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Espaço tutelar e olhar panóptico.

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Agenda 31/05/2019 às 10:00

Seria o conselho tutelar um micropoder do Estado a impor o modelo ideal de solidariedade intrafamiliar? Reflete-se sobre o espaço ocupado por esta instituição, à luz do conceito panóptico de Michel Foucault.

Resumo: O trabalho analisa o espaço do Conselho Tutelar (CT) à luz do conceito panóptico de Michel Foucault. Parte do princípio de que o trabalho reflexivo do teórico possibilita análises elucidativas a respeito deste espaço, traçando linhas sobre a existência do mesmo como política pública para configurar ou reconfigurar a sociabilidade intrafamiliar de crianças, adolescentes e pais. Utilizou-se a observação direta para a obtenção dos dados empíricos. Situamos o Conselho Tutelar como um micropoder do Estado, estando circunscrito na vida das famílias ditas “anormais”. Assim, o CT se reveste de prerrogativas constitucionais, ou de uma moral instituída pelo Estado para agenciar vidas, corpos e indivíduos a luz da jurisdição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90). Constatando, pois, como sendo um mecanismo panóptico que está, com frequência, gerindo a vida dos indivíduos que, em sua grande maioria, vivem em situação de vulnerabilidade social.

Palavras-chave: Conselho Tutelar; Olhar Panóptico; Criança; Adolescente; Família.


INTRODUÇÃO

Os Conselhos Tutelares (CTs) foram criados a partir da implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na década de 1990. Fruto de muitas lutas sociais, o ECA/90, como Política Pública voltada para o segmento infanto-juvenil, é um instrumento que busca horizontalizar direitos as crianças e adolescentes1 que, até então, se viam sob o jugo dos ditames adultocêntricos (PRIORE, 2007, p. 84). Agora, esses Sujeitos de Direitos passam a ter um lugar social diferenciado (PINHEIRO, 2006, p. 36) nas instituições públicas do Estado, na sociedade civil e na Família.

Para a concretização desse novo cenário conferido à criança e ao adolescente, foi necessária a criação de um órgão que buscasse proteger os direitos e deveres dessa nova representação social (MOSCOVICI, 1978, p. 25). Logo, criaram-se os CTs que tem a função de promover e garantir esses direitos e deveres. E para colocar isso na prática, esse órgão utiliza-se de inúmeros instrumentos de atuação no cotidiano infanto-juvenil.

Mas para poder efetivar a promoção e a garantia de direitos, o CT ganhou características as quais são pertinentes para a atuação tutelar. Entre estas características temos a autonomia administrativa de atuação, que significa, entre outras coisas, não depender da autorização de ninguém - nem do Prefeito, Vereador e Juiz - para pôr em prática aquilo que lhe é atributivo e nem ser interrompido por qualquer ente externo que venha prejudicar sua ação tutelar: artigos 136, 95, 101 (I a VII) e 129 (I a VII) do ECA/90.

Dessa forma, essa instituição, criada pelo Estado, passa a estar presente no seio intrafamiliar, procurando remediar as feridas sociais advinda de uma sociabilidade tida como sendo “anormal”. Por sociabilidade “anormal” entendemos como sendo práticas que colocam em xeque a condição peculiar de desenvolvimento da criança e do adolescente, no caso tratado aqui, pelos próprios pais ou responsáveis.

Assim, o CT se reveste de uma moral social instituída e circunscrita dentro de uma órbita jurídica através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90), para poder transitar pelos diversos espaços onde se encontram esse segmento da sociedade. Encontrado alguma disjunção social intrafamiliar, o CT passa a estar próximo das famílias em desordem (referência à obra da Elisabeth Roudinesco), procurando, com outras instituições/órgãos, sanar a patologia existente no seio intrafamiliar.

Essa reflexão só foi possível porque estivemos exercendo a função de conselheiro tutelar do Conselho Tutelar do Município de Horizonte no Estado do Ceará por cerca de quase seis anos2. Foi utilizada a observação direta das ações dos conselheiros tutelares em prática de atuação tutelar. O apanhado empírico-metodológico, e agora com o entrelaçamento teórico advindo das leituras do filósofo Michel Foucault, em especial as obras Vigiar e Punir e Microfísica do Poder possibilitaram refletir sobre as redes e conectivos desse espaço que se configura tão rizomático. Nesse sentido, o apanhado analítico se debruçará da seguinte maneira: 1) Como o Conselho Tutelar se manifesta como sendo um mecanismo panóptico do Estado no agenciamento da vida dos indivíduos? 2) O que possibilita ao Conselho Tutelar ser o que ele é, um órgão de proteção, prevenção e, principalmente, de fiscalização da vida de crianças, adolescentes e também dos pais desses sujeitos? E, por fim, 3) Como o Conselho Tutelar coloca em prática os mecanismos de agenciamento de corpos e vidas a fim de reconfigurar a sociabilidade tida como “anormal”? Portanto, que mecanismos de ações são evocados para remediar as “doenças” sociais intrafamiliares que estão fora do espaço-campo da legalidade?

Não procurando encontrar pistas conclusivas, mas sim, que possibilitem, ainda mais, a reflexão sobre esse espaço - o espaço tutelar - é que esse trabalho se mostra pertinente, tendo em vista os poucos trabalhos existentes acerca do assunto. Além disso, no primeiro domingo de outubro deste ano (2019), ocorrerá a primeira eleição unificada a função de conselheiro tutelar em todo o país. Dito isso, anteriormente, as eleições se davam de maneira específicas em cada município/cidade do país. Logo, essa reflexão se reveste de importância inconteste para refletir suas particularidades instituicionais.


MÁQUINA DE PODER: O conselho tutelar como olhar panóptico

Nessa esteira rolante em que o Estado dispõe de inúmeros mecanismos de controle, dos corpos e da vida social dos indivíduos, imaginem mais um órgão com essas premissas, porém bastante específicas. Específicas porque agora ela possui sua singularidade galgada em determinada camada social: crianças e adolescentes.

Após a formulação e implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na década de 1990, e com o respectivo advento do surgimento órgão/Conselho Tutelar, esses Sujeitos com Direitos passam a estarem sob o olhar vigilante desse órgão. E mais do que isso, o olhar vigilante não fica atrelado especificamente no órgão. Ele é mais disperso, estando atrelado em cada indivíduo que conviva próximo desses sujeitos e nos próprios sujeitos.

Exemplificamos a afirmação acima ao relatar que qualquer pessoa pode ser delatada ao órgão/Conselho Tutelar por qualquer indivíduo. O CT desperta essa constante vigília nas relações que se dão com crianças e adolescentes no seio intrafamiliar. Age, portanto, com princípios de dispositivo panóptico. Ele, como já mencionado anteriormente, está em todos os lugares/espaços, em cada indivíduo, em cada olhar, vigiando os corpos, identificando-os e classificando-os. Com frequência, aliás, na existência do CT, induzindo no indivíduo um “estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático” (p.195). Afirma Foucault (2014):

O Panóptico de Bentham é figura arquitetal dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas tem duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre ; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta não colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente (p.194).

Assim, intervêm na vida dos sujeitos com o poder de vigilância, mesmo que não estando próximo, presente fisicamente, mas a partir de um sentimento de vigilância espraiado. Pode ser a própria mãe que denuncia o filho ou filha; pode ser um familiar que denuncia à mãe e o filho, o vizinho, a professora, a agente comunitária de saúde que, uma vez mensal em sua atividade profissional adentrou a casa e percebeu algo que estava em não conformidade com os ditames instituídos socialmente. Por ditames instituídos socialmente, ressoa sobre as regras sociais que são criadas a partir de uma moral coletiva que é configurada em um conjunto de leis sociais. Leis sociais essas que irão reger como a vida dos indivíduos devem se portar.

Como mencionado acima, o dispositivo da delação ou denúncia evoca uma persistente forma de controle de governo dos indivíduos. Foucault (1992) abordou esse tema, por exemplo, no texto “A vida dos homens infames” (ver referência). O anonimato remete a lembrança ás “lettres de cachet” que eram cartas que denunciavam os pequenos dramas familiares, isto é, os conflitos da intimidade (FOUCAULT, 1992). Na atualidade, vemos que os denunciantes são pessoas que estão bem próximas da família. E isso vem demonstrar que a família na atualidade está a todo o momento sendo vigiada.

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Qualquer tipo de ilegalidade em suas práticas cotidianas está passível pelo poder da punição. O poder de denunciar o pai, mãe ou qualquer responsável, entre outras coisas, mostra como o poder está em todos os lugares, “bem ao lado”. Esse poder da denuncia vem materializar o que Foucault (1992) afirma sobre a destituição do poder única e exclusivamente do Estado. Na obra Microfísica do Poder, o filósofo vai expor que o poder da denúncia através da fala está presente em todo e qualquer cidadão. Dessa forma, inaugura-se um novo lugar, que tem por finalidades múltiplas e ao mesmo tempo objetividade em sanar a patologia da infância e da adolescência desregulada ou “anormal” no seio intrafamiliar.

Ao perceber que determinado padrão social não está sendo colocado em prática e o que se vê, portanto, é a transgressão do mesmo, qualquer sujeito está apto a levar determinada situação aos olhos dos agentes sociais do CT.

Ao mesmo tempo e como parte dessa mesma confirmação, afirmamos que o CT está em cada indivíduo que possui o conhecimento da sua existência. Falamos do conhecimento da sua existência porque grande parte da sociedade não letrada ainda desconhece a existência desse mecanismo de participação, defesa e, no caso aqui trabalhado, como instância de vigilância da sociabilidade da vida dos indivíduos. Além disto, o CT está em cada indivíduo que, além de conhecer sua existência, deve saber como proceder até chegar a ele.

E, para isso, é necessário ter conhecimento das atribuições do órgão. Uma vez que ao assumir as vestes de conhecedor do imbróglio social de transgressão, o sujeito passa a ser integrante ou porta voz das futuras ações que ocorram no caso delatado. Ele passa a ser um agente social de ampliação do olhar panóptico das relações intrafamiliares que são tidas como “anormais”.

Na relação entre conselheiro e delator, quer seja por telefone, e-mail ou presente no ambiente tutelar, faz-se, na oportunidade, anotação do telefone do delatário, endereço e situação familiar. Pergunta-se qual o grau de relação do sujeito-delator para com os sujeitos que estão tendo suas vidas intrafamiliares narradas para os tutores sociais do Estado. Inscreve e institucionaliza o indivíduo e sua vida. A vida social do delator, como se vê, também é atravessada por questionamentos que são, a partir do olhar do Estado e da instituição órgão tutelar, necessárias para realizar uma radiografia social do contexto e das tramas sociais que por lá chegam.


PORTA ABERTA PARA A AÇÃO TUTELAR: Relações “anormais”

A concepção social de criança e adolescente como Sujeito de Direitos, como já pontuado anteriormente, é algo recente na historiografia brasileira (PINHEIRO, 2006). A partir do momento que fincou-se essa representação com dispositivos constitucionais e normais a serem engendradas na sociabilidade, por exemplo, familiar, na sociedade e no Estado, conforme está circunscrito no ECA/90, tudo o que estiver fora desse universo é considerado “anormal”, “desviante”, “desregulado” e que, portanto, deve ser trabalhado por agentes sociais do Estado para transpor essa barreira daquilo que é “normal” e “anormal”.

Antes dessa concepção social que evoca ações de cunho protetivo, promoção e vigilância, requerendo dos três entes (família, sociedade e Estado) ações que busquem arranjar um lugar social compatível com as premissas sócio-cultural-psicológica desses sujeitos, tudo o que é gerido e envolvia esses indivíduos não era passível de punição, ou então, velavam-se as ações colocadas em prática pelos adultos para com os, à época, “menores”.

Esses sujeitos tiveram sua representação social modificado ou longo do tempo. Conforme o interesse em jogo, ou seja, conforme o contexto social na qual essas representações foram gestadas, nas palavras de Ângela Pinheiro (2006) a criança foi configurada de diversas maneiras.

Para o entendimento de como se gesta uma representação social, Pinheiro (2006: 35-40) a partir de Therrien e Muscovic (1998:31-34), vai ressaltar que as representações sociais são construções simbólicas ou construções mentais, e que por isso se fazem instrumentos de apreensão da realidade.

Para o entendimento das representações que configuraram a concepção da criança ao longo do tempo, fez-se necessário, na concepção de Pinheiro (2006), percorrer a historia social brasileira “para identificar os contextos sócios-históricos em que se deram a emergência e a institucionalização das representações sociais da criança” (p.23).

Dessa forma, ainda segundo Pinheiro (2006), a criança brasileira possuiu três concepções principais ao longo da historia brasileira. A primeira se refere a ela como sendo objeto de proteção social. Diferentemente da criança que possui um valor secundário na família, como pontua Costa (1989), nesse momento a criança passa a ser protegida desde seus primeiros anos de vida. Um dos fatores importantes para florescimento dessa concepção é o trabalho das Igrejas Católicas e da atividade filantrópica, que, com seus valores centrais, como o são o “amor ao próximo” e a “compaixão”, procuram centraliza-lo no trata da criança.

No final do século XIX e nos primórdios do século XX, ainda na fala de Pinheiro (2006: 55), o Estado passa a querer investir no desenvolvimento da criança. O contexto sócio- histórico demonstrar que o Estado tem por objetivo a ideia de “criar filhos para a nação”.

A criança, antes manipulada pela religião e pela propriedade familiar, ver-se-á, no século XIX, novamente utilizada como instrumento do poder. Desta feita, porém, contra os pais e a favor do Estado (COSTA, 1999, p. 175).

Nesse momento, a família, que até então possuía o monopólio da criação da criança, passa a dividir “ônus e bônus” com o Estado. Assim, a criança, que ora se desenvolve nesse contexto, ao invés de servir aos interesses da família, passa a ditar as regras impostas pelo Estado.

A partir desse olhar, a criança é tida como objeto de controle e disciplinamento social. Elas são disciplinadas pelo Estado através da ação dos higienistas, da escolarização e profissionalização. O objetivo de tal intento é que os mesmos não procedem a executar atos de delinquência, e a família, nesse momento, cabe o exercício da prática das atividades advindas do Estado.

Entre as décadas de 1930 a 1940, a partir do crescimento do número de crianças na marginalização advindo da não inserção ao sistema vigente, tem-se o grande número de crianças na rua e marginalizadas como sendo caso de policia. Utilizou-se de práticas corretivas no uso de coerção para com as chamadas “delinquências”.

A família que possuía um filho “delinquente” costumava leva-lo para casas de internatos. Foi nesse momento que se deu a criação do Código de Menores (1927). O objetivo do mesmo era “incluir hábitos de trabalho e educa-los profissionalmente os pequenos mendigos, vadios, viciados e abandonados” (PINHEIRO, in: OSTERNE, 1995, p.02).

Mas foi só a partir da década de 1970, que a criança passa a possuir atributos de sujeito que possui direitos. A “infância sem família”, na representação das crianças abandonadas, mendigos, vadios e viciados, na concepção de Postman (2008), começa a exigir um aparato jurídico que responda aos novos tempos. Surgem, portanto, a Declaração dos Diretos da Criação (1959) e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, as quais são pontuadas como sendo os pilares de uma nova era para a criança e para o adolescente.

O dispositivo constitucional denominado de ECA (Lei 8069/90), entre outras coisas, visa regulamentar aquilo que já tinha sido escrito no artigo 227 da Constituição brasileira de 1988; ele tem por base a proteção na íntegra da criança e do adolescente, ressalvando e criando aparatos jurídicos e normativos para regulamentar e reconfigurar o universo desse que hoje são tidos como sendo sujeitos.

Antes do ECA, o chamado Códigos de Menores, que até então prevalecia na sociedade brasileira punindo os ditos menores, ou seja, aqueles que viviam em situação de vulnerabilidade social e que por isso adentrava a esferas de situações dita como sendo irregular, vem contrastar com o novo Estatuto, uma vez que este busca horizontalizar direitos a todas as crianças. Como consta no Estatuto:

“[...] estabelece direitos a serem garantidos para todas as crianças: direitos relativos à sobrevivência, ao desenvolvimento pessoal e social e à integridade física, psicológica e moral, criando instrumentos de garantia para cumprimento destes direitos, tais como os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares (ECA/90)”.

Dessa forma, o Estado, a sociedade e a família, devem, entre outras coisas, dispensar um novo olhar em termos de conteúdo, método e gestão no que diz respeito a sociedade de convivência com esses sujeitos. Muitas práticas que anteriormente eram colocadas em relevo, hoje são consideradas abusivas e que rasgam o Estatuto. Assim, nada mais coerente com essa nova visão do que procurar colocar em pratica um reordenamento das praticas cotidianas, pois a lei é categoricamente explicita no que se refere a isso.

Mas para que tudo isso seja colocado em prática, creditou-se necessitar de dispositivos governamentais para que isso prevalecesse. Logo, temos os Conselhos Tutelares, como mecanismo de controle social das relações intrafamiliares; esses sujeitos passaram a ter fundamental importância nessa nova roupagem que a sociedade civil, o Estado e a Família devem ter oriundo desse novo dispositivo constitucional. Esse Conselho tem a função de fiscalizar e gerir novas formas de sociabilidade quando ocorrem (des)funções nas relações que envolvem criança e adolescente.


O TRABALHO DOS AGENTES SOCIAIS: Mecanismo de controle intrafamiliar?

Nesse momento, empreendemos o foco que é chave mestre no delineamento desse apanhado analítico, que é todo o processo de reconfiguração em que crianças, adolescentes e familiares passam a estar na esteira rolando do Conselho Tutelar. Assim, poderemos fazer um mapeamento do trabalho desenvolvido pelos agentes sociais tutelares para remediar situações de violações de direitos acontecidos no seio intrafamiliar. Além de procurarem controlar relações díspares, institucionalizam a família a regras e normas de convivência que visam à prática de uma sociabilidade dita “saudável”.

O que se busca através do trabalho dos agentes sociais, afirma Heloíza Szymanky (1992), em sua obra Trabalhando com as famílias, onde a família pensada, esta que está de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90), deve ser colocada em prática a todo custo em detrimento da família vivida, esta cheio de abusos, falhas e “anormalidades” no convívio da solidariedade familiar.

Na contemporaneidade, a família assume posturas para tentar sobreviver diante da realidade mutante que a cerca. Têm-se um confronto entre a família pensada, representante do modelo burguês idealizado e a família vivida, inserida no cotidiano real. Szymanski (1992) vai dizer que a família pensada representa o controle do grupo social, pressionando a adoção de um modelo padrão ideal.

A família pensada, a qual denominamos de ideal, que existe ao nível das representações familiares, é constituída pela ideia que se tem da família com todos os laços de solidariedade harmônico, onde o pai é chefe maior e a mãe a provedora dos mimos maternos. Portanto, representa o que é certo, equilibrado, desejável e socialmente aceitável.

Dentro dessa visão, ou seja, da existência e a necessidade de uma família pensada é que os agentes sociais colocam em prática suas ferramentas de trabalho. Diante dos inúmeros problemas intrafamiliares que acontecem nos lares sociais, os técnicos do social (DONZOLET, 2001) que, nesse caso, se referem aos conselheiros tutelares do Conselho Tutelar (CT) são convocados a adentrar a esfera familiar com todo seu aparato técnico, com encaminhamentos, relatórios sociais, investigações sociais, busca ativa, relatórios de evolução, entrevistas, oficinas de recomposição familiar, atividades educativas, e uma gama de ações que visam reparar e redirecionar as práticas da solidariedade familiar.

Como embasamento e norte da atuação tutelar, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/90) que configura-se como sendo um regulamento, como outros existentes na atualidade, que busca forjar uma sociabilidade inscrito dentro do meio jurídico, e que, portanto, possui sua base legal dentro do imaginário coletivo daquilo que é aceito socialmente. Por outro lado, tudo o que está fora desse regulamento faz parte daquilo que não deve ser aceitável, que é “anormal”, “desregulado”, e que, por isso, deve ser agenciado tendo em vista que pode corromper aqueles que estão trilhando a linha da “normalidade” social.

Temos como primazia da atuação tutelar, situações onde crianças e adolescentes estejam em eminente risco da sua proteção integral3. Assim, o CT deve agir com todas as armas que dispõem configurando-se numa espécie de “policiamento espacial especial” infanto-juvenil, buscando encerrar ou banir qualquer tipo de situação que coloque em risco a situação psíquica, física e moral desses sujeitos.

Assim, quando se declara uma violação por parte dos próprios pais ou familiares que tem a função de garantir uma sociabilidade saudável à criança e ao adolescente, entra em cena uma série de ações de tutela: retirada do sujeito do seio intrafamiliar violador; busca por espaço de acolhimento que garanta os princípios razoáveis de uma sociabilidade saudável; correção dos atos praticados pelos transgressores através de um aparato estatal, através de órgãos instituídos como Centro Especializado da Assistência Social (CREAS), Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), entre outros dispositivos que possuem, assim como o CT, seus específicos estatutos de atuação e regulamentação das disfunções sociais.

Se for necessário retirar as crianças e os adolescentes da casa onde ocorreu a violação de direitos, tal se fará de modo que os mesmos tenham garantida a preservação da sua identidade. Em outras palavras, conforme pontua o regulamento instituído, isto é, o ECA/90, a ação tutelar deve ser feita de modo a preservar a moral dos indivíduos envolvidos nos conflitos intrafamiliares. Em tempo, todos os indivíduos, inclusive os adultos sujeitos-violadores devem ter preservado o anonimato4, tendo em vista que a exposição deste recai diretamente na identificação daqueles.

Assim, busca-se realizar as incursões tutelares em turnos, de modo que se evite qualquer encontro com indivíduos que estejam fora do espaço-campo conflitual. Só circulam, portanto, os intendentes, os pares familiares que estiveram envolvidos no caso, bem como outros que serão recrutados, a depender da situação, a estarem sendo co-partícipe dos desdobramentos e fissuras residuais.

A partir desse momento entra em cena todo o aparato técnico-burocrático de inspeção. São recrutados agentes sociais de diversos órgãos, a saber: CRAS, CREAS, CAPS, CAPS-AD e demais instituições que visam a sanar as patologias encontradas no seio intrafamiliar. Que passam, agora, a estarem alerta em toda parte, como afirma Michel Foucault (2014) “um corpo de milícia considerável, comandado por bons oficiais e gente de bem” (p. 190).

O regulamento (ECA/90) fala de um sistemático acompanhamento do caso, dos indivíduos, da sociabilidade corriqueira que estes passam a desempenhar a partir da intervenção do CT. Contudo a realidade é bem diferente daquilo que está instituído através dos documentos oficiais. Com a crescente demanda, essa vigília torna-se quase sempre impossível de acontecer. O aumento da quantidade de casos de desvios sociais intrafamiliares envolvendo crianças e adolescentes demanda um aparato maior, ou seja, mais agentes sociais, equipamentos, instituições e dispêndio de tempo para remediar as “anormalidades”.

Com o crescente número populacional, bem como a situação contextual socioeconômico nada favorável para as camadas menos favorecidas, impulsionam famílias a estarem na esteira rolante do CT. Assim, torna-se inviável para os agentes sociais estarem, todos os dias, com o aporte de que dispõem, intendendo visitas a casa de que está encarregado, bem como verificar se os indivíduos estão cumprindo as tarefas que foram orquestradas pelas instituições responsáveis para remediar a solidariedade familiar; assim como, se as crianças ou os adolescentes possuem queixas mesmo após a intervenção ou o trabalho tutelar.

Mesmo com essas dificuldades, a “fiscalização dos atos” acontece, apesar que, de maneira não ideal, inscrita no regulamento. Esse olhar vigilante se apoia num sistema de registro permanente, ou deveria se apoiar, dado as dificuldades já descritas. São relatórios situacionais dos conselheiros tutelares, que depois são repassados para outros técnicos do social como assistentes sociais, psicólogos e pedagogos. A partir daí os relatórios sobre a vida dos indivíduos são repassados para dentro do espaço jurídico, ou seja, enviado para o Ministério Público (MP) para que possa dar “parecer final” sobre o curso da vida dos sujeitos envolvidos nas tramas familiares.

Ainda sobre os registros, é preciso dizer que neles irão conter o nome dos sujeitos envolvidos, a idade, o sexo, a condição social na qual vivem, as relações de parentescos, os hábitos diários, a escolaridade, a raça/cor, as relações objetivas de trabalho, lazer e até as vontades e sonhos. Todo esse aporte descritivo estará presente em todos os espaços/órgãos que estarão responsáveis por reconfigurar a solidariedade familiar. É uma espécie de registro da patologia social familiar, onde cada órgão tem a finalidade de sanar essa doença. Contudo, cada instituição/órgão possui sua específica função no desenvolvimento da reabilitação desse “corpo social doente”.

Nesse sentido temos uma espécie de modelo compacto de agenciamento da sociabilidade dos indivíduos. Feito esse primeiro apanhado radiográfico da vida dos sujeitos, sua sociabilidade e seus corpos passam a estarem dentro de um modelo compacto de dispositivo disciplinar. Na medida em que o regulamento (ECA/90) passa a ser a tônica das relações cotidianas, que até então não “existia” (por não terem conhecimento da existência do mesmo, entre outros atributos5) na vida desses sujeitos, busca-se desfazer todas as “confusões” ou “anormalidades” no seio intrafamiliar.

Contra a “desordem”, levanta-se um discurso de poder emanado pelas instituições tutelares. É um discurso político jurídico que foi concebido socialmente, e através dele e com ele busca-se penetrar a vida dos indivíduos nos mais capilares modo-de-ser. Modos-de-ser que assim pode ser definido: não à práticas que transgridem a condição peculiar de desenvolvimento da criança e do adolescente, mas sim, a penetração do regulamento (ECA/90) “até nos mais finos detalhes da existência e por meio de uma hierarquia completa que realize o funcionamento capilar do poder” (p. 192).

Busca-se, portanto, um lugar para a criança ou adolescente, assim como para os pais no seio social. É como se os mesmos, a partir das suas práticas em não conformidade com o regulamento, estivesse fora, para além da linha que margeia a normalidade, sobrando, portanto, aquilo que é “anormal”. Busca-se, assim, um lugar, um corpo, um nome, uma condição social, um lugar de existência que até então “não existia”.

O trabalho dos agentes sociais tem essa função, de encontrar um registro “verdadeiro”, uma identidade “verdadeira”, um corpo “verdadeiro”, uma sociabilidade necessária para que crianças e adolescentes sejam, verdadeiramente, Sujeitos com Direitos. Sob esse aspecto utilizam-se, como já descrito acima, de inúmeros aparatos técnico-burocrático fincado pelo Estado para que esses sujeitos saiam do espaço-campo da “anormalidade” e venham a estar no espaço-campo da “normalidade” constituída por uma moral ou solidariedade familiar aceita socialmente.

Em tempo, se é verdade que os sujeitos diagnosticados como sendo “desviantes” por estarem dentro do espaço-campo da “anormalidade”, por terem uma sociabilidade intrafamiliar em desacordo com os códigos e símbolos sociais instituídos como sendo o “normal”, essa condição suscita, no cotidiano, um olhar excludente para esses indivíduos a ponto do Estado intervir através de ações socioassistenciais. Todavia, essas ações, em nível de ação tutelar, pode, perfeitamente, ser entendida dentro de uma visão de manutenção das funções do corpo-sociedade. Em outras palavras, numa visão durkheimiana, é como se esse organismo ou unidade social – família – estivesse numa situação de anomia social6, e que por isso, deve, a todo custo, ser remediado.

A partir do momento que se identifica os sujeitos “desviantes”, inscreve-se uma divisão binária na sociedade. Isto é, os que são “normais”, aqueles sujeitos que seguem a cartilha do imaginário coletivo que foi instituído socialmente, no caso, o ECA/90, e os “anormais”, que vivenciou ou vivenciam práticas que vão de encontro com as regras basilares de convivência da solidariedade familiar.

Oriunda dessa situação onde se instaura uma divisão, o trabalho social do CT passa a estar relacionado diretamente a esses dois segmentos: uma organização aprofundada das vigilâncias e dos controles, uma intensificação e ramificação de poder. Para os “desviantes”, uma ação mais enérgica com o objetivo de reconfigurar os desvios. Já para o outro segmento, por sua vez, busca-se a preservação e manutenção do modo de convivência a fim de que não saiam da órbita normalizadora/ou normalizante.

Os sujeitos “desviantes” são vistos pela sociedade a partir de “práticas de rejeição”. Ao adentrarem o espaço do Conselho Tutelar, o estigma advindo da prática “desviante” aos olhos da população passa a ser corriqueiro. Todos que passam por esse espaço são considerados sujeitos que necessitam de um “policiamento tático meticuloso”, onde as diferenciações estão associadas aos desvios cometidos. Por exemplo, os sujeitos envolvidos em caso de abuso sexual passam a serem pintados em cena, no caso da figura do abusador, de estuprador, já a vítima, por sua vez, a abusada/estuprada. Ambos passam, mesmo por conotações diferenciadas, a serem inscritos através de signos oriundos das práticas tidas como sendo “desviantes”.

E a partir daí se fazem as maneiras-modos de exercer o poder sobre os homens a partir do controle das suas relações cotidianas. O mundo dos “desviantes” passa a ser marcado por vários dispositivos de agenciamentos: o olhar de todos, a vigilância, a documentação, o registro e as incursões “in loco” nas suas casas pelos tutores sociais. No fundo, o que se quer dizer com isso é que os indivíduos encontram-se governados, em perfeito estado de manutenção pelo Estado. As relações intrafamiliares tidas como “anormais” são o desenho do nascimento de um dispositivo que traz à tona o exercício do poder disciplinar.

Podemos inferir, portanto, que a visualização do Estado na sociedade pode ser delineada a partir do momento em que se concebe a existência de anomias sociais. É como se a concretude de sua existência só fosse possível a partir da necessidade do funcionamento dos seus dispositivos: regulamento, por exemplo, o ECA/90, instituições estatais como o Conselho Tutelar, os agentes sociais como os conselheiros tutelares e as táticas e estratégias a partir dos programas e políticas públicas disponibilizados para específicos setores da sociedade, isto é, o trabalho social delineado por todo esse aparato técnico-burocrático disponibilizado pelo Estado.

Nesse sentido, pode-se, com relativa facilidade, perceber que, mesmo sendo diferentes esquemas de conceber o que é “normal” e “anormal”, através dos dispositivos de agenciamentos e configurações ou (re)configurações, não deixam de ser, todavia, compatíveis. A busca pela preservação daquilo que é tido como sendo “normal”, também disponibiliza um grande esforço de instrumentos, táticas e técnicas de outro âmbito, com outras instituições, mas não menos diferentes do que aqueles.

Podemos citar como exemplo instituições de ensino que visam a mapear ações sintomáticas, denominadas de pedagógicas, de um Estado atentando às funções da sociedade; são instituições de lazer, que trabalham o corpo e a mente conforme as prerrogativas que requerem mais ainda essa sintonia com o contexto mercadológico; são programas governamentais de convivência que visam sempre projetar recortes finos de disciplina no cotidiano das relações dos indivíduos.

À guisa de respostas, vejam, assim, que tudo isso está inscrito dentro do trânsito do mecanismo de controle da vida dos indivíduos. Percebendo que há diferenciação do modo de agir conforme aqueles que se encontram na zona da “anormalidade” e aqueles que são tidos como sendo “normais”. Contudo, ambos estão à deriva de vários dispositivos de controle, de agenciamento dos corpos, da identidade, da vida e da sociabilidade cotidiana pelos organismos estatais, neste caso, representado pelo órgão/instituição Conselho Tutelar, pelos agentes sociais, os conselheiros tutelares e suas ações tutelares na vida intrafamiliar.

Sobre o autor
Antonio Nacilio Sousa dos Santos

Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Graduado em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Graduado em Pedagogia pela Faculdade Integrada do Ceará (FIC); Graduando em Enfermagem pela Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza (FAMETRO); Graduando Tecnológico em Saneamento Ambiental pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE); Graduando em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Especialista em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Especialista em Legislação Social, Políticas Públicas e Trabalho Social com as Famílias (RÁTIO/PÓTERE); Especialista em Saúde do Idoso pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Estadual do Ceará (UECE); Mestrando Acadêmico em Avaliação de Políticas Públicas (PPGAPP) pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Mestrando Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (MASS) pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Curriculum Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4893524E9

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Antonio Nacilio Sousa. Espaço tutelar e olhar panóptico.: Mecanismo de controle social das relações intrafamiliares?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5812, 31 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74261. Acesso em: 27 nov. 2024.

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