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O delegado de polícia e a análise das excludentes de ilicitude na prisão em flagrante

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Agenda 02/03/2020 às 16:46

É possível a autoridade policial analisar as excludentes de ilicitude na prisão em flagrante ou se trata de ato jurisdicional?

Resumo: A presente monografia tem o objetivo de estudar a atuação do delegado de polícia na documentação da prisão em flagrante frente a celeuma que envolve o artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, é dizer, indaga-se se é possível a autoridade policial analisar as excludentes de ilicitude na prisão em flagrante ou se se trata de ato jurisdicional. Após examinar a legislação brasileira (Constituição da República e leis infraconstitucionais) e identificar os diferentes posicionamentos doutrinários a respeito do tema, por meio de levantamento bibliográfico e pesquisa na rede mundial de computadores, chegou-se à conclusão de que o delegado de polícia não só pode, mas deve fazer o exame das causas de justificação na prisão em flagrante.

Palavras-chave: prisão em flagrante; excludentes de ilicitude; auto de prisão em flagrante; delegado de polícia.

Sumário: Introdução. 1. Aspectos legais da prisão em flagrante. 1.1. Conceito de prisão em flagrante. 1.2. Espécies de flagrantes do artigo 302 do código de processo penal. 1.3. Auto de prisão em flagrante (APF) e sua lavratura. 1.4. Diferença entre: não ratificação, relaxamento ou liberdade provisória. 2. Excludentes de ilicitude e a prisão em flagrante. 2.1. Natureza das excludentes penais. 2.2. Espécies de excludentes de ilicitude previstas no Código Penal. 2.3. Incidência das excludentes no auto de prisão em flagrante: exemplos. 3. Análise das excludentes de ilicitude pelo Delegado. 3.1. O problemático artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal. 3.2. Artigo 282 do Código de Processo Penal e a análise das excludentes pelo Delegado. 3.3. Posição dos tribunais sobre o tema. Conclusão. Referências


INTRODUÇÃO

O objetivo desta monografia é estudar a atuação do delegado de polícia na documentação da prisão em flagrante, ou seja, quando da lavratura do auto de prisão em flagrante, uma vez que há controvérsias se ele pode ou não examinar as excludentes de ilicitude de uma suposta conduta criminosa. As discussões giram em torno do artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal. Para tanto foi feito uma intensa pesquisa tanto bibliográfica quanto na rede mundial de computadores para se conhecer os diferentes posicionamentos a respeito do tema e, assim, chegar a resposta do problema apresentado.

Levando-se em conta que o crime é um fato típico, ilícito e culpável, conforme seu conceito analítico e que a divisão do delito nestes elementos é somente para efeitos didáticos, pois o crime é um todo unitário, é inconcebível que o delegado de polícia diante de uma patente causa de justificação não a reconheça e autue em flagrante um inocente, uma vez que o próprio artigo 23 do Código Penal diz que não há crime quando o agente pratica o fato acobertado por excludente de ilicitude.

Pois bem, por mais ilógico que pareça, este é o entendimento de parte da doutrina, de que o exame das justificantes na prisão em flagrante constitui reserva de jurisdição por força do artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal. Todavia, vale ressaltar que esta norma não proíbe o delegado de polícia de examinar as justificantes na prisão em flagrante, o que ela regula são os procedimentos que serão adotados pelo juiz ao receber o Auto de Prisão em Flagrante.

O artigo 304 é que regula os atos do delegado de polícia, a serem praticados, quando é apresentado a ele uma pessoa em possível flagrante delito. E o parágrafo primeiro deste artigo confere poder à autoridade policial para avaliar a legalidade da prisão e isso significa dizer que ele deve fazer o exame das excludentes de ilicitude.

Feitas estas considerações, esta monografia está dividida em três capítulos, sendo que o primeiro tratará dos aspectos legais da prisão em flagrante, seu conceito, requisitos, espécies de flagrante previstas no artigo 302 e outros desdobramentos que a envolve.

O segundo capítulo se dedica ao estudo das excludentes de ilicitude e a prisão em flagrante, a natureza das excludentes penais, incidência das excludentes no Auto de Prisão em flagrante e excludentes como causa de não ratificação.

Por fim, o terceiro e último capítulo estudará a análise das excludentes de ilicitude pelo delegado, as discussões que envolvem o problemático artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal e a Posição dos Tribunais sobre o tema.


1. ASPECTOS LEGAIS DA PRISÃO EM FLAGRANTE

A liberdade de locomoção está prevista no artigo 5º, inciso XV da Constituição Federal de 1.988 e se revela como um direito fundamental individual. Todavia, é consenso no meio jurídico que nem mesmo os direitos fundamentais são absolutos, tendo como ressalva, conforme a melhor doutrina, a vedação à prática da tortura e àescravidão.

Seguindo este entendimento, o direito de ir e vir confere ao indivíduo a garantia de não ser preso, salvo nas hipóteses previstas na própria Constituição da República.A prisão em flagrante está prevista no artigo 5º, inciso LXI da Constituição da República, in verbis: “LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”

Além da previsão constitucional supracitada, com as mudanças feitas pela L.12.403/11, que foi criada, além de outros objetivos, para ajustar o decreto-lei nº 3.689/41 (Código de Processo Penal), elaborado e promulgado na vigência de um Estado Ditatorial (Estado Novo), que se iniciou em 1.937, à Constituição da República atual (que veio para estabelecer um Estado Democrático de Direito) alterou a redação do artigo 283 que passou a ter o seguinte enunciado:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Isto posto, percebe-se que a institucionalização da prisão em flagrante parte da premissa que o Estado, na tutela de direitos do cidadão, tem o dever de prender aqueles que estão cometendo ou que acabam de cometer uma infração penal e qualquer do povo tem a faculdade de assim agir, vale dizer, funciona como instrumento de autodefesa da sociedade.

1.1. CONCEITO DE PRISÃO EM FLAGRANTE

A palavra flagrante vem do latim flagrare, que significa queimar, logo, flagrante delito é uma expressão usada para designar aquele crime que está ocorrendo ou que acabou de acontecer, que ainda queima, é dizer, aquele delito que é evidente, visível, manifesto. Na precisa lição de Ana Flávia Messa (2014, p.570) “Flagrante vem do latim ‘flagrare’, que significa ‘queimar’; a expressão ‘flagrante’ é usada para designar o crime que está acontecendo, ainda queimante, evidente; é a certeza visual do crime”.

A prisão em flagrante é medida privativa de liberdade que funciona como ato administrativo num primeiro momento, pois é dispensável autorização judicial para que ela se realize. Num segundo momento, ela se converte em ato judicial a partir da sua comunicação ao Poder Judiciário, consoante preconiza o art. 306, §1º do Código de Processo Penal, in litteris:

Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.

§ 1º Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.

Assim ensina Noberto Avena (2014, p.857):

Inicialmente, funciona como ato administrativo, dispensando autorização judicial. Portanto, apenas se converte em ato judicial no momento em que ocorre a sua comunicação ao Poder Judiciário, a fim de que seja analisada a legalidade da detenção e adotadas as providências determinadas no art. 310. do CPP.

Entende-se que em relação à prisão em flagrante delito, a expressão “delito” abrange a prática de crime, bem como a de contravenção penal. Segundo pontua Renato Brasileiro de Lima (2014, p.859):

A expressão “delito” abrange não só a prática de crime, como também a de contravenção. Nesse caso, todavia, tratando-se de infração de menor potencial ofensivo, não se procede à lavratura de Auto de Prisão em Flagrante, mas sim de Termo Circunstanciado de Ocorrência, caso o agente assuma o compromisso de comparecer ao Juizado ou a ele compareça imediatamente (Lei nº 9.099/95, art. 69, parágrafo único).

Há divergência doutrinária no que tange a natureza jurídica da prisão em flagrante;uns entendem que ela tem caráter precautelar, tendo em vista que não se serve para garantir o resultado final do processo, é dizer, outrora, quando do início da vigência do Código de Processo Penal, a prisão em flagrante, por si só, era fundamento para se manter o réu preso durante toda a persecução penal, todavia, com as alterações trazidas pela Lei nº 6.416/77, que introduziu um parágrafo único ao artigo 310 do Código de Processo Penal, retirou da prisão em flagrante a sua natureza cautelar, verbo ad verbum:

Art. 310.Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do artigo 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

Parágrafo único. Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (artigos 311 e 312).

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As alterações feitas ao Código de Processo Penal pela Lei nº 12.403/11 veio para reforçar o entendimento de que a prisão em flagrante delito tem natureza precautelar, conforme se extrai do artigo 310, inciso II do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312. deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão;

Neste sentido ensina Renato Brasileiro de Lima (2014, p.862):

Sem embargo de opiniões em sentido contrário, pensamos que a prisão em flagrante tem caráter precautelar. Não se trata de uma medida cautelar de natureza pessoal, mas sim precautelar, porquanto não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas objetiva colocar o capturado à disposição do juiz para que adote uma verdadeira medida cautelar: a conversão em prisão preventiva (ou temporária), ou a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, cumulada ou não com as medidas cautelares diversas da prisão.

Compartilha do mesmo entendimento Aury Lopes Jr. (2014, p.586) “A prisão em flagrante está justificada nos casos excepcionais, de necessidade e urgência, indicados taxativamente no art. 302. do CPP e constitui uma forma de medida pré-cautelar pessoal que se distingue da verdadeira medida cautelar pela sua absoluta precariedade.”

Em sentido contrário, existem doutrinadores que entendem que a prisão em flagrante tem natureza cautelar, com caráter administrativo, exigindo apenas aparência da tipicidade do delito, é dizer, não é necessário, para que seja efetivada, exame da ilicitude e da culpabilidade do crime. Ensinam, ainda, que por ser uma medida cautelar, está condicionada à demonstração dos requisitos da cautelaridade.

Adota o posicionamento supracitado Guilherme de Souza Nucci (2014, p.556), a saber:

é medida cautelar de segregação provisória, com caráter administrativo, do autor da infração penal. Assim, exige apenas a aparência da tipicidade, não se exigindo nenhuma valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade, outros requisitos para a configuração do crime. É o fumus boni juris (fumaça do bom direito). Tem, inicialmente, natureza administrativa, pois o auto de prisão em flagrante, formalizador da detenção, é realizado pela Polícia Judiciária, mas se torna jurisdicional, quando o juiz, tomando conhecimento dela, ao invés de relaxá-la, prefere mantê-la, pois considerada legal, convertendo-a em preventiva. Tanto assim que, havendo a prisão em flagrante, sem a formalização do auto pela polícia, que recebe o preso em suas dependências, cabe a impetração de habeas corpus contra a autoridade policial, perante o juiz de direito. Se o magistrado a confirmar, no entanto, sendo ela ilegal, torna-se a autoridade coatora e o habeas corpus deve ser impetrado no Tribunal. Quanto ao periculum in mora (perigo na demora), típico das medidas cautelares, é ele presumido quando se tratar de infração penal em pleno desenvolvimento, pois ferida estão sendo a ordem pública e as leis. Entretanto, cabe ao juiz, após a consolidação do auto de prisão em flagrante, decidir, efetivamente, se o periculum existe, permitindo, ou não, que o indiciado fique em liberdade.

Na mesma esteira preleciona Renato Marcão (2014, p.639):

A prisão em flagrante é ato de natureza administrativa, muito embora o auto respectivo possa eventualmente ser presidido por autoridade judiciária. Configura modalidade de medida cautelar de natureza pessoal, privativa da liberdade, e como tal está condicionada à demonstração dos requisitos da cautelaridade. Reclama-se, portanto, a presença de fumus boni juris, que será evidenciado na tipicidade da conduta imputada e na existência de indícios da autoria (fumus comissi delicti), e do periculum in mora, que é presumido nos casos típicos de flagrância tratados no art. 302. do CPP. O objetivo da prisão em flagrante – por nós identificado como a colheita da prova ardente – é que justifica a necessidade dos requisitos apontados, visto que, assim compreendida, tem por escopo garantir o resultado final do processo ou ao menos influenciar positivamente na colheita da prova (ou parte dela) que servirá de base para sua instauração.

Ante o exposto, parece sermais acertado o entendimento daqueles que compreendem tratar a natureza jurídica da prisão em flagrante como medida precautelar, pois, conforme se extrai do artigo 306, §1º combinado com o artigo 310, inciso II, ambos do Código de Processo Penal, a prisão em flagrante não se serve para assegurar a investigação ou o processo, haja vista que será o juiz, após ser comunicado, no prazo de até 24h, que poderá determinar uma medida cautelar, seja convertendo a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312. do Código de Processo Penal; seja, decretando outras medidas cautelares previstas no art. 319. do Código de Processo Penal.

1.2. ESPÉCIES DE FLAGRANTES DO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

As hipóteses que permitem a prisão em flagrante de um delinquente estão previstas no art. 302, incisos I, II, III e IV do Código de Processo Penal e constitui rol taxativo, tendo em vista que normas que restringem direitos devem ter interpretação restritiva.

O art. 302. do Código de Processo Penal tem a seguinte redação:

Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

A doutrina traz diversas outras modalidades de prisão em flagrante, no entanto, ater-se-á as espécies de flagrante previstas no Código de Processo Penal, quais sejam, flagrante próprio, perfeito, real ou verdadeiro; flagrante impróprio, imperfeito, irreal ou quase-flagrante e o flagrante ficto, presumido ou assimilado.

As situações fáticas que ensejam o flagrante próprio, perfeito, real ou verdadeiro estão elencadas no art. 302, incisos I e II do Código de Processo Penal, é dizer, incorrerá nesta hipótese de flagrante o agente que for preso cometendo um delito (crime ou contravenção) ou que acaba de cometê-lo. Neste último caso, há uma relação de imediatidade entre o término da prática do delito e a captura do delinquente em flagrante, é dizer, não pode haver um lapso temporal entre o fim da conduta delituosa e a prisão. Se o agente, na hipótese do inciso I, for interrompido por terceiro durante os atos executórios, poderá incorrer em tentativa, contudo, no inciso II isto não é possível, pois o crime já estará consumado. Assim ensina Noberto Avena (2014, p. 862):

Na hipótese do inciso I, havendo a interferência de terceiros no momento em que o agente está praticando o fato típico, é comum a figura da tentativa, o que não ocorre no caso do inciso II, contemplando hipótese na qual o delito já foi consumado. Observe-se que, neste último caso, a expressão “acaba de cometê-la” deve ser interpretada de forma total-mente restritiva, contemplando a hipótese do indivíduo que, imediatamente após a consumação da infração, vale dizer, sem o decurso de qualquer intervalo temporal, é surpreendido no cenário da prática delituosa.

Percebe-se que, na acepção técnica da palavra, estar-se-á diante de flagrante propriamente dito somente nas hipóteses dos incisos I e II, ou seja, o inciso III (flagrante impróprio, irreal ou quase flagrante) e o inciso IV (flagrante presumido, ficto ou assimilado) trata – se de ficção jurídica uma vez que nestes casos não há uma relação de imediatidade, é dizer, o delito não foi evidente, manifesto, visível, mas sim são situações que fazem presumir ser alguém autor da infração penal.

No que se refere ao flagrante impróprio, incorrerá nesta modalidade de flagrante o agente que é perseguido, logo após o cometimento da infração penal, em situação que faça presumir ser ele o autor da infração penal. Neste sentido, posiciona-se Renato Brasileiro de Lima (2014, p.865):

O flagrante impróprio, também chamado de imperfeito, irreal ou quase-flagrante, ocorre quando o agente é perseguido logo após cometer a infração penal, em situação que faça presumir ser ele o autor do ilícito (CPP, art. 302, inciso III). Exige o flagrante impróprio a conjugação de 3 (três) fatores: a) perseguição (requisito de atividade); b) logo após o cometimento da infração penal (requisito temporal); c) situação que faça presumir a autoria (requisito circunstancial).

Percebe-se que no flagrante impróprio pouco importa se o agente consumou ou não o delito, ou seja, se ele foi interrompido durante os atos de execução ou se concluiu a ação criminosa, é dizer, o que caracteriza este flagrante é a fuga empreendida pelo autor da infração penal e, logo após, a sua perseguição pelo ofendido, por terceiros ou pela autoridade.

Para que se configure perseguição ao infrator, é necessário que ela seja contínua, nos termos do artigo 290, parágrafo 1º do Código de Processo Penal:

Art. 290. Se o réu, sendo perseguido, passar ao território de outro município ou comarca, o executor poderá efetuar-lhe a prisão no lugar onde o alcançar, apresentando-o imediatamente à autoridade local, que, depois de lavrado, se for o caso, o auto de flagrante, providenciará para a remoção do preso. § 1º - Entender-se-á que o executor vai em perseguição do réu, quando:

a) tendo-o avistado, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha perdido de vista;

b) sabendo, por indícios ou informações fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço.

Há um equívoco do senso comum ao acreditar que alguém estará em flagrante num lapso temporal de até 24h a contar da prática do crime, pois, logo após a prática do crime - que compreende um intervalo de tempo maior entre a prática do delito, a apuração dos fatos e o início da perseguição, assim ensina Fernando Capez (2014, p.247) “ ‘logo após’ compreende todo o espaço de tempo necessário para a polícia chegar ao local, colher as provas elucidadoras da ocorrência do delito e dar início à perseguição do autor”- o autor poderá ser perseguido, desde que ininterruptamente, podendo a perseguição durar horas ou até mesmo dias, pouco importando o tempo decorrido entre o momento do crime e a prisão dos seus autores.

O flagrante ficto, presumido ou assimilado é a última modalidade de flagrante prevista no art. 302, inciso IV do Código Processo Penal. Nesta hipótese de flagrante,o agente é preso, logo depois de cometer a infração penal, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor do delito. Difere do flagrante impróprio, tendo em vista que neste caso é dispensável a perseguição, exigindo apenas que o delinquente seja encontrado com os materiais supracitados oriundos da conduta criminosa.

Todavia, entende parte da doutrina que é preciso que quem encontre o suposto delinquente, com os produtos do crime, saiba da ação delituosa previamente, ou seja, é preciso que haja uma procura ou perseguição por parte de alguém ao infrator. Assim ensina Aury Lopes Jr. (2014, p.590):

Fazendo uma interpretação sistemática em relação aos incisos anteriores, pode-se afirmar que esse “encontrado” deve ser causal e não casual. É o encontrar de quem procurou, perseguiu e depois, perdendo o rastro, segue buscando o agente. Não se trata de um simples encontrar sem qualquer vinculação previamente estabelecida em relação ao delito. Assim, não há prisão em flagrante quando o agente que acabou de subtrair um veículo é detido, por acaso, em barreira rotineira da polícia, ainda que esteja na posse do objeto furtado. Isso porque não existiu um encontrar de quem procurou (causal, portanto). Não significa que a conduta seja impunível, nada disso. O crime, em tese, existe. Apenas não há uma situação de flagrância para justificar a prisão com esse título.

Faz-se necessário entender a expressão “logo depois”, alguns doutrinadores entendem que ela indica um lapso temporal maior que “logo após”, todavia, parece mais lógico aqueles que defendem que a diferença não está no lastro temporal, exigindo tanto no flagrante impróprio como no presumido uma relação de imediatidade, sob pena de banalizar a prisão em flagrante. Neste sentido ensina Renato Brasileiro de Lima (2014, p.867):

Segundo parte da doutrina, a expressão logo depois constante do inciso IV não indica prazo certo, devendo ser compreendida com maior elasticidade que logo após (inciso III). Deve ser interpretada com temperamento, todavia, a fim de não se desvirtuar a própria prisão em flagrante. Com a devida vênia, pensamos que a expressão logo depois (CPP, art. 302, IV) não é diferente de logo após (CPP, art. 302, III), significando ambas uma relação de imediatidade entre o início da perseguição, no flagrante impróprio, e o encontro do acusado, no flagrante presumido. Na verdade, a única diferença é que, no art. 302, III, há perseguição, enquanto que, no art. 302, IV, o que ocorre é o encontro do agente com objetos que façam presumir ser ele o autor da infração.

Existem outras modalidades de flagrante criadas pela doutrina, contudo, limitar-se-á as hipóteses legais previstas no artigo 302 do Código de Processo Penal, tendo em vista que a intenção é saber quando alguém estará ou não em flagrante delito, consoante a legislação em vigor.

1.3. AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE (APF) E SUA LAVRATURA

Ao ser apresentado o preso em flagrante à autoridade policial, esta procederá a formalização da prisão em flagrante, seguindo o que preconiza os artigos 304 a 309 do Código de Processo Penal.

A prisão em flagrante se divide em quatro etapas: a) captura do delinquente; b) condução coercitiva à autoridade competente; c) auto de prisão em flagrante; d) encarceramento. Ao entregar o preso à autoridade competente, ter-se-á concluídas duas etapas da prisão em flagrante (captura e condução), restando a parte da documentação (APF) e o recolhimento ao cárcere.

Todas as formalidades previstas em lei, quando da documentação da prisão em flagrante, devem ser seguidas, sob pena da prisão ser ilegal, ocasionando, por conseguinte, o seu relaxamento pelo juiz, conforme se extrai do artigo 310, inciso I do Código de Processo Penal, in litteris: “Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal”.

Antes de analisar os requisitos formais de documentação da prisão em flagrante, a autoridade deverá analisar a legalidade da prisão, no entanto, não é razoável que se exija daqueles que participam das duas primeiras etapas (captura e condução coercitiva) um domínio da ciência jurídica, tendo em vista que qualquer um do povo pode prender alguém em flagrante delito (flagrante facultativo) e até mesmo dos agentes policiais, haja vista que o conhecimento jurídico destes é perfunctório, pois, não desempenha atividade jurídica e não se exige, pelo menos por enquanto, formação acadêmica em Direito para ingresso na carreira como agente policial (seja militar ou civil), vale dizer, a análise da legalidade da prisão, feita por qualquer um do povo ou pelo agente policial, deve se restringir a tipicidade da conduta criminosa.

Se a conduta do suposto delinquente não for típica e verificado que o condutor agiu com dolo quanto a prisão ilegal, a autoridade não ratificará a prisão contra aquele e autuará este em flagrante, entretanto, depois de colhidos os depoimentos e constatado que não houve dolo do condutor, a autoridade não o autuará e determinará a soltura do conduzido. Nesta esteira preleciona Guilherme de Souza Nucci (2014, p.565):

Não é crível que a autoridade policial comece, formalmente, a lavratura do auto de prisão em flagrante, sem se certificar, antes, pela narrativa oral do condutor, das testemunhas presentes e até mesmo do preso, de que houve, realmente, flagrante em decorrência de um fato típico. Assim, quando se inteira do que houve, ao ser apresentada uma pessoa presa, inicia a lavratura do auto. Afinal, se a prisão foi nitidamente ilegal, deve dar voz de prisão em flagrante ao condutor e lavrar contra este o auto. Mas, excepcionalmente, pode ocorrer o descrito neste § 1.º, isto é, conforme o auto de prisão em flagrante desenvolver-se, com a colheita formal dos depoimentos, observa a autoridade policial que a pessoa presa não é culpada. Afastada a autoria, tendo constatado o erro, não recolhe o sujeito, determinando sua soltura. É a excepcional hipótese de se admitir que a autoridade policial relaxe a prisão. Ao proceder desse modo, pode deixar de dar voz de prisão ao condutor, porque este também pode ter-se equivocado, sem a intenção de realizar prisão ilegal. Instaura-se, apenas, inquérito para apurar, com maiores minúcias, todas as circunstâncias da prisão.

As formalidades iniciais a serem observadas na elaboração do auto de prisão em flagrante estão descritas no artigo 304 do Código de Processo Penal que estabelece que ao ser apresentado o preso à autoridade policial, primeiro ouvirá o condutor (quem realizou a prisão ou conduziu o delinquente), depois as testemunhas que o acompanharem e, por último, o interrogatório do acusado, consoante redação legal:

Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.

§ 1º Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.

§ 2º A falta de testemunhas da infração não impedirá o auto de prisão em flagrante; mas, nesse caso, com o condutor, deverão assiná-lo pelo menos duas pessoas que hajam testemunhado a apresentação do preso à autoridade.

§ 3º Quando o acusado se recusar a assinar, não souber ou não puder fazê-lo, o auto de prisão em flagrante será assinado por duas testemunhas, que tenham ouvido sua leitura na presença deste.

O auto será assinado pela autoridade competente e pelo preso, sendo anexado a ele os termos de oitiva do condutor e das testemunhas. Se o flagrado não souber assinar ou se recusar, esta lacuna poderá ser completada pela assinatura por duas testemunhas, que tenha ouvido a leitura do auto na presença do conduzido, conforme redação do artigo 304, parágrafo 3º do Código de Processo Penal.

No prazo de até 24 horas da realização da prisão, a autoridade policial deverá adotar os seguintes procedimentos: entregar ao preso a nota de culpa (serve para assegurar a garantia constitucional prevista no artigo 5º, inciso LXIV da Constituição Federal, onde constará os motivos da prisão, o nome do condutor e das testemunhas, sendo assinada pela autoridade); comunicar ao juiz, ao Ministério Público e à família do preso ou pessoa por ele indicada, sendo, outrossim, encaminhado neste mesmo prazo o auto de prisão em flagrante ao juiz competente; encaminhar cópia integral do auto de prisão em flagrante para a defensoria pública, caso o autuado não informe o nome do seu advogado. Assim está previsto no artigo 306 do Código de Processo Penal:

Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.

§ 1º Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.

§ 2º No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas.

Ressalte-se que, não obstante o artigo 306, caput, do Código de Processo Penal relatar que a prisão de qualquer pessoa deva ser comunicada imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e a família do preso ou à pessoa por ele indicada, na prática esta comunicação é feita em até 24 horas.

1.4. DIFERENÇA ENTRE: NÃO RATIFICAÇÃO, RELAXAMENTO OU LIBERDADE PROVISÓRIA

Há divergências na doutrina se a autoridade que preside o auto de prisão em flagrante, ao colher os depoimentos do condutor, das testemunhas e do preso, certificando-se de que o fato não constitui crime ou que o conduzido não é o autor do delito, poderia relaxar a prisão. Uma parte entende que sim, que a autoridade policial, ao entender pela ilegalidade da prisão, deve relaxá-la (auto de prisão em flagrante negativo), não recolhendo ao cárcere o conduzido. Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci (2015, p.560):

A norma processual penal (art. 304, § 1.º, CPP) não está bem redigida, a nosso ver. Não é crível que a autoridade policial comece, formalmente, a lavratura do auto de prisão em flagrante, sem certificar-se, antes, pela narrativa oral do condutor, das testemunhas presentes e até mesmo do preso, de que houve, realmente, flagrante por um fato típico. Assim, quando se inteira do que houve e acreditando haver hipótese de flagrância, inicia a lavratura do auto. Excepcionalmente, no entanto, pode ocorrer a situação descrita no § 1.º do art. 304, isto é, conforme o auto de prisão em flagrante desenvolve-se, com a colheita formal dos depoimentos, observa a autoridade policial que a pessoa presa não é, aparentemente, culpada. Afastada a autoria, tendo sido constatado o erro, não recolhe o sujeito, determinando sua soltura. É a excepcional hipótese de se admitir que a autoridade policial relaxe a prisão. Ao proceder desse modo, pode deixar de dar voz de prisão ao condutor, porque este também pode ter-se equivocado, sem a intenção de realizar prisão ilegal. Instaura-se, apenas, inquérito para apurar, com maiores minúcias, todas as circunstâncias da prisão.

Em sentido contrário, outra parte da doutrina entende que ao constatar a ilegalidade da prisão, a autoridade não ratificará a prisão em flagrante, é dizer, a prisão em flagrante sequer se completará, tendo em vista que ela se completa com a lavratura do auto de prisão em flagrante e com o recolhimento ao cárcere do conduzido, ou seja, a prisão em flagrante se aperfeiçoa com a captura, condução coercitiva, confecção do auto e encarceramento.

Defende, ainda, que o relaxamento da prisão ilegal está previsto no artigo 5º, inciso LXV da Constituição Federal: “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” e, que, portanto, constitui reserva de jurisdição, ou seja, apenas a autoridade judiciária tem competência para fazê-lo. Neste sentido, ensina Renato Brasileiro de Lima (2014, p.880):

A nosso ver, não se trata propriamente de relaxamento da prisão em flagrante. A uma porque, como ato complexo que é, a prisão em flagrante somente estará aperfeiçoada após a captura, condução coercitiva, lavratura do auto e recolhimento à prisão, sendo inviável falar-se em relaxamento da prisão em flagrante se todas essas fases ainda não foram cumpridas. Ademais, a própria Constituição Federal, ao se referir ao relaxamento da prisão ilegal, deixa claro que somente a autoridade judiciária tem competência para fazê-lo (CF, art. 5, LXV). Enxergamos, pois, no art. 304, §1°, do CPP, não uma hipótese de relaxamento da prisão em flagrante, mas sim situação em que a autoridade competente deixa de ratificar a voz de prisão em flagrante dada pelo condutor por entender que não há fundada suspeita contra o conduzido.

Parece ser mais acertado o entendimento de que a autoridade, que é responsável pela documentação da prisão, ao constatar que é ilegal, não a relaxa - pois este é um ato jurisdicional praticado num momento posterior a efetivação da prisão em flagrante - mas sim deixa de ratificá-la (lavrando o auto de prisão em flagrante negativo), não recolhendo, assim, o conduzido ao cárcere.

Diferentemente da não ratificação da prisão em flagrante pela autoridade policial e do relaxamento da prisão ilegal, que é ato jurisdicional, se o juiz verificar que não há necessidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva, concederá ao preso liberdade provisória, com ou sem fiança, in verbis: “Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança”.

Todavia, nada impede que o juiz, ao relaxar a prisão ilegal, decrete prisão preventiva quando presentes os seus pressupostos, noutro giro, se não há motivos para a preventiva e a prisão em flagrante for legal, o juiz deverá conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Sobre o autor
Dioni Barbosa Cardoso

Policial Militar em Minas Gerais, integrante do quadro da ativa. Bacharel em Direito pelas Faculdades Unificadas de Teófilo Otoni, Minas Gerais, Pós-Graduado em Ciências Penais e Segurança Pública pela Faculdade de Direito Presidente Antônio Carlos em Teófilo Otoni, Minas Gerais. Aprovado no XVIII Exame de Ordem Unificado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Direito das Faculdades Unificadas de Teófilo Otoni. Área de Concentração: Direito Penal e Direito Processual Penal. Orientador: Gylliard Matos Fantecelle.

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