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O transgênero segundo o STF

Agenda 07/04/2019 às 15:22

Apresenta-se o estado atual do tratamento que o Judiciário dá aos direitos do indivíduo transgênero, a partir dos julgamentos relativos à alteração de nome, alocação em presídios e ao uso de banheiros.

 

Resumo: A pesquisa em tela analisa o tratamento dado ao transgênero pela mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, sob três aspectos diferentes, quais sejam: alteração do nome e gênero no registro civil, estabelecimento prisional compatível com a identidade de gênero e tratamento social, no caso em que se questionou a possibilidade de se usar o banheiro conforme o gênero.

PALAVRAS-CHAVES: Transgênero; STF; Alteração do registro civil; estabelecimento prisional; tratamento social.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. QUEM É O TRANSGÊNERO; 2. ALTERAÇÃO DO NOME E DO GÊNERO NO REGISTRO CIVIL; 3. ESTABELECIMENTO PRISIONAL COMPATÍVEL COM A IDENTIDADE DE GÊNERO; 4. TRATAMENTO SOCIAL CONFORME À IDENTIDADE DE GÊNERO; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.


 

INTRODUÇÃO

O artigo em tela se propõe a analisar o modo como é visto o transgênero pelo Supremo Tribunal Federal em três diferentes e importantes aspectos. Por se tratar da corte de maior relevância do país, capaz de proferir decisões de efeitos vinculante e, sobretudo, do guardião da Constituição Federal – esta que proclama direitos individuais como a dignidade da pessoa humana e a liberdade –, a discussão se apresenta bastante relevante.

Ademais, frente a demonstrações cotidianas de intolerância apresentadas pela sociedade para com os transexuais e travestis, a pesquisa visa colaborar na busca pela efetiva igualdade à qual todos fazem jus, sem distinções.

Por meio do método de compilação bibliográfica, fez-se uso do inteiro teor de processos de competência do STF e pareceres/manifestações da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República, além, claro, da consulta a obras de juristas emblemáticos como Heloisa Helena Barboza e Leandro Reinaldo da Cunha.


 

 

1. QUEM É O TRANSGÊNERO

Partindo do pressuposto de que a identidade de gênero se refere ao sentimento interno de identificação o qual cada indivíduo possui a respeito de si mesmo, seja ele correspondente ou não ao sexo de nascimento – diferindo-se, portanto, do conceito de orientação sexual – a tarefa de definir quem é o transgênero resta menos complicada (BRASIL, 2006).

Tratante do gênero como uma questão de identidade, “transgênero” é a terminologia mais genérica, na qual se enquadram o transexual e o travesti. Em comum, têm o fato de que ambos vivenciam um gênero em desconformidade com o seu sexo biológico (BARBOZA, 2012).

Por muito tempo, houve dissenso doutrinário a respeito do ponto chave capaz de diferenciar, propriamente, o transexual do travesti. Já acreditou-se, por exemplo, que a ausência do desejo compulsivo por reversão sexual caracterizava o travesti (CHOERI, 2001), enquanto a repulsa com relação à sua genitália identificava o transexual (CUNHA, 2015), ou que o elemento diferenciador entre um e outro seria a realização ou não da cirurgia de redesignação sexual.

Em uma acepção mais moderna, aqui adotada, prefere-se não estabelecer enquadramentos prévios: cabe a cada pessoa exercer o seu direito de autodeterminação, de forma que, se não realizada, far-se-á uso do termo genérico, buscando sempre respeitar a condição de sujeito de direitos. Em resumo, o transexual/travesti é quem assim se define. 

 


 

2. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO GÊNERO NO REGISTRO CIVIL

Engana-se quem acredita se tratar, esta, de questão recente. A judicialização da temática ocorre há anos: dada a inexistência de lei que regule expressamente a possibilidade de os transexuais realizarem as devidas e desejadas adequações no assento civil, os Tribunais brasileiros têm exercido forte atuação.

Em 1981, o Supremo Tribunal Federal se posicionou, pela primeira vez, sobre o tema. À época, a discussão se limitava, ainda, à (im)possibilidade de adequação do registro civil (quanto ao nome e ao sexo) dos transexuais submetidos à cirurgia de redesignação. Na oportunidade, a Suprema Corte decidiu, com base na premissa do determinismo biológico, pela improcedência dos pedidos. Sobra dizer que se aos transexuais operados o direito não era reconhecido, aos não-operados a ideia estava fora de cogitação.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 – apelidada Constituição Cidadã por fazer inúmeras referências a direitos e garantias individuais –, e, por óbvio, com o avanço na maneira de pensar da sociedade, chegaram os anos 2000, o início de um novo século, em que a tese favorável à alteração do sexo e do prenome no registro civil do transexual operado ganhou força, mas não propriamente desvinculada de polêmicas: deveria constar, quando da retificação, o termo “transexual”? A maioria da doutrina sustenta (até os dias atuais) que não se deve fazer qualquer referência à transexualidade, nem mesmo sigilosa, ao se efetuar as mudanças registrais (DINIZ, 2001).

O transexual não submetido à cirurgia de transgenitalização – sendo irrelevantes, aqui, suas das razões para tanto – estava, até então, excluído quase que por completo de toda a discussão. Incontáveis decisões conflitantes surgiam em todo o território nacional, enquanto o debate alusivo aos operados já era considerado pacificado.

Desse modo, ajuizada pela Procuradoria Geral da República em 2009, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.275 foi proposta com o objetivo resolver a questão e, portanto, de reconhecer, aos transexuais, o direito de adequar o prenome e o sexo no assento do registro civil, independentemente da realização ou não da cirurgia de transgenitalização (BRASIL, 2009). Demorou, mas, enfim, em março de 2018, o STF decidiu pela procedência do pedido.

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O direito foi reconhecido por unanimidade e, determinou-se que, para dele usufruir, o uso da via judicial não é obrigatório, bastando, portanto, mero pedido administrativo junto ao Cartório de Registro Civil competente. Ainda em 2018, a própria Corte estendeu a autorização nos moldes já explanados aos transgêneros em geral – tratou-se do julgamento do Recurso Extraordinário 670.422/RS (BRASIL, 2018a). Sem dúvidas um marco na consolidação dos direitos a honra, imagem, vida privada, igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana destes indivíduos.

Em resumo, a tese proposta por Dias Toffoli, ministro relator do RE supramencionado, aprovada pelo Plenário do STF:

1. O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa.

2. Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”.

3. Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial.

4. Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos. (BRASIL, 2018b). 

 


 

 3. ESTABELECIMENTO PRISIONAL COMPATÍVEL COM A IDENTIDADE DE GÊNERO

Em sede do HC 152.491-SP, foi analisada no Supremo Tribunal Federal a possibilidade de se transferir a paciente travesti – assim identificada nos autos –, presa em penitenciária masculina, a local condizente com sua identidade de gênero. A defesa sustentou estar sua cliente “sofrendo todo tipo de influências psicológicas, e corporais” (BRASIL, 2018c, online).

Da análise das peculiaridades do caso concreto, o ministro Roberto Barroso, em 14 de fevereiro de 2018, concedeu de ofício a ordem, nos termos do que preceituam a Resolução Conjunta n.1, de 15.04.2014, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, e a Resolução SAP n. 11, de 30.01.2014, do Estado de São Paulo. Ademais, determinou também a transferência da corré a estabelecimento prisional feminino.

No que tange, especificamente, à problemática levantada, Adreucci (2018) entende:

O combalido sistema penitenciário brasileiro [...] tem encontrado sérias dificuldades em se adaptar aos novos tempos, de diversidade sexual, em que as autoridades se veem premidas pelas circunstâncias e pelos novos paradigmas sociais relacionados à sexualidade que, desafiando os postulados estabelecidos e os estereótipos ligados ao sexo, colocam em xeque a legislação penal positivada e obrigam os julgadores a visitar novas fronteiras, nem sempre fáceis de ser vislumbradas (2018, online).

 Importante destacar que, por se tratar de habeas corpus, a decisão proferida não tem efeito vinculante para com os demais órgãos do Poder Judiciário, isto é, não passa a valer automaticamente para os casos que versem sobre questão idêntica; tem, neste caso, efeito inter partes. No entanto, a decisão não deixa de ser um padrão a ser seguido e uma elucidação de como o tema pode vir a ser tratado pela Corte em futuras decisões com efeitos vinculantes.

Atualmente em trâmite no Supremo Tribunal Federal, encontra-se a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 527, de autoria da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, versando sobre o cumprimento da pena, das custodiadas travestis e transexuais, em estabelecimento prisional compatível com o gênero feminino, e postulando que aos artigos 3º, §§1º e 2º e 4º, parágrafo único, da Resolução Conjunta n. 1/2014, seja dada interpretação conforme à Constituição. O objetivo não poderia ser mais claro: resguardar a dignidade da pessoa humana, a proibição de tratamento degradante e o direito à saúde dos indivíduos transgêneros (BRASIL, 2018d).

O julgamento da ação ainda não ocorreu, porém, a Procuradoria Geral da República (PGR) e a Advocacia-Geral da União (AGU) já se manifestaram. A primeira se manifestou favorável à pretensão e assegura:

[...] os argumentos relativos à suposta lesão à dignidade humana, e ao risco à integridade física e à liberdade sexual de mulheres cisgênero que tenham de dividir estabelecimento prisional com travestis e mulheres transexuais, não são aptos a afastar as conclusões aqui manifestadas, quer porque partem, eles próprios, de injustificável tratamento discriminatório entre pessoas transgênero e pessoas cisgênero, quer porque se apoiam em premissas meramente hipotéticas, que não podem prevalecer sobre os dados concretos acerca da violência física, sexual, moral e emocional a que são submetidas as travestis e mulheres transexuais mantidas em estabelecimentos prisionais incompatíveis com sua identidade de gênero (BRASIL, 2019, online).

Por sua vez, a AGU emitiu parecer no sentido de que as disposições atacadas já preservam os direitos das pessoas transgênero submetidas ao sistema penitenciário, não havendo que se falar em ofensa a preceitos fundamentais (BRASIL, 2018d).


 

4. TRATAMENTO SOCIAL CONFORME À IDENTIDADE DE GÊNERO

Resultante da proibição, em determinado shopping center, de que pessoa transgênero utilizasse o banheiro correspondente à sua identidade de gênero, o debate sobre o tratamento social a ser dado aos transexuais e travestis chegou ao STF em 2014 por meio do RE n. 845.779-SC, pois é questão ligada aos direitos da personalidade e à dignidade da pessoa humana. De relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, o recurso teve repercussão geral reconhecida por maioria, sob o argumento de que o tema envolve direitos fundamentais de minorias e de que se trata de caso de ocorrência frequente no país (BRASIL, 2014).

Em sua manifestação, a Procuradoria-Geral da República defendeu:

É cabível a condenação de estabelecimento comercial a pagamento por dano moral, na hipótese de abordagem de transgênero que visa constranger a pessoa a utilizar banheiro do sexo oposto ao qual se dirigiu, por identificação psicossocial, uma vez que viola a dignidade da pessoa humana, bem como os direitos da personalidade que conferem aos transgêneros os direitos referentes à sua identidade, ao reconhecimento, à igualdade, à não discriminação e à segurança, previstos nos artigos 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal (CF), caracterizando combate à discriminação racial e de gênero (BRASIL, 2015, online).

O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Luiz Fux, em novembro de 2015, portanto, o caso ainda não foi decidido, mas os ministros Roberto Barroso e Edson Fachin já proferiram voto no sentido de dar provimento ao recurso. Ao votar, o relator abordou o suposto constrangimento que seria causado às outras mulheres ante a presença de indivíduo transgênero no banheiro e concluiu que não se compara ao mal estar a ser suportado pelo transexual ou travesti obrigado a usar o banheiro não condizente com a sua identidade de gênero.

Ainda não há data designada para prosseguir o julgamento. 

 


 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do artigo, analisou-se três problemáticas distintas envolvendo o tratamento dado ao transgênero pelo Supremo Tribuna Federal. É fato que, até agora, apenas uma delas foi efetivamente julgada e é detentora de efeito vinculante – a atinente à alteração do prenome e do sexo no registro civil. Apesar disso, é possível extrair algumas conclusões.

Primeiramente, em se tratando da adequada identificação no registro civil, a Corte se demonstrou uníssona no que diz respeito à possibilidade de o indivíduo efetuar as devidas alterações, se assim desejar, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização. A decisão traduz verdadeira obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana e às premissas basilares dos direitos da personalidade, tal como a correta identificação do ser humano.

Em segundo lugar, no que se refere a coabitar estabelecimento prisional compatível com a identidade de gênero, ainda que não haja decisão definitiva e vinculante sobre o caso, identificou-se decisão anterior do próprio Tribunal Superior favorável à pretensão; o que representa indícios de como o tema pode vir a ser entendido pelos ministros.

Por último, a polêmica (quase) infindável relacionada ao tratamento social correspondente à identidade de gênero – e, talvez, no qual se caminha mais às cegas. Isto porque, ainda que sobrevenha decisão favorável, trata-se da imposição de um comportamento à coletividade (neste caso, fundada em princípios constitucionais) e, portanto, não tão simples de incorporação social, visto que a raiz da nossa sociedade ainda é preconceituosa. Por óbvio, nada disso significa dizer que eventual decisão de procedência não seria de notável avanço à consolidação dos direitos desta minoria, pois, embora haja resistência das mentes mais retrógradas e/ou conservadoras, já seria de grande valia, aos transgêneros, saber que seus direitos têm amparo na jurisprudência do principal tribunal do país. 

 


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Estabelecimentos prisionais compatíveis com a orientação sexual das pessoas presas. Empório do Direito, 22 fev. 2018. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/estabelecimentos-prisionais-compativeis-com-a-orientacao-sexual-das-pessoas-presas>. Acesso em: 31 mar. 2019. 

BARBOZA, Heloisa Helena. Transexualidade: a questão jurídica do reconhecimento de uma nova identidade. Revista Advir, Rio de janeiro: jul. 2012. Disponível em: <http://www. hhbarboza.com.br/sites/default/files/advir28online.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2019. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 31 mar. 2019. 

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CHOERI, Raul. Transexualismo e identidade social: cirurgia de transgenitalização. In: BARBOZA, Heloisa Helena; BARETTO, Vicente de Paulo. Temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. P. 225-258. 

CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001.

 

Sobre a autora
Francesca Batista

Graduada em Direito pela Universidade Evangélica de Goiás e em Letras-Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho, Direito Público, Direito Privado e Advocacia Consultiva.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Francesca. O transgênero segundo o STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5758, 7 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73069. Acesso em: 2 nov. 2024.

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