4. O PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Se o cenário do patrimônio de afetação na falência parece bastante claro, o mesmo não se pode dizer na recuperação judicial.
Pelo contrário. Podemos começar afirmando que há uma lacuna legislativa neste tocante. É que patrimônio de afetação é tratado na Lei 11.101 de 2005 pelo art. 119, IX (transcrito acima), que está inserto no Capítulo V da Lei, Capítulo este que trata exclusivamente “DA FALÊNCIA”.
Não há uma palavra sequer sobre patrimônio de afetação em disposições atinentes à recuperação da empresa (extra e judicial).
Assim sendo, muitas dúvidas surgem diante da evidente omissão legislativa. A questão essencial que se coloca é se os credores do patrimônio afetado estão sujeitos aos efeitos da recuperação, bem como se a recuperanda poderá negociar esta parte de seu patrimônio na seara recuperacional.
Como já tivemos a oportunidade de analisar, uma das principais características do patrimônio de afetação é ser incomunicável. Na letra da Lei, “O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”[21].
Trazer os credores do patrimônio afetado para o universo da recuperação significa, necessariamente, desconsiderar a regra da incomunicabilidade.
Por outro lado, é apenas no capítulo da falência que a Lei 11.101 dispõe que patrimônio de afetação continua a ser tratado por lei especial. Poder-se-ia sustentar, então, que a lei especial não incide na parte da recuperação. Além disso, sabemos que as hipóteses de não-sujeição são taxativas e, de fato, elas não contemplam os credores de patrimônio afetado.
Contudo, vale lembrar que a ratio da criação do patrimônio de afetação é trazer segurança aos adquirentes e ao mercado, limitando o risco àquela unidade produtiva. Que garantia será essa se, em uma das hipóteses clássicas de insolvência – a RJ – ela não subsiste?
A questão foi enfrentada recentemente na recuperação judicial do Grupo Viver[22]. Na hipótese, Sheila Neder Cerezetti deu parecer no sentido de que o patrimônio afetado e seus credores se sujeitam, sim, aos efeitos da recuperação. No parecer, ao responder ao quesito “A existência de patrimônios de afetação impede a consolidação substancial da Recuperação Judicial do Grupo Viver?”, a Professora opinou em sentido negativo, frisando:
Tanto a disciplina do patrimônio de afetação quanto a lei concursal preocuparam-se em abordar os direitos das partes no cenário de falência ou insolvência civil da incorporadora, nada dispondo sobre os seus efeitos na recuperação judicial. Esta lacuna não deve ser preenchida mediante a aplicação analógica das regras falimentares, pois não se pode admitir que o intérprete empregue um regime estruturado sobre regras de liquidação patrimonial em ambiente com propósitos nitidamente distintos. Se, na falência, é a sua lógica liquidatória a justificar a previsão de uma execução independente do patrimônio de afetação quando da insolvência da incorporadora (art. 31-F da Lei 4.591/1964), o objetivo de manter a atividade produtiva, que marca a recuperação judicial, impede que a mesma norma seja a ela aplicada. Na recuperação, sacrifício aceito pelas partes interessadas justifica-se em vista do objetivo de reestruturação e continuação da atividade.[23]
Não foi esse, todavia, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Com efeito, deferido o processamento com a consolidação substancial, a questão foi devolvida ao Tribunal por meio dos autos do agravo nº 2236772-85.2016.8.26.0000, relatoria do Des. Fábio Tabosa. E ali restou decidido que o patrimônio de afetação não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial. In verbis:
Incompatibilidade que se acentua na hipótese de existência de patrimônio de afetação, como no caso examinado. Patrimônio segregado por lei mesmo na hipótese de falência e que exclui por igual a possibilidade de recuperação judicial, enquanto não encerrado. Proteção que se volta não apenas aos adquirentes, mas também, por expressa disposição legal, ao financiador da obra, como forma de favorecer e estimular o crédito. Impedimento que persiste, assim, mesmo se eventualmente concluída a obra, mas não liquidadas as obrigações para com o financiador. Inteligência dos arts. 119, IX, da LRF, 31- A, 31-E, 31-F e 43, VII, da Lei nº 4.591/64. Recurso provido também nessa parte, para exclusão do processo recuperacional de todas as SPEs nessa condição, referidas na decisão agravada.
Neste momento do acórdão, o relator menciona parecer de Francisco Satiro dado em outro caso envolvendo empresa também do ramo de incorporações e extrai do mencionado parecer o quanto segue:
É nesse exato sentido que há incompatibilidade lógica entre as normas da Lei 4.591/64 e a Lei 11.101/2005. Pela Lei 11.101/2005, a recuperação judicial deve possibilitar a recuperação da empresa em crise porém viável, para o que coloca devedor e credores “em lados opostos da mesa” para negociar o melhor destino da empresa e de seu patrimônio. E dá aos credores, organizados em Assembleia e decidindo por maioria, o poder de aceitar ou não a proposta de solução feita pelo devedor através do plano. No caso do empreendimento realizado por SPE em regime de patrimônio de afetação, a lei confere não aos credores, mas aos adquirentes também em assembleia e em regime de maioria a prerrogativa de destinação dos bens que estão segregados como meio de garantia do imóvel adquirido. Eles podem escolher, inclusive, por terminar o empreendimento substituindo o incorporador.
Em seguida, o acórdão cita artigo de Marcelo Sacramone[24]no qual este defende que indene de dúvida que o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária é incompatível com o regime da recuperação judicial e a ela não se sujeita, indo além, dizendo que mesmo nos casos de segregação patrimonial via SPE’s essa incompatibilidade verificar-se-ia, ante a função econômica-social, para a economia popular, das incorporações imobiliárias.
Conforme tivemos a oportunidade de apreciar anteriormente, a sociedade de propósito específico é pessoa jurídica autônoma. Assim, conforme se extrai do voto do Relator e da doutrina especializada nele mencionada, faz-se indispensável a análise caso a caso para saber se aquela sociedade deve ou não integrar o polo ativo da recuperação judicial. Não faz sentido que, estando saudável e não preenchendo os requisitos legais, apenas por fazer parte de grupo econômico, torne-se recuperanda.
Além disso, como vimos acima, também no caso das SPEs existe um forte argumento de economia popular que talvez, mesmo não estando o patrimônio afetado, impeça-as de entrarem em recuperação.
O acórdão prossegue enfrentando a controvérsia principal, em outras palavras, se o fato de o tratamento ao patrimônio de afetação na Lei 11.101/05 ter sido dado em capítulo exclusivo da falência faz com que referido artigo não se aplique às recuperações judiciais. Conclui o acórdão:
Mas, pensando na possibilidade em si do pleito recuperacional, do ponto de vista sistemático não se justifica que, se no caso de falência, que é o mais, não apenas o patrimônio seja preservado como também preservadas em sua essência as relações obrigacionais envolvendo o incorporador, como se quebra não existisse, venham em contrapartida na recuperação judicial, que é o menos, a se sujeitar os credores relativos a patrimônios de afetação à modificação de seus direitos, com alteração de sua substância ou da forma de satisfação.
Além disso, operada no âmbito da recuperação eventual novação dos créditos, caso decretada a quebra após o biênio não haveria a reversão às condições originais de que cuida o art. 61, § 2º, da Lei nº 11.101/2005 (cf. art. 62 da mesma lei).
Assim, ainda que sob o ponto de vista da estrita compatibilidade entre a recuperação e as regras do patrimônio de afetação, pode-se responder pela negativa. Mas de todo modo, quando se retorna à perspectiva das prerrogativas em especial conferidas aos adquirentes, sobretudo pela previsão do art. 43, VII, da Lei nº 4.591/64, a conclusão fica definitivamente assentada.
E para sustentar sua posição, o acórdão cita a doutrina de Alexandre Guerra, Melhim Namem Chalhub e Marcelo Barbosa Sacramone.
Interessante notar que na análise comparativa entre processos que envolvem a insolvência (recuperação judicial e falência), o Tribunal se utiliza do princípio argumentativo a maiori, ad minus, ou seja, se o patrimônio de afetação não pode sofrer os efeitos da falência tampouco poderia sofrer os efeitos da recuperação judicial cujo escopo não é de liquidação.
Outro caso importante para o tema patrimônio de afetação é o do Grupo PDG[25]. Com efeito, a PDG era uma das maiores construtoras e incorporadoras do País. Sobrevindo a crise, apresentou pedido de recuperação judicial com todas as SPEs e patrimônios afetados.
Sob a condução do Dr. João Oliveira Rodrigues Filho e com a contribuição dos demais players, especialmente os bancos, já no primeiro grau de jurisdição o que era patrimônio de afetação da PDG foi excluído da RJ. As SPEs, no entanto, continuaram sujeitas[26].
Mais um precedente interessante do TJSP sobre o tema é de relatoria do Des. Hamid Bdine no caso JNK EMPREENDIMENTOS ADMINISTRAÇÃO E PARTICIPAÇÕES LTDA[27]. Confira-se a ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INCORPORADORA IMOBILIÁRIA. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. PRELIMINAR. INTEMPESTIVIDADE. Rejeição. Agravo interposto contra a decisão no prazo legal. MÉRITO. Decisão agravada que determina que o banco se abstenha de interferir nas contas vinculadas a patrimônio separado. Alegação do agravante de que seu crédito decorre da celebração do contrato de empréstimo destinado a viabilizar a incorporação imobiliária de determinados empreendimentos e que por isso pode utilizar os recebíveis para pagar o saldo devedor envolvendo o mútuo. Patrimônio separado. Incomunicabilidade com os demais direitos e obrigações de titularidade da recuperanda. Recuperação judicial que não interfere no patrimônio vinculado ao empreendimento imobiliário. Empresa incorporadora que é responsável pela gestão dos recursos e pela aplicação para se atingir o fim específico de sua criação. Crédito do agravante que se vincula ao patrimônio afetado. Pagamento realizado a partir dos recebíveis que deve observar a correlação entre o empréstimo concedido à recuperanda e o valor pago pelos adquirentes pela unidade imobiliária com o objetivo de saldar a dívida da construtora. Reconhecimento de que o emprego desses recursos pelo banco sem nenhuma correspondência com o empreendimento que deu origem à conta é ilícito pode submeter-se a controle oportuno. Para se preservar a edificação dos imóveis e atender à finalidade do patrimônio de afetação, a amortização deve ser de dívidas vencidas. Negada a amortização de dívida vencida antecipadamente pela apresentação de pedido de recuperação. Recurso provido em parte.
E, ainda, neste mesmo sentido:
Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Decisão que deferiu o processamento conjunto da recuperação das agravadas e determinou a apresentação de plano individualizado pelas sociedades de propósito específico com patrimônio de afetação. Recurso conhecido, a despeito do equívoco na identificação dos patronos das agravadas, não havido efetivo prejuízo à sua defesa. Fixado o entendimento, nesta 2ª Câmara, de que incompatível o instituto da recuperação judicial com o patrimônio de afetação. Extinção da afetação, ademais, que não se dá tão somente pelo término e averbação da obra, instituído o condomínio, senão também pela satisfação das obrigações garantidas, incluído o crédito do financiador, e cancelamento do registro respectivo. Artigo 31-E, inciso I, da Lei 4.591/64, com redação dada pela Lei 10.931/04. Decisão revista. Recurso provido” (AI 2052507-11.2017.8.26.0000, rel. Des. Claudio Godoy, íntegra no site.
Nesta linha de raciocínio e mantendo a coerência de uma jurisprudência una, o Tribunal Bandeirante já decidiu, inclusive, que se aquela dívida específica disser respeito ao patrimônio de afetação, ela pode ser executada a despeito do processamento da recuperação judicial da incorporadora. In verbis:
Agravo de instrumento. Indenização por danos materiais e morais. Compra e venda de unidade imobiliária. Cumprimento de sentença. Penhora de imóvel da incorporadora. Pedido de suspensão da execução pela executada, em razão da decretação de sua recuperação judicial. Decisão que deferiu o pedido. Recurso dos exequentes. Alegação de que o imóvel integra patrimônio de afetação, o qual não estaria sujeito aos efeitos da recuperação judicial. Cabimento. Os efeitos da decretação de falência ou da insolvência civil da incorporadora não atingem o patrimônio de afetação constituído, não integrando a massa concursal Inteligência do art. 31-F da Lei n.º 4.591/64, com a redação que lhe deu a Lei n.º 10.931/2004. Execução que deve continuar. Decisão reformada. AGRAVO PROVIDO”. (AI 2053576-78.2017.8.26.0000, rel. Des. Miguel Brandi, íntegra no site)
Assim sendo, fortalecendo a natureza dos institutos de Direito aqui abordados, doutrina e jurisprudência[28] vão firmando posição no sentido de que o patrimônio de afetação não está sujeito aos efeitos da recuperação judicial, assim como não está aos da falência.