir a intervenção do judiciário no controle dos meandros materiais da desapropriação (art. 9º do Decreto-Lei nº 3.365/1941); e b) limitar a um quase nada as matérias que podem ser suscitadas pelo expropriado nesse âmbito procedimental (art. 20 do Decreto-Lei nº 3.365/1941).
Renomados doutrinadores, como Celso Antônio Bandeira de Mello[18]e Kiyoshi Harada[19], indicam ser questionável no próprio campo processual desapropriatório a pertinência da alegação de urgência proferida pelo poder público (assim como outras questões, alargando o feixe de matérias discutíveis, em confronto com a literalidade da norma).
Parecem não negar, todavia, a existência da sempre repetida “presunção-de-tudo-em-seu-favor” de que goza o Estado em suas palavras e motivações, de modo a no máximo conferirem ao indivíduo a transferência de um ônus, no mais das vezes impossível – já que nesse ambiente processual inexiste qualquer paridade discursiva –, de contrariar consistentemente aquilo que por ele foi dito, o que reflete a quase inexistência de inversões da alegada urgência na prática judiciaria.
De outra banda, relativamente ao valor a se depositar, há 03 (três) hipóteses alternativas de valor, permissivas, por autorização judicial, da invasão da propriedade privada, num movimento de embuste estatal: a) o preço oferecido pelo próprio poder público, no caso de ultrapassar em 20 (vinte) vezes o valor locativo do bem; b) Quantia correspondente a 20 (vinte) vezes o valor locativo do bem; ou c) o valor cadastral do imóvel para fins de cobrança do IPTU.
Fica fácil enxergar puro arbítrio e totalitarismo nesse mecanismo de desapossamento sumário. É risível sequer cogitar-se a mais ínfima justezanum depósito antecipado autorizativo de desalojamento quando a quantia que lhe enseja corresponde a 20 (vinte) vezes o valor locativo do bem, uma vez que se tem como absolutamente razoável na prática mercadológica atual um aluguel correspondente a 0,5% (meio por cento) do valor do imóvel. Ou seja, qualquer idealização do justonesse caso específico – e aqui desconsiderando a inconstitucionalidade mesma da natureza antecipada do ato – trataria de um montante de 200 (duzentas) vezes o valor locativo do bem, sendo de antemão injusto tudo aquilo que lhe seja minimamente inferior, que dirá 10 (dez) vezes menor.
Segue o mesmo trilhar despótico qualquer ponderação que entenda por justoo “valor oferecido” pelo poder público, numa presunção falaciosa de que ele haverá mesmo de oferecer o justo, quando a realidade nos diz precisamente o contrário: Estado é maquinário de arrecadação voraz, mas de recatado interesse no que diz respeito ao pagamento espontâneo de obrigações havidas em situações que não envolvam influxo político.
E o mesmíssimo raciocínio se aplica ao oferecimento de numerário correspondente ao valor cadastral do imóvel para fins de cobrança do IPTU, porque é o próprio poder público, a partir de seus discernimentos exclusivos, que quantifica-o, sem qualquer intervenção do proprietário. Demais disso, o valor mencionado costuma ser conflitante com a realidade de mercado, sempre para menos. Basta que se questione qualquer indivíduo sobre seu interesse na alienação de bem imóvel de sua titularidade pelo “valor venal” e se verá que a gigantesca maioria simplesmente recusará qualquer proposta nesse sentido, diante de seu popular antagonismo com a prática mercadológica.
A propósito do justo, na esteira das ações de desapropriação, há conceito brilhantemente pronunciado pelo ex-ministro do STF Maurício Corrêa que parece atingir o âmago principiológico da expressão, e que seguramente dissocia-se do que estabelecido no dispositivo questionado: “(...) a recomposição do preço deve significar exatamente aquilo que traduzindo monetariamente permita ao expropriado ressarcir-se do valor real do bem que lhe foi retirado”[20].
Mas também é de se observar que a só previsão de normativa semelhante ao que se denominou de “imissão provisória initio litis” no contexto das ações de desapropriação implica manifesto desvirtuamento do texto constitucional, por desconsiderar a íntegra de um direito fundamental informador de que, tamanha a promiscuidade praticada em face do direito de propriedade – de matiz supralegal, vinculada à essência universal do ser humano[21]– a indenização que lhe corresponde há de ser inflexivelmente justa,préviae em dinheiro.
Ou seja, a dita indenização justa deve necessariamente ser constatada e implementada previamenteà supressão de qualquer dos elementos constitutivos do direito de propriedade, a reforçar-se que este só o é em sua plenitude, conformado a limites semânticos exclusivamente constitucionais.
A justeza, portanto, há de ser medida e quitada num prévioambiente de dialética processual plural, nunca unilateral, initio litise sem qualquer participação do expropriado, a concluir-se que a permissão que o Estado se autoconcede de invadir antecipadamente a propriedade dos indivíduos é ato que sucumbe ao totalitarismo, levando-nos ao entendimento de que, também por essa razão, o mencionado dispositivo foi enjeitado pelo ordenamento constitucional de 1988.
Isso é sobretudo relevante quando se constata no mundo real que o termo “provisório” ali previsto não passa de um engodo inserido pelo legislador para ludibriar o leitor, um escrito oco para tentar justificar a autorização de invasão sumária.
A imissão “provisória” na posse praticada no contexto das ações de desapropriação é sempredefinitiva e irreversível, tanto que: a) desde 2009, por força de alteração legislativa, fez-se inserir o §4º ao art. 15 do Decreto-Lei nº 3.365/1941, obrigando o registro da imissão “provisória” no cartório imobiliário competente, para dar-lhe a devida publicidade registral; b) por medida provisória alterou-se o Código Civil, passando a elencar-se os “direitos oriundos da imissão provisória na posse” no rol dos direitos reais e dos que podem figurar como objeto de hipoteca; e c) alterou-se a lei do sistema financeiro imobiliário para permitir a contratação de alienação fiduciária a incidir sobre os “direitos oriundos da imissão provisória na posse”[22]
Com absoluta propriedade, Maria Sylvia Zanella Di Pietro ratifica tudo aquilo que se disse até então:
Embora se reconheça a utilidade e mesmo necessidade da imissão provisória na posse, não há justificativa aceitável para transformá-la em instrumento de prejuízo ao proprietário, diante da exigência constitucional de que a indenização seja prévia. E também não há justificativa para chamar de provisória uma imissão na posse que se torna desde logo definitiva. O vocábulo “provisória”, para qualificar a imissão na posse, na desapropriação, é uma farsa. É uma máscara para ocultar a burla à exigência constitucional de indenização prévia.[23]
O eminente e reconhecido doutrinador Hely Lopes Meirelles também o faz:
Indenização prévia significa que o expropriante deverá pagar ou depositar o preço antes de entrar na posse do imóvel. Este mandamento constitucional vem sendo frustrado, pelo retardamento da Justiça no julgamento definitivo das desapropriações, mantendo o expropriado despojado do bem e do seu valor, por anos e anos, até transitar em julgado a condenação. Os depósitos provisórios geralmente são ínfimos em relação ao preço efetivo do bem, o que atenta contra o princípio da indenização prévia. Essa burla à Constituição só poderá ser obviada pelo maior rigor dos juízes e tribunais na exigência do depósito prévio que mais se aproxime do valor real do bem expropriado.[24]
Contrariando a lógica, a razoabilidade e a natureza mesma das coisas, porém, nossos supremos togados, pelos idos de 2003, disseram que tudo isso até então criticado era redondamente constitucional, daí confeccionando verbete sumular que prescreve o seguinte, e que foi inclusive ratificado recentemente pelo tribunal, nos anos de 2010 e 2014): “Súmula 652/STF - Não contraria a Constituição o art. 15, § 1º, do Decreto-lei 3365/1941 (Lei da desapropriação por utilidade pública).”[25]
Não para menos, diante dessa clarividente aberração chancelada pelo Pretório Excelso, que nos parece expor um corporativismo político e uma retroalimentação financeira do Estado, não custou para que surgissem novas teorias carnavalescas elaboradas pela eloquência enviesada dos intelectuais que com ele comungam, entre elas a que diz que o pagamento da indenização decorrente da desapropriação deve necessariamente submeter-se à sistemática constitucional dos precatórios, tese travada no Recurso Extraordinário de nº 922.144, pendente de julgamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal – STF, e que será ponderada adiante.