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A Medida Provisória da Liberdade Econômica e a desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, CC).

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Agenda 01/05/2019 às 22:15

§ 3º  O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

Em nossa visão, consagrou-se, aqui, a desconsideração inversa ou invertida, o que significa  ir ao patrimônio da pessoa jurídica, quando a pessoa física que a compõe esvazia fraudulentamente o seu patrimônio pessoal.

Trata-se de uma visão desenvolvida notadamente nas relações de família, de forma original, em que se visualiza, com frequência, a lamentável prática de algum dos cônjuges que, antecipando-se ao divórcio, retira do patrimônio do casal bens que deveriam ser objeto de partilha, incorporando-os na pessoa jurídica da qual é sócio, diminuindo o quinhão do outro consorte.

Nesta hipótese, pode-se vislumbrar a possibilidade de o magistrado desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, buscando bens que estão em seu próprio nome, para responder por dívidas que não são suas e sim de seus sócios, o que tem sido aceito pela força criativa da jurisprudência:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA. CONVERSÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. COBRANÇA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS. TERCEIROS. COMPROVAÇÃO DA EXISTÊNCIA DA SOCIEDADE. MEIO DE PROVA. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. OCULTAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO SÓCIO. INDÍCIOS DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EXISTÊNCIA. INCIDENTE PROCESSUAL. PROCESSAMENTO. PROVIMENTO.

1. O propósito recursal é determinar se: a) há provas suficientes da sociedade de fato supostamente existente entre os recorridos; e b) existem elementos aptos a ensejar a instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

2. A existência da sociedade pode ser demonstrada por terceiros por qualquer meio de prova, inclusive indícios e presunções, nos termos do art. 987 do CC/02.

3. A personalidade jurídica e a separação patrimonial dela decorrente são véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou da sociedade, reciprocamente, na justa medida da finalidade para a qual a sociedade se propõe a existir.

4. Com a desconsideração inversa da personalidade jurídica, busca-se impedir a prática de transferência de bens pelo sócio para a pessoa jurídica sobre a qual detém controle, afastando-se momentaneamente o manto fictício que separa o sócio da sociedade para buscar o patrimônio que, embora conste no nome da sociedade, na realidade, pertence ao sócio fraudador.

5. No atual CPC, o exame do juiz a respeito da presença dos pressupostos que autorizariam a medida de desconsideração, demonstrados no requerimento inicial, permite a instauração de incidente e a suspensão do processo em que formulado, devendo a decisão de desconsideração ser precedida do efetivo contraditório.

6. Na hipótese em exame, a recorrente conseguiu demonstrar indícios de que o recorrido seria sócio e de que teria transferido seu patrimônio para a sociedade de modo a ocultar seus bens do alcance de seus credores, o que possibilita o recebimento do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, que, pelo princípio do tempus regit actum, deve seguir o rito estabelecido no CPC/15.

7. Recurso especial conhecido e provido.

(STJ, REsp 1647362/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 10/08/2017)

O Código de Processo Civil de 2015 expressamente contemplou a possibilidade jurídica desta modalidade de desconsideração, conforme se verifica do § 2.º do seu art. 133[11].


§ 4º  A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

Nada demais é dito aqui.

Nenhuma desconsideração poderá ser decretada, se os requisitos legais não forem obedecidos.

Um detalhe, todavia, deve ser salientado.

Se, por um lado, a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos legais não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, por outro, nada impede que, uma vez observados tais pressupostos, o juiz decida, dentro de um mesmo grupo, pelo afastamento de um ente controlado, para alcançar o patrimônio da pessoa jurídica controladora que, por meio da primeira, cometeu um ato abusivo.

Trata-se da denominada desconsideração indireta, segundo MARCIO SOUZA:

A desconsideração da personalidade jurídica para alcançar quem está por trás dela não se afigura suficiente, pois haverá outra ou outras integrantes das constelações societárias que também têm por objetivo encobrir algum fraudador.(…)

A jurisprudência tem adotado tal posicionamento: "Hipótese em que o acórdão embargado admitiu a aplicação da doutrina do "disregard of legal entity", para impedir a fraude contra credores, considerando válida penhora sobre bem pertencente a embargante, nos autos de execução proposta contra a outra sociedade do mesmo grupo econômico." (41). No mesmo sentido: "Sendo as empresas mera fachada de seu presidente comum, é de ser aplicado à hipótese a teoria da "disregard", agasalhada em nosso ordenamento, pelo art. 28, da Lei 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor)."[12]


§ 5º  Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

Aqui, o desvio de finalidade - um dos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica segundo o art. 50 - recebeu um segundo golpe (o primeiro decorreu da exigência do “dolo” para a sua configuração, conforme o §1º já analisado acima).

Ao dispor que não constitui desvio de finalidade a “alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica”, o legislador dificultou sobremaneira o seu reconhecimento: aquele que “expande” a finalidade da atividade exercida  - como pretende a primeira parte da norma - pode não desviar, mas aquele que “altera” a própria finalidade original da atividade econômica da pessoa jurídica, muito provavelmente, desvia-se do seu propósito.

Caberá, portanto, neste ponto, à jurisprudência, estabelecer as balizas razoáveis de interpretação para que o instituto da desconsideração não perca a sua eficácia, tão importante para a salvaguarda do crédito no Brasil.

 Aguardemos.


Notas

[1] Serviu de inspiração para este tópico o volume I - Parte Geral, do nosso Novo Curso de Direito Civil, 21ª ed. 2019,  Ed. Saraiva, escrito em coautoria com Rodolfo Pamplona Filho.

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[2] Na Itália, cita-se a grande contribuição de Piero Verrucoli, Professor da Universidade de Pisa, no seu estudo Il Superamento della Personalità Giuridica della Società di Capitali nella “Common Law” e nella “Civil Law”.

[3] Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, 23. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 349.

[4] Trata-se do famoso caso Salomon v. Salomon & Co. Aaron Salomon, objetivando constituir uma sociedade, reuniu seis membros da sua própria família, cedendo para cada um apenas uma ação representativa, ao passo que, para si, reservou vinte mil. Pela desproporção na distribuição do controle acionário já se verificava a dificuldade em reconhecer a separação dos patrimônios de Salomon e de sua própria companhia. Em determinado momento, talvez antevendo a quebra da empresa, Salomon cuidou de emitir títulos privilegiados (obrigações garantidas) no valor de dez mil libras esterlinas, que ele mesmo cuidou de adquirir. Ora, revelando-se insolvável a sociedade, o próprio Salomon, que passou a ser credor privilegiado da sociedade, preferiu a todos os demais credores quirografários (sem garantia), liquidando o patrimônio líquido da empresa. Apesar de Salomon haver utilizado a companhia como escudo para lesar os demais credores, a Câmara dos Lordes, reformando as decisões de instâncias inferiores, acatou a sua defesa, no sentido de que, tendo sido validamente constituída, e não se identificando a responsabilidade civil da sociedade com a do próprio Salomon, este não poderia, pessoalmente, responder pelas dívidas sociais. “Mas a tese das decisões reformadas das instâncias inferiores repercutiu”, assevera RUBENS REQUIÃO, pioneiro no Brasil no estudo da matéria, “dando origem à doutrina do disregard of legal entity, sobretudo nos Estados Unidos, onde se formou larga jurisprudência, expandindo-se mais recentemente na Alemanha e em outros países europeus” (ob. cit.).

[5] Fábio Ulhoa Coelho, Desconsideração da Personalidade Jurídica, São Paulo: RT, 1989, p. 54. Parece-nos, porém, que o ilustrado e reconhecido Professor, posteriormente à edição de sua excelente monografia, passou a sustentar um pensamento situado entre as linhas subjetivista e objetivista, consoante se depreende da seguinte lição: “em suma, entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante” (Curso de Direito Comercial, São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 44).

[6]Superior Tribunal de Justiça:

 ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.

- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.

- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.

- Recurso a que se nega provimento.

(RMS 15.166/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2003, DJ 08/09/2003, p. 262)

[7] Flávio Tartuce. Manual de Direito Civil - Volume Único. 7ª ed. São Paulo: Gen, 2017, págs. 192-193.

[8] Cf., por exemplo, o art. 135 do Código Tributário Nacional:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

[9] Utilizamos a expressão “ legislador”, com a ciência de que se trata de lei apenas em sentido material, dado que se trata de uma Medida Provisória.

[10] Fábio Konder Comparato, O Poder de Controle na Sociedade Anônima, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 284-6.

[11] CPC/2015: “§ 2.º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica”.

[12] Márcio Souza Guimarães. Aspectos modernos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/3996>. Acesso em: 1 maio 2019.

Sobre o autor
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze. A Medida Provisória da Liberdade Econômica e a desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, CC).: Primeiras impressões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5782, 1 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73648. Acesso em: 22 dez. 2024.

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