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A violência doméstica como violação dos direitos humanos

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6. A JUSTIÇA PENAL CONSENSUADA

            6.1. Direito Comparado

            As reflexões acerca de uma justiça penal consensuada são antigas, tendo a legislação processual espanhola se ocupado da questão em 1882, em sua Ley de Enjuiciamiento Criminal.

            O motivo justificador dessa forma distinta de solução dos conflitos penais tem origem no seio social, na insatisfação das pessoas com o processo penal tradicional. A celeridade do processo, cada vez mais exigida pela população, aliada à importância adquirida pela vitimologia, fez com que a justiça consensuada se tornasse caminho obrigatório, também para o processo penal.

            O direito comparado é importante fonte para a construção do modelo consensual de processo brasileiro, que viria a ser implantado no país, a partir da Lei dos Juizados Especiais.

            Dentre os ordenamentos jurídicos estudados para a criação da justiça consensuada no Brasil, observa-se o norte-americado, com o plea-bargaining, o francês (art. 40 do CPP), o alemão (art. 153, CPP), o espanhol. Entretanto, foi dos ordenamentos italianos e português que a Lei n. 9.099/95 mais se aproximou.

            No sistema norte-americano, a disponibilidade é princípio há muito adotado. O acusado pode ali ser condenado com base na sua confissão (declaração de culpabilidade), evitando-se o ajuizamento da ação penal propriamente dita, e por conseqüência, o processo tradicional.

            O parágrafo 153 da legislação processual penal alemã prevê que o Estado pode abster-se da persecução penal em caso de delitos menores (crimes de bagatela); caso a pena prevista para o crime seja inferior a um ano, o Ministério Público pode prescindir da acusação, mediante autorização do Tribunal competente para a abertura do procedimento ordinário.

            A Lei de Procédure Pénale da França, em seu livro I (De l’exercice de l’action publique et de l’instruction), Título I (Des autorités chargées de l’action publique et de l’instruction), Capítulo II (Du ministère public), Seção III (Des attributions du procureur de la République), artigo 40, esclarece o papel do Ministério Público, diante de um fato criminoso

            A Lei italiana n. 689, de 24 de novembro de 1981, em seus artigos 77 e seguintes, prevê que o juiz, nos casos em que forem aplicáveis penas alternativas, a pedido do acusado e após parecer favoráveis do Ministério Público, aplique-se sanção, declarando-se em via de conseqüência extinta a infração penal, com o registro da pena para o efeito único de impedir um segundo benefício.

            O Código de Processo Penal Italiano de 1988, em seus artigos 439 e seguintes e artigo 556, prevê que a proposta de acordo pode ser formulada para crimes apenados com até 2 (dois) anos de detenção, dele não decorrendo efeitos civis ou registros penais, nem impedimento à concessão de sursis sucessivo. Tampouco implica o acordo condenação a custas processuais.

            O Código de Processo Português, de 1987, em seus artigos 392 e seguintes, prevê que o Ministério Público pode requerer ao tribunal a aplicação da pena de multa ou de pena alternativa para penas detentivas não superiores a seis meses. O representante do Ministério Público também funciona como representante da vítima para formular pedido de indenização civil. A homologação judicial da proposta aceita corresponde à condenação. Em caso de não aceitação, o Ministério Público não fica vinculado à proposta para instauração do procedimento sumaríssimo. [32]

            6.2. Modelo brasileiro de justiça penal consensuada

            Previu a Constituição de 1988 em seu artigo 98, I, a criação dos juizados especiais cíveis e criminais, tendo estes últimos competência para a conciliação, julgamento e execução das infrações de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

            Essa previsão constitucional veio a atender à necessidade, já premente à época, de se conferir maior velocidade aos julgamentos, especialmente na esfera criminal.

            Com esse entendimento, o constituinte determinou o início de um novo modelo de processo penal no Brasil, no qual inúmeras garantias individuais eram previstas ao cidadão, ao passo que certos princípios jurídico-criminais ganhavam elasticidade.

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            Por esse novo paradigma processual, aceitou o legislador primário que nem todas as controvérsias penais necessitavam de processo efetivo e rígido, podendo ser resolvidas mediante o consenso.

            A fim de se fazer cumprir a norma constitucional, era mister a promulgação de uma lei federal, uma vez que apenas à União cabe legislar em matéria penal (artigo 22, I, CF).

            Apenas após a promulgação da lei federal é que se permitiria aos Estados criar seus juizados especiais, as respectivas regras de organização judiciária, e os procedimentos, atendendo estes às normas gerais editadas pela União na lei federal, obedecendo sempre às peculiaridades regionais.

            A Lei n. 9.099/95 previu a criação dos Juizados Especiais e instituiu o consenso na justiça penal brasileira.

            Pode-se, nesse contexto, traçar o perfil esquemático da justiça consensuada brasileira da seguinte forma:

            - Contexto de política-criminal: princípio da intervenção mínima; descriminalização; despenalização;

            - Órgão do Poder Judiciário competente: Juizados Especiais Criminais;

            - Legislação correspondente: Lei n. 9.099/95 e Lei n. 10.259/01;

            - Competência material: infrações de menor potencial ofensivo, definidas como contravenções penais e crimes a que a lei penal comine pena privativa de liberdade máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. A partir da Lei n. 10.259/01, o conceito de infrações de menor potencial ofensivo passou a abranger os crimes a que a lei penal comine pena privativa de liberdade máxima não superior a dois anos, abrangidas as contravenções e os delitos para os quais a lei preveja procedimento especial.

            - Princípios gerais: oralidade, simplicidade, informalidade; economia processual e celeridade;

            - Objetivos da lei: reparação dos danos sofridos pela vítima; aplicação da pena não privativa de liberdade;

            - Principais institutos: conciliação (composição de danos civis) e transação penal.

            6.3. A Lei n. 10.886/2004

            Em maio de 2002, foi sancionado pelo Presidente da República o Projeto de Lei n. 76, de 2001, convertido na Lei n. 10.455/02 que criou o instituto do afastamento cautelar do agressor.

            Em virtude da necessidade premente e da cobrança da sociedade civil organizada pela tipificação dos crimes intrafamiliares, em 17 de junho de 2004 foi publicada a Lei n. 10.886 que acrescentou parágrafos ao art. 129 do Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal, criando o tipo especial denominado Violência doméstica, nos seguintes termos:

            Art. 129. ..............................

            .....................................

            Violência Doméstica

            § 9.º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

            Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.

            § 10. Nos casos previstos nos §§ 1.º e 3.º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9.º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço)."

            A edição desta lei é um marco na história da violência doméstica no Brasil, pois em um passado próximo era ela admitida nas relações conjugais, como no caso da ausência de tipificação do delito de estupro praticado pelo cônjuge.

            Porém, a pena aplicada ao delito ainda possibilita a sua inserção entre os delitos considerados de menor potencial ofensivo, em razão de a lei dos juizados especiais não distinguir os tipos penais pela sua natureza, mas apenas leva em consideração a pena.

            Pretende-se, portanto, demonstrar que os delitos domésticos em razão dos bens jurídicos atingidos, saúde, integridade física e psíquica e de ser praticados com violência contra a pessoa não poderiam ser considerados de menor potencial ofensivo.


7. A LEI N. 9.099/95 E OS JUIZADOS ESPECIAIS

            7.1. Breve histórico sobre a criação dos Juizados Especiais Criminais no Brasil

            A criação dos Juizados Especiais Criminais veio atender parte da demanda reformista vigente há décadas no seio do pensamento jurídico brasileiro.

            O anteprojeto que resultou na lei federal n. 9.099/95 nasceu antes da promulgação da Constituição de 1988, sob a forma de proposta ofertada por dois juizes de São Paulo à Associação Paulista de Magistrados e colocada sob o crivo de grupo de trabalho constituído por ordem da presidência do Tribunal de alçada daquele Estado, integrado por juristas de renome.

            O grupo optou por elaborar substitutivo que foi discutido na seccional da OAB em São Paulo e foi mesclado com sugestões de representantes de todas as categorias jurídicas, resultando no anteprojeto finalmente apresentado ao deputado Michel Temer. O anteprojeto transformou-se no projeto de lei n. 1480/89.

            Ao iniciar a tramitação legislativa surgiram propostas e projetos paralelos, inclusive projeto de lei do Deputado Nelson Jobim.

            O Deputado Ibrahim Abi-Ackel, relator de todas as propostas na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara selecionou, para o âmbito penal, o projeto Michel Temer, e para o cível o projeto Nelson Jobim, unificando os dois projetos num substitutivo que, depois de tramitar pelo Senado foi retomado na Câmara e aprovado definitivamente, transformando-se na lei n. 9.099, de 26.09.95.

            Cumpre informar, que os Estados do Mato Grosso do Sul – em 1990, através da Lei Estadual n. 1.071 – e do Mato Grosso – em 1993, pela lei n. 6176 tomaram a vanguarda na regulamentação do art. 98 do Texto Constitucional de 1988. Aos Estados pioneiros juntou-se posteriormente a Paraíba.

            A discussão sobre a constitucionalidade das leis estaduais instalou-se de forma ampla no cenário nacional. Enquanto alguns defendiam a necessidade de promulgação de lei federal para a regulamentação da norma constitucional, outros aplaudiam a adoção de iniciativas que implementavam no país a política da oralidade, da celeridade, da economia e da racionalidade.

            Embora o Supremo Tribunal Federal tenha por fim decidido que a criação de juizados criminais pelos Estados dependia de lei federal, e decretado a inconstitucionalidade de norma estadual que outorgasse competência penal a juizados especiais, a iniciativa dos Estados pioneiros vingou, cumprindo seu papel, sobrevindo a edição da lei federal.

            7.2. O modelo de justiça criminal adotado no Brasil e os Juizados Especiais

            O modelo de justiça criminal adotado no Brasil, marcado mais recentemente pela edição da lei dos crimes hediondos, em 1990, insere-se no contexto de um sistema penal de tendência eminentemente "paleorepressiva", assinalado por posturas como a de endurecimento das penas, corte de direitos e garantias fundamentais, tipificações novas e agravamento da execução penal.

            O texto da Lei Federal n. 9.099/95 regula, a partir do art. 60, o funcionamento dos Juizados Especiais Criminais, delineando sua competência e estabelecendo normas penais, processuais e de procedimento, além de cuidar da execução da pena.

            Considerando a justiça criminal um subsistema do sistema penal, os Juizados Especiais Criminais representam um novo modelo de justiça criminal, de natureza antes de tudo consensual, cuja finalidade maior e principal seria perseguir soluções pacificadoras, rápidas e eficazes que atendam aos interesses dos diretamente envolvidos no conflito - agente, vítima e sociedade.

            A Lei n. 9.099/95 é aplicável aos delitos tidos como de menor potencial ofensivo, considerados aqueles cuja pena máxima cominada for igual ou inferior a dois anos.

            Várias são as críticas a essa definição de menor potencial ofensivo, principalmente em virtude de absorver alguns delitos em que há violência, como no caso dos crimes domésticos.

            O que se pretende, neste estudo, é justamente abordar o tema da violência doméstica à luz do sistema consensual inaugurado pela lei n. 9.099/95, realizando a constatação empírica, através da realização da pesquisa de campo proposta na introdução, da vitimização duplicada nesse novo subsistema.

            Diante de tudo o que foi dito, impende formular um questionamento: a atuação funcional do sistema penal oferece solução, ou a resposta efetiva passa pela diversificação das reações jurídicas diante da conduta desviante? Em alguns ordenamentos jurídicos tem predominado a tendência à despenalização e descriminalização, com a negação expressa e absoluta das posições radicais de ultradireita, que pregam o dito novo realismo criminológico.

            Mas para que as alternativas descriminalizadoras causem uma renovação construtiva, as medidas encetadas devem estar comprometidas, acima de tudo, com a pacificação da situação conflituosa, almejada pela vítima, pela sociedade e, muitas vezes, até mesmo pelo agente. Também na esfera judicial ele pode e deve ocorrer, desde que os agentes de controle que promovem a aplicação efetiva da lei tenham em mira buscar solução para o conflito, mais que para o processo.

            Questiona-se se o critério adotado pela Lei n. 9.099/95 para aplicar a justiça penal consensual é adequado, ou seja, o critério da pena aplicada ao tipo penal infringido. Entende-se que um conceito de direito material, como é o de infração de menor potencial ofensivo, deveria ter atendido a critérios definidos na criminologia e pela vitimologia (dentre eles o bem jurídico tutelado pela norma e a periculosidade do agente), a fim de, conforme o objetivo da lei – atender aos interesses da vítima – viabilizar a justiça consensuada para as infrações cuja solução através do consenso sejam suficientes para a solução do conflito.

            Ocorre que não é esse procedimento que se observa desde o atendimento prestado à vítima nas Delegacias de Polícia, na falta de cumprimento dos prazos legais e no tratamento que lhe é dispensado nas audiências nos juizados especiais.

            Na verdade, a vítima freqüentemente é mal atendida nas Delegacias de polícia, não recebendo o tratamento e encaminhamento devido; as Delegacias não cumprem os prazos para conclusão dos Termos Circunstanciados; os Juizes e Promotores desconhecem o procedimento e na hora de aplicar a reprimenda penal, geralmente estabelecem o pagamento de cestas básicas ínfimas pelo crime praticado.

            O resultado é que o sistema, confirmando uma tendência que não é nova, acaba por jogar na vala comum o conflito doméstico, cuja potencialidade lesiva é alta, porque a violência ocorre num âmbito eminentemente privado, costuma aumentar gradativamente de intensidade e é normalmente reiterativa, implicando, no mais das vezes, em constante e crescente risco de vida para a vítima.

            Assim, mister que sejam analisados mais profundamente esses aspectos da prática judicial, a fim de salvaguardar os interesses das vítimas de crimes, principalmente dos delitos domésticos. Pretende-se com a elaboração da dissertação de mestrado discutir os problemas enfrentados pelas vítimas nos juizados especiais criminais e quais as perspectivas de mudança desta realidade, salvaguardando os direitos fundamentais das vítimas, sobretudo mulheres e crianças.

            Apresentada a problemática a ser enfrentada, os dados estatísticos e as pesquisas empíricas realizadas, conclui-se que a violência doméstica é um delito grave e que acomete centenas de milhares de pessoas em todo o mundo. No Brasil os dados são alarmantes.

            A potencialidade lesiva do conflito doméstico é intensa. A escalada progressiva dessa violência que ocorre dentro de casa vai de um padrão de lesividade menos grave (ameaças e lesões corporais leves) para outro altíssimo, às vezes irreparável (lesões graves, estupro, homicídio).

            Apesar disso o que se vê é que os delitos domésticos são tratados nas instâncias do sistema penal, em especial pelos Juizados Especiais Criminais, da mesma forma que são tratados conflitos marcados pela eventualidade da relação vítima X autor, como uma briga de vizinhos e um atropelamento no trânsito.

            Fato preocupante também é que o aparato da justiça também não está comprometido com a solução do conflito, tampouco Juízes e Promotores estão preparados para prestar um adequado atendimento às vítimas, preocupados, no mais das vezes, com o destino do procedimento e com a celeridade do processo.

            Precisa-se modificar essa realidade. Conscientizar os atores do atendimento às vítimas de crimes das conseqüências maléficas à sociedade pela prática da violência doméstica e conclamá-los a abraçar essa causa e a se preocupar com os reais interesses da vítima no processo criminal.

            É certo que muito pode ser feito para que, sem o desrespeito aos Direitos Fundamentais do réu, possa a vítima ter tratamento digno de seu valor na justiça criminal, satisfazendo suas pretensões e interesses, satisfazendo sua concepção de justiça, o que está diretamente ligado ao retorno do status quo anterior ao cometimento da infração e da harmonia tão desejada pela sociedade.

Sobre a autora
Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti

promotora de Justiça em Maceió (AL), mestra em direito público pela Ufal, autora do livro "Violência Doméstica contra a mulher: análise da lei Maria da Penha"

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Stela Valéria Soares Farias. A violência doméstica como violação dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 901, 21 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7753. Acesso em: 23 dez. 2024.

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