3. A colisão entre a afetividade biológica e os efeitos da adoção
A socioafetividade dispõe da ideia de relação afetiva (sócio+afetividade). Se trata da filiação socioafetiva a manifestação do vínculo familiar calçado nos sentimentos. Justamente por isso, ela extrapola o conceito estático do que é biológico ou não.
Neste ponto não se trata da adoção embrionária, mas sim da constituída por vínculos biológicos tradicionais, onde por meio da adoção ocorreu a ruptura do vínculo jurídico entre pais e filhos.
Epaminondas Costa entende que os institutos da multiparentalidade e do restabelecimento do vínculo biológico não poderão se valer no caso da adoção:
[...] é inconcebível que a presente situação seja resolvida por meio do instituto da adoção, o qual se destina a estabelecer a relação de parentesco entre pessoas desvinculadas biologicamente. Portanto, a adoção como filho, de alguém que a natureza atribua tal condição, geraria o estado de perplexidade. (COSTA, 2012, p. 10).
É evidente que o contato entre pais e filhos biológicos vai gerar algum tipo de vínculo. Podendo ele ser negativo ou positivo, e para ambos os casos é preciso entender e estabelecer as consequências legais para a manutenção de tal vínculo.
Segundo o Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais, Epaminondas da Costa, é hora de superar à ortodoxia processual. Neste sentido, os legisladores e operadores do direito precisam se atentar as relações afetivas em primazia as questões jurídicas. (COSTA, 2012).
Por outro lado, Maria Berenice Dias dispõe que:
Gerando a adoção vínculo de filiação socioafetiva, a declaração da paternidade biológica, de um modo geral, não surte efeitos registrais, a impedir benefícios de caráter econômico. No entanto, cada vez com maior frequência é reconhecida a multiparentalidade, de modo a se reconhecer o estabelecimento da dupla filiação: a biológica e a adotiva. (DIAS, 2016, p. 507).
Neste sentido, vários autores tem tratado acerca da questão do novo olhar do direito de família. Que tem avançado em construções doutrinárias acerca de assuntos como: multiparentalidade, filiação, adoção e concepção de estado de filho. Jones Figueirêdo Alves, desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, dispõe que:
tivemos em 2013 decisões judiciais mais avançadas, convindo referir a mais importante delas que admitiu:
(i) a adoção multiparental (Processo 0034634-20.2013.8.17.0001 - juiz Clicério Bezerra e Silva - PE), no sentido de acrescentar ao registro de nascimento de menor adotado, o nome de seu genitor biológico (e de seus avós paternos), inclusive com a inserção do seu patronímico, mantendo-se a paternidade adotiva e registral constituída ( ALVES, et al., 2014).
O fato de ainda não haver um instituto que legisle acerca da possibilidade da existência do vínculo genético biológico, oriundo do contato entre pais biológicos e adotado, não pode ser razão suficiente para que tal instituto não seja julgado.
Da mesma forma que o juiz não pode se negar a julgar, o direito não pode se negar a criar meios para caracterizar, legislar e estabelecer a manutenção de tal vínculo, mesmo após a sua ruptura jurídica ocorrida por meio da adoção.
Sendo neste sentido:
É bem verdade que diversos operadores do direito, presos à ortodoxia processual da coisa julgada, argumentarão com a impossibilidade da resolução jurídica do problema apresentado, ou seja, que se restabeleça no registro civil a filiação extinta mediante a ação de perda do poder familiar, sobretudo quando se apresenta incabível o ajuizamento de ação rescisória. (COSTA, 2012, p. 15)
O autor versa sobre o restabelecimento jurídico de vínculo outrora perdido. Quando falamos do instituto da adoção, é preciso ressaltar que, com o novo registro contendo os nomes dos adotantes, existe a extinção jurídica de todos os atos passados.
Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.
§ 1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes. (BRASIL, 1990).
Por haver sentença judicial não se pode falar em restabelecimento afetivo, uma vez que no caso da adoção já houve o cancelamento do registro de origem, conforme artigo 102, item 6 da lei 6.015 de 31 de dezembro de 1973: “Art. 102. No livro de nascimento, serão averbados: VI: a perda e a suspensão do pátrio poder.” (BRASIL, 1973).
Ressalta-se então, que o ECA dispõe a respeito do conhecimento da origem genética pós processo de adoção, tanto nos casos de menoridade quanto de maioridade. Contudo, nem o estatuto e tão pouco outros instrumentos legais versam sobre como se dará a manutenção do vínculo genético pós conhecimento biológico.
Em especial, não há ainda um instituto que verse acerca dos efeitos que esta nova relação biológica pode provocar na ceara jurídica.
3.1 A ponderação de interesses na resolução da colisão entre a reconstrução do vínculo genético e a socioatividade.
O conceito de família aborda o direito das famílias acolher o ser humano desde antes do nascimento, por ele zelar durante a vida e cuidar de suas coisas após sua morte. Podendo traduzir assim a família como sendo fonte de proteção e segurança. (DIAS, 2012).
Como citado no capítulo dois, os princípios que regulam à adoção e os princípios norteadores do direito personalíssimo se chocam. Neste caso, é preciso fazer a preponderância de um sobre o outro.
Neste sentido, é preciso fazer então a ponderação de interesses conforme melhor interesse do adotado. Ficando a cargo da lei a regulamentação dos efeitos da relação entre pais biológicos e adotado, que ainda não se vê regulada. Isto se deve principalmente ao fato da lei ser retardatária, ou seja, sua preocupação é póstuma aos fatos.
Não cabendo a lei prever os acontecimentos, em especial os oriundos do direito de família. Neste sentido o Supremo Tribunal de Justiça, entendeu que:
Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal. O desafio do Juiz moderno esta em julgar com justiça, valendo-se dos princípios éticos-jurídicos num balanceamento dos interesses em conflito. Não lhe compete a simples aplicação das leis. É preciso aplica-las de modo a encontrar o justo no caso concreto. (DIAS, 2016, p. 108 apud, CASSETTARI, 2014, p. 182.)
Ainda em se tratando da falta de legislação própria no que diz respeito à manutenção do vínculo com a família natural pelo adotado, Maria Berenice Dias ressalta a importância da evolução legislativa do direito de família para resolver conflitos.
A autora destaca que a evolução legislativa ocorreu principalmente devido á evolução social do instituto familiar. (DIAS, 2016).
Percebe-se claramente que todas as modificações legislativas do direito de família giram em torno do conceito familiar, sendo que este se altera de acordo com a realidade social de cada família.
Segundo enunciado do IBDFAM, a posse de estado de filho gera vínculo de parentesco e impõe as responsabilidades da criação, educação as quais decorrem do poder familiar.
Diante da variedade de situações que enlaçam a relação constitutiva de família propõe, o seguinte questionamento: podemos definir o pai como genitor, o marido ou companheiro da mãe, ou aquele que cria os filhos e assegura-lhes o sustento, ou aquele que dá seu sobrenome ou mesmo seu nome? (PEREIRA, 2012)
Neste sentido, pode-se compreender que a intenção do autor ao questionar-se sobre isso é trazer um entendimento sobre o direito tanto de ser pai, quanto de ser filho. Em concordância com tal ponto, Maria Berenice Dias, esclarece que: “[...] A paternidade não é só um ato físico, mas, principalmente, um fato de opção, extrapolando os aspectos meramente biológicos, ou presumidamente biológicos, para adentrar com força e veemência na área afetiva.” (DIAS, 2016, p.155).
Olhando através do viés da adoção, fica ainda mais claro que a paternidade é um ato constitutivo, diário e contínuo. Segundo Artigo 39 §1º do ECA, à adoção é irrevogável, e rompe todos os laços com a família natural. Contudo, Dias (2016), cita que com certa frequência os adotantes simplesmente devolvem o filho que adotaram. Nestes casos, ocorre a destituição do poder familiar do adotante, conforme artigo 1.638 do Código Civil.
Joanna Massad de Oliveira reflete acerca do rompimento do vínculo parental que advém com à adoção. Segundo ele, tal rompimento conflita com os direitos fundamentais da dignidade da pessoa, da solidariedade e da isonomia. (OLIVEIRA, 2015).
Por fim, surge na doutrina uma nova forma de reestabelecimento dos pais biológicos pós processo de adoção.
3.2 Estado de Filiação e origem genética
Na hora de fazer a ponderação de interesse quanto a reconstrução do vínculo com a família natural, é preciso lembrar que o estado de filiação e a origem genética em nada se contrapõem.
De um lado existe a verdade biológica, comprovado por meio de exame laboratorial que permite afirmar, com certeza praticamente absoluta, a existência de um liame consanguíneo entre duas pessoas. De outro lado há uma verdade que não pode mais ser desprezada: O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos casos de filiação construídos no cotidiano[...] (LÔBO, 2008, p.153).
Tais realidades não se confundem, porque o direito de conhecer a ascendência familiar é um dos atributos do direito da personalidade (direito a filiação). O seu exercício não implica na construção de um conceito de família. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente da origem biológica. (LÔBO, 2008)
Ainda neste sentido, Maria Helena Diniz reflete que: “A parternidade se faz, o vínculo de paternidade não é apenas um dado, tem a natureza de se deixar construir. Essa realidade é o que se pode caracterizar como posse de estado de filho”. (DIAS, 2016, p.212).
Dessa forma, o conhecimento do processo de adoção, e por consequência da família natural por parte do adotado, nos termos do artigo 48 do ECA não ensejam diretamente a relação de família, uma vez que conforme os autores citados acima, é acordado que o laço familiar é constitutivo e não sanguíneo. Contudo, a partir do convívio entre as partes, pode nascer a posse do estado de filho.
Glaúcia Nielle Santos Araújo dispõe em sua obra que:
Novos direitos trazem em seu bojo formas inovadoras de pensar a existência, as relações sócio jurídicas e o próprio conceito do justo. Como assevera exige-se uma “nova” justiça, para atender as demandas dos “novos sujeitos sociais”. (WOLKMER, 2008, p. 202 apud ARAÚJO, 2008, p. 3).
Marcos Costa Salomão, afim de esclarecer que o estado de filho pode ser suscetível de posse por outras pessoas, uma vez que o filho, biológico ou adotivo, ocupa esta posição de forma íntima, pública e duradoura e, aos olhos da sociedade, esta passa a ser aceita como se fosse verdadeira, em razão do afeto existente entre ambos que se chamam de pai e filho.
Quando as pessoas desfrutam de situação jurídica que não corresponde à verdade, detêm o que se chama de posse de estado. Em se tratando de vínculo de filiação, quem assim se considera desfruta da posse de estado de filho [...] A aparência faz com que todos acreditem existir situação não verdadeira, fato que não pode ser desprezado pelo direito. [...] A noção de posse de estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque tanto a verdade jurídica, quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação. A filiação socioafetiva assenta-se no reconhecimento da posse de estado de filho: a crença da condição de filho fundada em laços de afeto (SALOMÃO, Marcos Costa, 2016, p. 240-241).
Dessa forma, o entendimento de Maria Berenice Dias (2016), se faz presente a compreender que a noção de filho não se dá com o nascimento, mas por ato expressivo, claro e público de vontade, que se alicerça na afetividade entre as partes envolvidas, sejam elas de qual instituto jurídico que seja.
Dessa forma, questiona-se a verdade jurídica preexistente a este acontecimento.