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A presunção de vulnerabilidade ante a Lei nº 13.718/2018 e a hipervalorização do punitivismo na ordem jurídica brasileira

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Embora pareça estabelecer presunção absoluta de vulnerabilidade do adolescente, o Código Penal não poderia formular proposta nesse sentido, senão seria inconstitucional.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O código penal de 1940 e os crimes contra a dignidade sexual; 3. O histórico julgamento do “Habeas corpus” n. 73.662/MG; 3. Da relatividade da vulnerabilidade da menor de 14 anos; 4. Do tratamento jurídico diverso às pessoas em razão da idade; 5. Da relatividade da vulnerabilidade da pessoa menor de 14 anos; 6. Do PLS n. 618/2015 à Lei n. 13.718/2018; 7. À guisa de conclusão; Referências.

RESUMO: O estupro de vulnerável, especialmente a relatividade da presunção de vulnerabilidade em razão da idade, merece uma análise aprofundada porque há um descompasso na legislação criminal brasileira, a qual pretende que a presunção de vulnerabilidade seja absoluta. As diferentes categorias de pessoas, em razão da idade, com reflexos no Direito Criminal e, não obstante a Lei n. 13.718, de 24.9.2018, ter inserido o § 5º no art. 217-A do Código Penal, torna plausível entender que a vulnerabilidade é relativa.

PALAVRAS-CHAVE: ESTUPRO. VULNERÁVEL. IDADE. RELATIVIDADE.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo será elaborado para discutir o estupro de vulnerável, visando a perquirir se a Lei n. 13.718, de 24.9.2018, transformou a vulnerabilidade em razão da idade em absoluta. O tema é atual e a sua relevância jurídica é evidente em face do aumento da criminalidade brasileira e a tentativa de combater a criminalidade por intermédio do recrudescimento jurídico-criminal.

Passaremos inicialmente pelo Código Penal, tratando das redações anteriores, até chegarmos à Lei n. 12.015, de 7.8.2009, a Súmula n. 593 do Superior Tribunal de Justiça e, por fim, Lei n. 13.718/2018. Desta lei, teremos a preocupação especial com a inovação trazida ao art. 217-A. Com isso, buscaremos situar o leitor sobre o cerne da discussão, visto que será imperioso demonstrar os motivos para as alterações havidas no Código Penal, especialmente acerca dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, até chegarmos à última alteração, trazida pela Lei n. 13.718/2018.

Discorreremos rapidamente sobre o processo legislativo que resultou na Lei n. 13.718/2018, e evidenciaremos que as penas brasileiras são elevadas, ao contrário do que se diz sobre a legislação brasileira ser exageradamente branda.

Em nossa conclusão verificaremos se será passível de comprovação a nossa hipótese, construída no sentido de que, mesmo ante o novel § 5º do art. 217-A, a presunção de vulnerabilidade do adolescente deverá ser considerada relativa.


2. O CÓDIGO PENAL DE 1940 E OS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL

O Código Penal (Decreto-lei n. 2.848, de 7.12.1940) foi instituído sob a égide de uma Constituição outorgada, em um momento de instabilidade mundial, eis que havia em curso a Segunda Grande Guerra.

Em 1930, era Ministro da Justiça na Itália, Alfredo Rocco, o qual editou o Código Penal Italiano, sendo que o Projeto de Alcântara Machado trazia a marca fascista do Código Rocco e o nosso Código Penal foi significativamente melhorado pela comissão revisora, integrada por grandes juristas, dentre eles Nélson Hungria, que foi buscar ideais humanitários no Código Penal Suíço, minimizando a austeridade do projeto fascista originário.

O Código Penal tem uma Parte Geral com 120 artigos e uma Especial que se estende do art. 121 até o seu último artigo, o 361. A Parte Geral foi toda ela modificada pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984, já a Parte Especial tem diversas modificações pontuais.

Inicialmente, tínhamos os crimes contra os costumes no Título VI da Parte Especial do Código Penal, interessando o estupro e o atentado violento ao pudor, que eram assim definidos no Capítulo I (crimes contra a liberdade sexual):

Estupro

Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena - reclusão, de três a oito anos.

Atentado violento ao pudor

Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Pena - reclusão de dois a sete anos.

Naquela primeira redação do Código Penal, tínhamos o estupro como um crime progressivo, o qual, para ser alcançado, o agente teria, necessariamente, que passar pelo atentado violento ao pudor. E eram previstas, no Capítulo IV (disposições gerais), as formas qualificadas e a presunção de violência, da seguinte maneira:

Formas qualificadas

Art. 223 - Se da violência resulta lesão corporal de natureza grave.

Pena - reclusão, de oito a doze anos

Parágrafo único - Se do fato resulta a morte:

Pena - reclusão, de oito a vinte anoPena - reclusão, de doze a vinte e cinco anos.

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Presunção de violência

Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:

a) não é maior de catorze anos;

b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;

c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

Vê-se que esses dois últimos artigos incidiam sobre os arts. 213 e 214 do Código Penal. Para o presente estudo, o que chama a atenção é o art. 224, alínea “a”, que adotou péssima técnica legislativa ao estabelecer “se a vítima não é maior” de 14 anos. Seria melhor ter estabelecido “a) é menor de catorze anos”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069 de 13,7.1990), inseriu parágrafos únicos aos arts. 213 e 214 transcritos para dispor:

4) Art. 213 ...................................................................................

Parágrafo único. Se a ofendida é menor de catorze anos:

Pena - reclusão de quatro a dez anos.

5) Art. 214....................................................................................

Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos:

Pena - reclusão de três a nove anos.

Segundo Alberto Silva Franco, dois erros foram cometidos aí, visto que as penas foram tornadas únicas, desprezando o aspecto da progressividade do crime de estupro e, portanto, a desistência voluntária. Pior, estuprar menor de 14 anos teria pena menor do que a do estupro de mulher maior de 14 anos, eis que a Lei n. 8.072, de 25.7.1990, passou a prever pena única (reclusão, de 6 a 10 anos) para os crimes de estupro e atentado violento ao pudor.

A incoerência da pena menor para quem praticasse estupro contra menor de 14 anos só foi resolvida com a Lei n. 9.281, de 4.6.1996, a qual só se destinou a revogar os mencionados parágrafos únicos inseridos pela Lei n. 8.069/1990 aos arts. 213 e 214 do Código Penal.

Hoje, a redação do art. 213 do Código Penal é a seguinte:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2o Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

Vê-se que os arts. 214 e 223 perderam a razão de existirem, uma vez que os arts. 213 e 217-A, inseriram as condutas do art. 214 neles, bem como as formas qualificadas do art. 223. Daí a revogação expressa dos referidos artigos, embora se possa criticar o fato de se ter unificado o estupro e o atentado violento ao pudor.

Substituindo o art. 224 do CP, emergiu novo artigo no Código Penal, dispondo:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

§ 2o (VETADO)

§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

§ 4o Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que adolescente prostituta na teria vulnerabilidade a ser tutelada, mas isso gerou clamor público.[1] Daí a Súmula n. 593 do STJ e depois a Lei n. 13.718, de 24.9.2018.


3. O HISTÓRICO JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS N. 73.662/MG

No ano de 1996 a imprensa alardeou equivocadamente que o Supremo Tribunal Federal não mais via estupro no sexo perpetrado por pessoa maior de 12 anos de idade. Para tanto, colheram o seguinte trecho do voto do relator: “Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze anos”.[2]

A repercussão equivocada do voto do relator, Min. Marco Aurélio, se estende ao longo dos anos, sendo que se verifica em textos acadêmicos sérias críticas ao seu voto, como se ele fosse um fomento ao abuso sexual de crianças e adolescentes, podendo-se citar, como exemplo:

As palavras do magistrado deixam claro, para desespero daqueles que se preocupam com a sorte (ou falta de sorte) das crianças brasileiras, que elas são, de fato, objetos para uso dos adultos, assim, o pornô-turismo, a exploração sexual, o tráfico de crianças, seu uso como mão-de-obra escrava e outras mazelas são signos de inserção do Brasil na modernidade marcada pela globalização.[3]

Muitos equívocos foram mencionados à época e continuaram sendo repetidos ao longo dos anos, talvez por falta de conhecimento jurídico. Mas, a simples leitura da ementa permite concluir que o fundamento da decisão foi outro, a saber:

EMENTA: COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra), em relação à qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha esse, ou não, qualificação de superior. ESTUPRO - PROVA - DEPOIMENTO DA VÍTIMA. Nos crimes contra os costumes, o depoimento da vítima reveste-se de valia maior, considerado o fato de serem praticados sem a presença de terceiros. ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA - IDADE DA VÍTIMA - NATUREZA. O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça - artigo 213 do Código Penal. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea "a", do Código Penal.[4]

Velha controvérsia que havia residia no fato de que a alínea “b” do art. 224 do Código Penal, tratando da doença mental, fazia ao conhecimento do agente dessa condição da vítima e, com relação à idade, o código nada mencionava. Assim, entendiam alguns que a presunção de violência seria absoluta, incidindo ainda que o agente não pudesse conhecer essa circunstância. No julgamento em questão, o que se agasalhou foi a possibilidade de erro de tipo.

A decisão acolheu o entendimento de que os hábitos da adolescente corroborados pela aparência física da jovem, que aparentava mais velha, o agente errou quanto à elementar do tipo “não é maior de 14 anos”.

Posteriormente, sabendo ser a vítima criança, o Supremo Tribunal Federal enfrentou um caso em que uma menina, desde os 9 anos de idade mantinha relação sexual com o seu tutor legal, com quem teve um filho e passou a viver em aparente união estável. No entanto, o tribunal não acolheu o pedido de extinção da punibilidade pela união estável do agente com a vítima, especialmente porque a violência sexual iniciou quando ela era ainda criança e se engravidou com 11 ou 12 anos de idade.[5]

Vê-se que o STF não decidiu, no HC 73.662/MG, que menor de 14 anos não tem liberdade sexual a tutelar. Ao contrário, ele manteve a ideia de que a presunção de violência, no caso de criança, a presunção é absoluta, pouco interessando a concordância da vítima para a realização do ato sexual.


4. DO TRATAMENTO JURÍDICO DIVERSO ÀS PESSOAS EM RAZÃO DA IDADE

Não poderá o interprete ou a legislação infraconstitucional tratar igualmente aquilo que a Constituição Federal distinguiu. Assim, não podem ser equiparados criança e adolescente, uma vez que a Constituição Federal claramente os distingue (art. 203, inc. II; art. 227, caput, § 1º, § 2º, incs. VI e VII, § 4º e § 7º).

Até mesmo entre as crianças, a Constituição Federal trata diversamente, para fins educacionais, as menores de 6 anos de idade. Também, dentre os adultos, a Constituição destacou os idosos (art. 203, inc. V; e art. 230, § 1º). Ela só admite o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos maiores de 18 anos e os demais trabalhos aos maiores de 16 anos. Maior de 14 anos, só podem trabalhar na condição de aprendiz (art. 7º, inc. XXXIII).

A Constituição Federal cria distinções entre as pessoas, em razão da idade, só podendo se alistarem eleitoralmente os maiores de 16 anos, facultativamente. Também, o alistamento será facultativo para os maiores de 70 anos. De outro modo, o alistamento será obrigatório para os maiores de 18 anos de idade (art. 14, § 1º). Dentre outros aspectos, cria idades mínimas para elegibilidade a determinados cargos (art. 14, inc. VI).

Para o Código Civil, os menores de 16 são considerados impúberes. Já Os maiores de 16 anos e menores de 18 anos são relativamente independentes para exercerem os atos da vida civil (art. 3º e art. 4º, inc. I). Interessante notar que a incapacidade civil relativa, no CC/1916 se estendia até os 21 anos de idade (art. 6º, inc. I), talvez por isso, os Juízes quando se referem à atenuante do art. 61, inc. I, do CP, expressam “menoridade relativa”. Ora, como o maior de 18 anos é absolutamente capaz, é completamente equivocado falar em “menoridade relativa” do maior de 18 anos e menor de 21 anos na data do crime.

A Lei n. 8.069, de 13.7.1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), respeita a Constituição Federal ao estabelecer que a criança é a pessoa menor de 12 anos de idade e o adolescente é o maior de 12 e menor de 18 anos de idade (art. 2º caput). Mais ainda, trata diferentemente, o adulto menor de 21 anos de idade (art. 2º, parágrafo único) e a criança menor de 5 anos de idade (art. 54, inc. IV).

A mesma lei proíbe o trabalho para o menor de 14 anos de idade (art. 60), assegurando bolsa aprendizagem ao adolescente até 14 anos de idade (art. 64). E, ainda, prevê que a criança, em razão de ato infracional, só estará sujeita somente às medidas protetivas (art. 105). Já o adolescente estará sujeito, também, às medidas sócio-educativas, dentre elas, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida e internação (art. 112).

Observe-se que o adolescente, a partir dos 12 anos de idade, pode ser internado, em faze da responsabilidade especial do menor. No entanto, o que se vê é que, contrariamente, pretende-se que sobre aspectos sexuais ele seja equiparado à criança.

O Código Penal também distingue as pessoas em razão da idade. Crianças e adolescentes são inimputáveis (art. 27). O menor de 21 anos terá uma atenuante genérica na dosimetria da pena (art. 65, inc. I). Por outro lado, toda vez que o idoso for vítima de crime, haverá agravante genérica (art. 61, inc. II, alínea “h”). Mas, a atenuante genérica ao idoso só se dará quando ele alcançar 70 anos de idade (art. 65, inc. I).

O exposto evidencia que não se pode pretender equiparar o adolescente menor de 14 anos à criança. Mais ainda, no Código Penal, dentre os crimes contra a dignidade sexual, ser o adolescente maior de 14 anos e menor de 18 anos, qualificará o crime (art. 213, caput). E o favorecimento à prostituição de menor de 18 anos será mais grave (art. 218-B), o que será crime hediondo (Lei n. 8.072, de 25.7.1990, art. 1º, inc. VIII).

Sobre os autores
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Alessandro Rodrigues Faria

Professor Me. do UDF – Centro Universitário do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa; FARIA, Alessandro Rodrigues. A presunção de vulnerabilidade ante a Lei nº 13.718/2018 e a hipervalorização do punitivismo na ordem jurídica brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5762, 11 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73166. Acesso em: 5 nov. 2024.

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