3. COMENTÁRIOS DETALHADOS, ARTIGO POR ARTIGO, AO DECRETO Nº 9.735
O Decreto 9.735/2019 promoveu alterações no Decreto 8.690/2016[22], o qual dispõe sobre “a gestão das consignações em folha de pagamento no âmbito do sistema de gestão de pessoas do Poder Executivo federal”. Passam-se aos comentários.
3.1 Revogação do inciso VII do caput do art. 3º do Decreto nº 8.690/2016 (art. 1º, I, do Decreto 9.735)
Conteúdo do dispositivo revogado:
Art. 3º Para os fins deste Decreto, são considerados descontos:
[...]
VII - contribuição devida ao sindicato pelo servidor, nos termos do art. 240 da Lei nº 8.112, de 1990, ou pelo empregado, nos termos do art. 545 da Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho; (grifou-se)
Comentários: o objetivo do Decreto é dar efetividade ao desiderato da Medida Provisória nº 873 de impossibilitar o desconto em folha das contribuições sindicais. Entretanto, a revogação do aludido inciso regulamentar – que reconhecia as contribuições sindicais como espécie de desconto (cujo conceito corresponde ao valor a ser “deduzido de remuneração, subsídio, provento, pensão ou salário, compulsoriamente, por determinação legal ou judicial”, nos termos do art. 2º, I, do Decreto 8.690/2016) - não gera efeitos práticos, já que o desconto em folha de pagamento das contribuições sindicais dos servidores públicos e dos demais trabalhadores é assegurada pelo art. 8º, IV, da Constituição Federal.
3.2 Revogação do inciso V do caput do art. 4º do Decreto nº 8.690/2016 (art. 1º, II, do Decreto 9.735)
Conteúdo do dispositivo revogado:
Art. 4º São consignações facultativas, na seguinte ordem de prioridade:
[...]
V - contribuição em favor de fundação ou de associação que tenha por objeto social a representação ou a prestação de serviços a seus membros e que seja constituída exclusivamente por aqueles incluídos no âmbito de aplicação deste Decreto; (grifou-se)
Comentários: o associativismo não passou imune à cruzada governamental contra a organização coletiva dos servidores públicos federais. Nesse sentido, o Poder Executivo, invocando o art. 45, §1º, da Lei 8.112/1990[23], resolveu inviabilizar a possibilidade de desconto em folha das contribuições destinadas a associações de servidores.
Apesar de o art. 45, §1º, da Lei 8.112/1990, dar a entender que a inclusão ou não de determinada despesa em favor de terceiros na consignação em folha de pagamento está circunscrita estritamente no âmbito da discricionariedade administrativa, fato é que o associativismo possui assento constitucional (art. 5º, XVII a XXI, da CF), ostentando inegável importância para o aprimoramento das relações sociais.
Assim, a pura e simples vedação ao desconto em folha de pagamento das contribuições destinadas às associações viola o Princípio da Proporcionalidade pois, ainda que seja adequada para reduzir os custos da União (o que, aliás, está sendo meramente presumido, já que tal ponto sequer foi demonstrado ou ilustrado com dados na exposição de motivos apresentada pelo governo), termina por sacrificar/prejudicar o desenvolvimento do associativismo tutelado constitucionalmente (a alteração não passa pelo crivo da necessidade, portanto). A título de exemplo, poderia ser atingida a mesma finalidade teoricamente almejada (redução de custos com desconto em folha) mediante o repasse às associações dos custos financeiros com a operação de desconto em folha.
Desse modo, deve-se entender como nula ou, pelo menos, sem efeito prático a alteração promovida, razão pela qual se compreende que o desconto em folha das contribuições destinadas às associações permanece sendo possível, facultando-se ao órgão, entretanto, o repasse a estas dos custos com a operação.
3.3 Estipulação de que o Decreto 9.735 entra em vigor na data de sua publicação (art. 2º do Decreto 9.735)
Comentários: com a MP 873 já vigorando, natural que as alterações regulamentares decorrentes sejam publicadas e colocadas em vigor o mais rapidamente possível, mesmo que completamente equivocadas (caso das revogações supra). Desnecessários maiores comentários sobre o ponto.
4. ANÁLISE CRÍTICA
A Medida Provisória nº 873/2019 e o Decreto 9.735/2019, apesar da retórica oportunista e aleatória de defesa da autonomia sindical, visaram dificultar o custeio das entidades sindicais. Algumas alterações, entretanto, apenas consolidaram entendimentos há muito consagrados pela jurisprudência.
Por outro lado, a medida provisória, como instrumento legislativo excepcional que inverte e subverte a ordem natural do processo legislativo (o ato normativo é editado pelo próprio Executivo, ao invés de ser devidamente debatido e aprovado previamente pelas Casas Legislativas; o ato já nasce com força de lei, quando a eficácia de uma lei ordinária, por exemplo e normalmente, somente é obtida após aprovação pelo Poder Legislativo e sanção pelo Poder Executivo), somente pode ser editado em casos de relevância da matéria e de necessidade urgente de alterar o corpo normativo até então vigente (art. 62, caput, da Constituição Federal), observadas as demais restrições impostas pela Carta Magna.
Nessa linha, a relevância da matéria veiculada pela MP 873 é muito difícil de ser desconstruída argumentativamente, haja vista que as alterações promovidas, por mais grotescas que sejam, foram entendidas como importantes pelo Executivo.
O requisito da urgência, no entanto, é mais facilmente verificável.
A tentativa de impedir que decisões sindicais coletivas imponham contribuições sindicais a não filiados pode ser entendida como urgente, haja vista que visa resguardar a segurança jurídica e, ademais, positivar na lei questões que já são há muito tempo solidificadas pela jurisprudência, acertada ou não, do Tribunal Superior do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal.
A tentativa de inviabilização do desconto em folha de pagamento das contribuições sindicais, por outro lado, de modo algum pode ser entendida como urgente, haja vista que rompem com procedimento e legislação adotados pelo menos desde a edição da CLT, em 1943 (caso dos trabalhadores da iniciativa privada), e desde a vigência da Lei 8.112, em 1990 (caso dos servidores públicos federais). Após décadas, de repente, o tema virou uma questão incrivelmente inaceitável e equivocada ao ponto de merecer alteração sumária via medida provisória? Claro que não. O debate prévio é necessário para a promoção de uma alteração tão significativa, rompedora da tradição histórica do país e prejudicial à sobrevivência financeira do sistema sindical.
A tentativa de impor um procedimento único e burocrático por meio de cobrança por boleto bancário ou equivalente eletrônico nitidamente também não tem nada de urgente. Há décadas a cobrança é feita por desconto em folha ou, se for o caso, por qualquer outro meio disponível, sendo certo que não há nada que justifique que essa alteração onerosa, limitativa e prejudicial às entidades sindicais deva se dar por meio de uma alteração normativa sumária e sem qualquer debate prévio com a sociedade por meio do regular processo legislativo.
Ressalte-se que a jurisprudência do STF admite o controle judicial dos requisitos de edição da medida provisória, desde que evidente e manifesta a inobservância dos pressupostos constitucionais (caso de boa parte da MP 873), conforme se infere do aresto a seguir ementado:
Ementa: Direito constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Medidas Provisórias Nº 577/2012 e Nº 579/2012, convertidas nas Leis Nº 12.767/2012 e Nº 12.783/2013, respectivamente. Prestação do serviço público de energia elétrica. Juízo excepcionalíssimo dos requisitos. Violação ao art. 62, caput, da Constituição Federal não verificada. 1. As Medidas Provisórias nº 577/2012 e nº 579/2012, convertidas nas Leis nº 12.767/2012 e nº 12.783/2013, respectivamente, que reduzem o custo da energia elétrica para o consumidor brasileiro e viabilizam a adequada prestação do serviço público de energia elétrica em caso de extinção por falência ou caducidade da concessão ou permissão de serviço público de energia elétrica, não violam os pressupostos previstos no art. 62, caput, da Constituição Federal, visto que foram observados, pelo Chefe do Poder Executivo e pelo Congresso Nacional, os requisitos da urgência e relevância, como demonstrado nas exposições de motivos de ambas as medidas provisórias, e não há nenhum indício de excesso ou abuso por parte do Chefe do Executivo que enseje e justifique a censura judicial. 2. A conversão em lei de medida provisória impugnada, mesmo se introduzidas alterações substanciais, não necessariamente acarretará em perda de objeto da ação direta de inconstitucionalidade, cabendo a esta Corte prosseguir no julgamento da respectiva ação, quando forem questionados os pressupostos constitucionais – urgência e relevância – para a edição daquele ato normativo. Nesse sentido: AgR na ADI 5.599, Rel. Min. Edson Fachin, decisão monocrática proferida em 01.08.2017, DJe 03.08.2017. 3. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que somente se admite o exame jurisdicional do mérito dos requisitos constitucionais de relevância e urgência na edição de medida provisória em casos excepcionalíssimos, em que a ausência desses pressupostos seja manifesta e evidente. Precedentes: RE 526.353, Rel. Min. Roberto Barroso; RE 700.160, Rel. Min. Rosa Weber; ADI 2.527, Rel. Min. Ellen Gracie. 4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.
(ADI 5018, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-189 DIVULG 10-09-2018 PUBLIC 11-09-2018) (grifou-se)
Nesse sentido, além das inconstitucionalidades materiais já amplamente demonstradas ao longo dos comentários em relação ao Decreto 9.735 e à Medida Provisória nº 873, esta ainda incorreu em vício formal (manifesta ausência de urgência) em relação às alterações normativas que visaram impedir o desconto em folha de pagamento das contribuições sindicais e obrigar a cobrança destas por meio de procedimento engessado envolvendo a adoção de boleto bancário ou equivalente eletrônico.
Não é à toa, portanto, que inúmeras entidades sindicais vêm conseguindo, por meio de processos judiciais, a concessão de medidas de urgência que sustam os efeitos da Medida Provisória nº 873 em relação a esta abrupta mudança na forma de custeio do sistema sindical.
Em breve o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de se manifestar sobre o tema, haja vista que, até o fechamento deste escrito, doze Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a Medida Provisória nº 873, uma inclusive veiculada pela Ordem dos Advogados do Brasil, encontravam-se pendentes de apreciação pela Suprema Corte.
E, por fim, aqui cabem alguns esclarecimentos.
Segundo o Supremo Tribunal Federal, o caráter supralegal dos tratados internacionais somente alcança os pactos envolvendo direitos humanos (RE 466343, HC 87585 e ADI 5240). Apesar de ser possível desenvolver argumentação no sentido de que as Convenções da Organização Internacional do Trabalho sobre matéria sindical ratificadas e promulgadas pelo Brasil ostentariam conteúdo de direitos humanos, entende-se ser mais fácil e viável criticar e anular os efeitos de parcela da MP 873 e do Decreto 9.735 por meio de um cotejo direto com a Carta da República de 1988. Por esse motivo, centrou-se o foco na Constituição Federal, optando-se por não se comentar a incompatibilidade de algumas das alterações promovidas com os instrumentos internacionais, apesar da evidente inobservância, por exemplo, dos ditames das Convenções nº 144 e 151 da OIT.
Permanece viva, assim, a convicção de que as aberrações antissindicais trazidas pela Medida Provisória nº 873 serão extirpadas, sem rastros, seja pelo Legislativo, seja pelo Judiciário. Isso, é claro, partindo do pressuposto de que ainda há Direito e coerência jurídica/política em nossa nação.