1. INTRODUÇÃO
Na sociedade contemporânea, as cirurgias plásticas, sobretudo aquelas com condão estético-embelezador estão cada vez mais em voga. O ser humano, cada vez mais preocupado em seguir estereótipos e fenótipos de beleza culturalizados e balizados pela medicina mercadológica e pelo avanço paulatino da tecnologia, vem submetendo-se a procedimentos médicos com maior frequência.
Tal fenômeno, por óbvio, desencadeia maior probabilidade de descontentamentos pós-cirúrgicos, sobretudo quando se dissemina que o dever do profissional da saúde é alcançar o resultado ou ainda pior, alcançar a satisfação plena do paciente.
Nesse contexto, ainda que o corpo humano ostente peculiaridades e que cada indivíduo goze de singularidades fisiológicas e anatômicas, o Poder Judiciário, em regra, considera as cirurgias estético-embelezadoras como uma obrigação de resultado, e não de meio, como a maioria das atividades médicas.
No decorrer desta pesquisa far-se-á uma imersão na doutrina e na legislação que rege o tema com o objetivo de exercitar a reflexão crítica sobre essa problemática que permeia diariamente a vida de cirurgiões e pacientes e expor, com todo respeito, a insubsistência da linha argumentativa que defende o encargo do resultado para as cirurgias predominantemente estéticas.
2. A ESTÉTICA COMO COMPOSTO DE SAÚDE
A Organização Mundial da Saúde, nos idos da década de 40, sedimentou os elos estruturantes da saúde integral, quais sejam: físico; mental e social[1]. Desde o século XIX, a medicina já aceitava que a saúde não é só um bem-estar, ou seja, estar sem febre, tosse ou dores, estar com a pressão arterial dentro da normalidade ou com outra patologia visível de plano.[2]
A definição que Roberto Costa Correia Leite traz para a saúde integral é irretocável, vejamos[3]:
“Este estado de alegria, felicidade, bem-estar, embora momentâneo, é o que corresponde a saúde integral.”
Nesse espectro de alegria, felicidade e bem-estar estão as cirurgias plásticas embelezadoras.
A problemática se hospeda na definição do que seja um procedimento exclusivamente estético, como muitos escritores e magistrados o definem. A resistência em relação a esta categorização se dá em razão da subjetividade afeta a cada ser-humano, o que torna qualquer objetivação algo perigoso.
A cirurgia hoje considerada cosmética pode estar fundamentada, por exemplo, em um quadro psíquico alarmante, ao passo que não se pode qualificar um procedimento com estas características como uma superficialidade, ou um procedimento de luxo, sem antes entender os motivos que fizeram aquele paciente buscar uma intervenção cirúrgica.
O mestre renomado, Miguel Kfouri Neto[4] disserta no seguinte sentido, vejamos:
[...] não deve ser considerada uma cirurgia de luxo ou mero capricho de quem a ela se submete.
Dificilmente, um paciente busca a cirurgia estética com absoluta leviandade e sem real necessidade, ao menos de ordem psíquica. para ele, a solução dessa imperfeição física assume um significado relevante no âmbito de sua psique - daí se poder falar, ainda que termos brandos, como afirma Avecone, de “estado patológico”
3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO
3.1. Responsabilidade Subjetiva ou Objetiva?
Sobre a natureza da responsabilidade civil do médico, leciona com coerência o Dr. Nelson Figueiredo Mendes[5], vejamos:
O médico é responsável por seus atos médicos e pelos procedimentos realizados por seus auxiliares sob a sua supervisão direta.
A responsabilidade civil pode determinar que uma pessoa tenha que reparar o dano causado a outrem por sua ação, omissão ou fato, o por pessoa ou coisa que dela dependam.
Nesse diapasão, é a responsabilidade subjetiva que rege as atividades exclusivamente médicas, dependendo da comprovação de negligência, imprudência ou imperícia para configuração do dever de reparar.
Sobre as elementares da culpa no exercício medico, define forma sintética o médico, Dr. Nelson Figueiredo Mendes[6], senão vejamos:
“Imperícia – Neste caso, ocorre falta ou deficiência de conhecimentos técnicos; seria o caso de algum médico que não estivesse apto para determinado procedimento, resolvesse executá-lo.
Imprudência – Corresponde a uma atitude ativa, injustificável, sem cautela, precipitada, utilização de técnica nova e arriscada, sem comprovada eficiência.
Negligência – Indica atitude passiva, omissiva, sem as precauções necessárias, esquecimentos, exame superficial do paciente e falta de solicitação de exames subsidiários necessários.”
O próprio código que rege as relações consumeristas[7] estabelece a condição da culpa, veja-se:
Art. 14. [...]
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
Ainda na temática, levando em conta o aspecto contratual das relações médico-paciente, com exceção daquelas de cunho emergencial, a codificação civil regulamenta as consequências da inexecução de obrigações[8], verbis:
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
A situação inerente à responsabilidade objetiva está ligada sensivelmente aos estabelecimentos empresariais, isto é, clinicas médicas, consultórios, hospitais e assemelhados.
A visão moderna de responsabilidade objetiva foi trazida pelo exímio cientista do direito, Sr. Anderson Schreiber, vejamos:
A cláusula geral de responsabilidade objetiva por atividades de risco demonstra a importância que a moção de risco apresenta para esta espécie de responsabilidade. De fato, foi sobretudo com base na ideia de que uma pessoa deve responder pelos riscos derivados da sua atividade (culposa ou não) que a responsabilidade objetiva logrou atrair adeptos em todos os ordenamentos, encerrando império exclusivo da culpa, no que já foi definido como uma tripla liberação.[9]
Nesse prisma, trazendo a lume o objeto da presente investigação científica, qual seja, a cirurgia plástica, soa abusivo impor ao profissional a obrigação de resultado, haja vista que terá que recrutar da mesma técnica e protocolos operacionais de uma cirurgia de caráter predominantemente terapêutico, tão logo, se vê que a definição doutrinária que defende essa espécie de procedimento como obrigação de resultado está lastreada não em aspectos técnico-científicos ou complexidade clínica ligada ao procedimento, mas ao paradigma conservador histórico e sociológico da medicina como instrumento de cura e nada mais.
3.2. Obrigação de Meio e de Resultado
Nesta reflexão acerca das obrigações é que se hospeda a principal celeuma desta perscrutação científica, ao passo que se busca contestar a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência que defendem a obrigação de resultado para cirurgias plásticas.
Os tribunais pátrios e a grande parte dos literatos do direito visualizam a cirurgia reconstrutora ou reparadora como obrigação de meio, enquanto conservam o posicionamento que a cirurgia “estético-embelezadora” se enquadra nas obrigações de resultado.
Esta lógica tem guarida na ideia de que o paciente se encontra em situação sadia quando do momento da manifestação de vontade pela cirurgia “estético-embelezadora”, razão pela qual, na concepção de autores como Nehemias Domingos de Melo[10], assume obrigação pelo insucesso da empreitada.
Tal entendimento também se planta na ideia de que, quando alguém está, em tese, em boas condições de saúde, procura um médico somente para melhorar algum aspecto seu que considera desagradável, querendo pontualmente este resultado, não apenas que aquele profissional desempenhe seu trabalho com diligência e zelo, caso contrário, não adiantaria arriscar-se e gastar dinheiro para não haver alguma “evolução”.
Essa posição sofre críticas de um dos maiores nomes do direito médico, Dr. Genival Veloso de França[11], senão vejamos:
Nesse aspecto, como todo respeito, discordamos frontalmente, notadamente no que diz respeito a cirurgia reparadora e à restauradora, pois difíceis e delicados são os momentos enfrentados nesta especialidade, com destaque nos serviços de urgência e emergência, quando tudo é paradoxal e inconcebível, dadas as condições excepcionais e precárias, e muitas vezes diante da essência dolorosamente dramática da eminencia de morte. Exigir-se nestas circunstancias uma obrigação de resultado é, no mínimo desconhecer os princípios mais elementares dessa especialidade cirúrgica.
No mesmo sentido, com uma eloquência digna de sua notoriedade, Sergio Cavalieri Filho[12], versou da seguinte forma:
“Nenhum médico, por mais competente que seja, pode assumir a obrigação de curar o doente ou de salvá-lo, mormente quando em estado grave ou terminal. A ciência médica, apesar de todo o seu desenvolvimento, tem inúmeras limitações, que só os poderes divinos poderão suprir. A obrigação que o médico assume, a toda evidência, é de proporcionar ao paciente todos os cuidados conscienciosos e atentos, de acordo com as aquisições da ciência, para usar-se a fórmula consagrada na escola francesa. Não se compromete a curar, mas a prestar os seus serviços de acordo com as regras e os métodos da profissão, incluindo aí cuidados e conselhos.
Logo, a obrigação assumida pelo médico é de meio, e não de resultado [...] Esta conclusão, além de lógica, tem o apoio de todos os autores, nacionais e estrangeiros (Aguiar Dias, Caio Mário, Sílvio Rodrigues, António Montenegro) e é também consagrada pela jurisprudência. (Grifou-se).
Destarte, se acentua com tranquilidade que o encargo assumido pelo médico configura ou deveria configurar obrigação de meio e, só mediante alguma excepcionalidade, constituir obrigação de resultado, sendo tal exceção fruto do nível de previsibilidade e evitabilidade do aludido erro profissional e jamais proveniente da suposta intenção do paciente ou da presunção de ausência de terapia no procedimento.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, levando em conta todas as peculiaridades que norteiam a atividade médica, notadamente aquelas inerentes ao próprio corpo humano e sua imprevisível resposta a determinadas situações e provocações, a pesquisa enveredou para a linha minoritária da doutrina, discordando, em linhas gerais, da posição dos Tribunais Superiores (Superior Tribunal de Justiça) quando excetuam a Cirurgia Plástica embelezadora do rol de procedimentos abarcados pela obrigação de meio.
5. REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 181.636-1, da 3ª Turma, Brasília, DF, julgado em 27/09/2011 apud ROCHA, Thiago dos Santos. A Aplicação do Código de Defesa do Consumidor à Relação Médico-Paciente de Cirurgia: Plástica Visão Tridimensional e em Diálogo de Fontes do Shuld e Haftung.- 1. Ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017
BRASIL: LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002.. Institui o Código Civil., Brasília, DF, jan. 2012. http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 01 de fevereiro de 2018.
BRASIL: LEI Nº 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências, Brasília, DF, set. 1990. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 01 de fevereiro de 2018.
FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. – 14. Ed. Ver. E atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2017 http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 01 de fevereiro de 2018.
KFOURI, Neto Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. - 9. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2018. p. 224-225.
MELO, Nehemias Domingos de. Responsabilidade civil por erro médico: doutrina e jurisprudência. – 3. Ed. – São Paulo: Atlas, 2014
MENDES, Nelson Figueiredo. Responsabilidade ética, civil e penal. São Paulo: SARVIER, 2006
SCHNEIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. – 6. Ed. – São Paulo: Atlas, 2015
SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde. Rev. Saúde Pública, São Paulo , v. 31, n. 5, p. 538-542, Oct. 1997 Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034 89101997000600016&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Apr. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101997000600016.
Silvio Rodrigues. Direito Civil, v. 4, p. 252 apud. MELO, Nehemias Domingos de. Responsabilidade Civil por erro médico: doutrina e jurisprudência. – 3. Ed3 – São Paulo: Atlas, 2014
THEODORO, Júnior Humberto. Dano Moral - 8. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2016. Pág. 77
Notas
[1] SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde. Rev. Saúde Pública, São Paulo , v. 31, n. 5, p. 538-542, Oct. 1997 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89101997000600016&lng=en&nrm=iso>. access on 11 Apr. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101997000600016.
[2] LEITE, Roberto Costa Correa. A busca da saúde integral. – São Paulo: LTr, 2014, p. 51-52.
[3] LEITE, Roberto Costa Correa. A busca da saúde integral. – São Paulo: LTr, 2014, p. 51-52.
[4] KFOURI, Neto Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. - 9. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2018. p. 224-225.
[5] MENDES, Nelson Figueiredo. Responsabilidade ética, civil e penal. São Paulo: SARVIER, 2006, pag. 127-128.
[6] MENDES, Nelson Figueiredo. Responsabilidade ética, civil e penal. São Paulo: SARVIER, 2006, pag. 133.
[7] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 01 de fevereiro de 2018.
[8] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 01 de fevereiro de 2018.
[9] SCHNEIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. – 6. Ed. – São Paulo: Atlas, 2015, pg. 28.
[10] MELO, Nehemias Domingos de. Responsabilidade civil por erro médico: doutrina e jurisprudência. – 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2014, pg. 139-140.
[11] FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. – 14. Ed. Ver. E atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, pg. 340-341.
[12] THEODORO, Júnior Humberto. Dano Moral - 8. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2016. Pág. 77