O delegado de polícia e a análise das excludentes de ilicitude na prisão em flagrante

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02/03/2020 às 16:46
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2. EXCLUDENTES DE ILICITUDE E A PRISÃO EM FLAGRANTE

Entende-se que o objetivo do direito positivado é conferir maior segurança na aplicação da lei, é dizer, evitar entendimentos desconexos com o ordenamento jurídico de um povo. Todavia, não se sabe por qual razão, presencia-se interpretações dos operadores do direito totalmente incoerente com o sistema jurídico, pois fazem interpretações isoladas de uma norma, é dizer, não a confrontando com as demais leis para saber qual é a vontade do legislador ao criar aquela norma.

É inconcebível uma norma determinar que se pratique certa conduta (estrito cumprimento de dever legal), ou que permita que se pratique (legítima defesa), ou incentive a praticar (exercício regular de direito), ou autorize (estado de necessidade) e ter uma outra punindo alguém que assim haja. É justamente isto o que tem acontecido, na prática, com aqueles que agem “amparado” por uma excludente de ilicitude, mais precisamente com a legítima defesa.

Imagine-se que alguém é preso em flagrante delito por qualquer um do povo (exercício regular de direito) ou por um policial (estrito cumprimento de dever legal) e é apresentado à autoridade policial, para aqueles que defendem que o delegado de polícia não pode fazer o exame das causas que excluem o crime, com base no art. 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, em tese, tanto o primeiro (qualquer um do povo) quanto o segundo (o policial) teriam que ser presos em flagrante “delito”, pois, ao prender alguém, poderiam cometer o crime de constrangimento ilegal ou cárcere privado.

Entretanto, não é o que acontece na prática em relação a essas excludentes supracitadas (estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito), até mesmo os que defendem o entendimento acima exposto, não aprovam que se deve prender alguém que age amparado por estas excludentes. É dizer, não se presencia, no caso concreto, o delegado de polícia dar voz de prisão a um policial que prendeu alguém em flagrante delito, uma vez que agiu amparado pela descriminante estrito cumprimento de dever legal. Pois, caso contrário, inviabilizar-se-iaa persecução penal.

Todavia, quando se trata de legítima defesa há divergências, então, percebe-se que a dificuldade daqueles que defendem tal entendimento é aceitar que o delegado de polícia possa analisar se o suposto autor agiu amparado pela excludente de ilicitude legítima defesa, vale dizer, comumente, depara-se com a prisão de policiais que agem em legítima defesa própria ou de terceiros sendo presos em flagrante delito, revelando-se uma monstruosidade jurídica.

2.1. NATUREZA DAS EXCLUDENTES PENAIS

A ilicitude ou antijuridicidade (alguns doutrinadores preferem o uso deste termo), na estrutura do crime, levando-se em conta o seu conceito analítico, é o segundo elemento e traduz uma relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico como um todo. Nas lições de Rogério Greco (2015, p.369):

Ilicitude, ou antijuridicidade, é a relação de antagonismo, de contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico. Quando nos referimos ao ordenamento jurídico de forma ampla, estamos querendo dizer que a ilicitude não se resume a matéria penal, mas sim que pode ter natureza civil, administrativa, tributária etc. Se a conduta típica do agente colidir com o ordenamento jurídico penal, diremos ser ela penalmente ilícita.

Para se chegar ao exame da ilicitude, primeiro verifica-se se a conduta é típica, pois caso contrário, tratar-se-á de um indiferente penal. Há várias teorias que discutem a relação da tipicidade com a ilicitude, sendo adotada pela legislação brasileira a teoria da ratio cognoscendi ou da indiciariedade, é dizer, ao concluir que o fato é típico, há uma presunção que ele também é ilícito, logo, a defesa é que deve provar que o autor da conduta criminosa agiu amparado por uma excludente de ilicitude. Nas palavras de Rogério Sanches Cunha (2013, p.233), in verbis:

De acordo com a doutrina majoritária, o Brasil seguiu a teoria da indiciariedade ou da ratio cognoscendi. Assim, provada a tipicidade, há indícios de ilicitude (ou antijurididdade). Essa suspeita provoca uma consequência importante: o ônus da prova sobre a existência da causa de exclusão da ilicitude é da defesa (de quem alega).

Todavia, percebe-se que não é razoável – não obstante a legislação penal ter adotado a teoria da indiciariedade, é dizer, cabendo o ônus da prova à defesa – a acusação, mesmo diante de provas contundentes de que o autor do suposto delito agiu acobertado por alguma causa de justificação, ainda, assim, oferecer a denúncia e, por conseguinte, pedir a condenação do acusado, pois neste caso estará acusando um inocente. Afinal, os órgãos que compõem a persecução penal não podem cometer abusos na sua atuação, violando direitos humanos, mas sim atuar em busca de um objetivo maior que é o ideal de justiça. Logo, a teoria da indiciariedade deve ser temperada para que este objetivo seja alcançado.

A regra é que todo fato típico, também, seja ilícito. Sabendo que a ilicitude é antagônica ao ordenamento jurídico, vale dizer, se o fato for típico, mas a conduta é permitida pelo ordenamento jurídico (por qualquer ramo do ordenamento, direito penal, civil, administrativo), não haverá ilicitude e, por conseguinte, não haverá crime. Caso contrário, se a conduta não for permitida, haverá crime.

Isto posto, concluiu-se que a natureza das excludentes penais é de causa de exclusão de crime.

2.2. ESPÉCIES DE EXCLUDENTES DE ILICITUDE PREVISTAS NO CÓDIGO PENAL

As espécies de excludentes de ilicitude, previstas no Código Penal, estão elencadas no artigo 23, verbo ad verbum:

Art. 23. - Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

O conceito e os elementos do estado de necessidade estão previstos no artigo 24 do Código Penal, in litteris:

Art. 24. - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.

§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.

Conforme se extrai do artigo 24, parágrafo segundo, o Código Penal Brasileiro adotou a teoria unitária ou unificadora do estado de necessidade, ou seja, o estado de necessidade será sempre justificante (estado de necessidade justificante), excluirá a ilicitude do delito, desde que a ação do necessitado seja necessária para a conservação do seu bem e o seu sacrifício não era razoável exigir-se, ou seja, esta teoria não trabalha com a ponderação de bens ou interesses, é dizer, não há comparação de valores, ou a situação reveste-se de razoabilidade, ou não há estado de necessidade. A teoria unitária não diferencia estado de necessidade justificante de estado de necessidade exculpante, assim se posiciona Fernando Capez (2015, p.295), in litteris:

Unitária:adotada pelo Código Penal. O estado de necessidade é sempre causa de exclusão da ilicitude. Dessa forma, para o nosso Código Penal, ou a situação reveste-se de razoabilidade, ou não há estado de necessidade. Não existe comparação de valores, pois ninguém é obrigado a ficar calculando o valor de cada interesse em conflito, bastando que atue de acordo com o senso comum daquilo que é razoável. Assim, ou o sacrifício é aceitável, e o estado de necessidade atua como causa justificadora, ou não é razoável, e o fato passa a ser ilícito.

No mesmo sentido ensina Rogério Greco (2015, p. 377-378):

Para a teoria unitária, adotada pelo nosso Código Penal, todo estado de necessidade é justificante, ou seja, tem a finalidade de eliminar a ilicitude do fato típico praticado pelo agente. Esclarecedora é a rubrica do art. 23. do Código Penal que, anunciando o tema a ser cuidado, refere-se à exclusão da ilicitude. Para essa teoria, não importa se o bem protegido pelo agente é de valor superior ou igual àquele que está sofrendo a ofensa, uma vez que em ambas as situações o fato será tratado sob a ótica das causas excludentes da ilicitude. A teoria unitária não adota a distinção entre estado de necessidade justificante e estado de necessidade exculpante. Para ela, todo estado de necessidade é justificante. Assim, se para salvar a sua vida o agente vier a causar a morte de outrem, ou mesmo na situação na qual, para garantir a sua integridade física, o agente tiver de destruir coisa alheia, não importando que a sua vida tenha valor igual à do seu semelhante, ou que a sua integridade física valha mais do que o patrimônio alheio, ambas as hipóteses serão cuidadas sob o enfoque da exclusão da ilicitude da conduta, e não sobre a ausência de culpabilidade.

Diferentemente da teoria unitária, a teoria da diferenciação ou diferenciadora traz a distinção entre o estado de necessidade justificante e o estado de necessidade exculpante, é dizer, esta teoria trabalha com a ponderação de bens e interesses em conflito, valorando qual deles é de maior ou menor valor. Nesta toada, estará em estado de necessidade justificante (causa de exclusão apenas da ilicitude) quem pratica determinada conduta para salvar bem próprio ou alheio de maior valor que o sacrificado.

Noutro giro, estará em estado de necessidade exculpante (causa de exclusão supralegal da culpabilidade, exclui a exigibilidade de conduta diversa) aquele que pratica determinado comportamento para salvar bem próprio ou alheio de menor ou igual valor ao sacrificado. Em suma, se o bem preservado for de maior valor que o sacrificado (estado de necessidade justificante), se o bem preservado for de menor ou igual valor ao bem sacrificado (estado de necessidade exculpante).

Este entendimento, quanto a ponderação de bens, é adotado pela Alemanha. Diversamente, na Espanha, entende-se que quando o bem preservado for de valor maior ou igual ao sacrificado, a conduta lesiva estará acobertada pelo estado de necessidade justificante. Assim pontua Fernando Capez (2015, p.295):

Diferenciadora ou da diferenciação: de acordo com essa teoria deve ser feita uma ponderação entre os valores dos bens e deveres em conflito, de maneira que o estado de necessidade será considerado causa de exclusão da ilicitude somente quando o bem sacrificado for reputado de menor valor. Funda-se, portanto, em um critério objetivo: a diferença de valor entre os interesses em conflito. Quando o bem destruído for de valor igual ou maior que o preservado, o estado de necessidade continuará existindo, mas como circunstância de exclusão da culpabilidade, como modalidade supralegal de exigibilidade de conduta diversa (é o que a teoria chama de estado de necessidade exculpante). Somente será causa de exclusão da ilicitude, portando, quando o bem for de maior valor. Em contraposição a esse entendimento, pode-se lembrar o caso do náufrago que sacrifica a vida do seu companheiro para poder preservar a própria, ao tomar para si a única boia. As duas vidas têm igual valor, mas, mesmo assim, pode ser invocado o estado de necessidade. A teoria diferenciadora foi adotada pelo Código Penal Militar (arts.39 e 43), mas desprezada pelo nosso CP comum. Na Alemanha, onde tal teoria é preponderante, o estado de necessidade só será considerado excludente de ilicitude quando o bem jurídico preservado tiver maior valor. Sendo este equivalente, a exclusão será da culpabilidade (dirimente) e não da antijuridicidade. Em sentido contrário, na Espanha, prevalece a posição mais ampliativa, no sentido de que o estado de necessidade exclui a ilicitude, tanto no caso de o bem salvo ser do mesmo valor, quanto na hipótese de ter maior valor do que o sacrificado. A posição espanhola parece ser mais correta, pois eliminar uma vida alheia, quando imprescindível para preservar a própria (bens de idêntico valor), não pode ser considerada conduta antijurídica, pois decorre do natural instinto de sobrevivência humana, e o que está de acordo com a ordem natural deve ser tido como justificável juridicamente. Nosso ordenamento, porém, adotou a teoria unitária (CP, art. 24, §2º), pois, ou se trata de excludente de ilicitude ou de causa de diminuição de pena.

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Do conceito legal de estado de necessidade, tem-se como requisitos: perigo atual – a discussão quanto a este primeiro requisito é se além do perigo atual, pode, outrossim, incluir o perigo iminente. Compreende-se que na expressão “perigo atual”, também, está incluído a iminência do perigo. Assim preleciona Francisco de Assis Toledo (p.184-185)apud Rogério Greco (2015, p.379-380): “perigo é a probabilidade de dano. Perigo atual ou iminente (a atualidade engloba a iminência do perigo) é o que está prestes a concretizar-se em um dano, segundo um juízo de previsão mais ou menos seguro. Se o dano já ocorreu, o perigo perde a característica da atualidade.”

O segundo requisito que se extrai é que a situação de perigo não tenha sido causada voluntariamente pelo agente. Entende-se que não é admitido, traduzindo a expressão “voluntariamente”, ao agente que provoca o perigo, de forma dolosa, invocar a supracitada causa de justificação, todavia, admite-se, quando ele age culposamente.

Nas palavras de Rogério Sanches Cunha (2013, p. 237), in litteris: “De acordo com as lições da maioria, a expressão “voluntariamente” é indicativa somente de dolo, não abrangendo a culpa em sentido estrito. Assim, diante do perigo gerado por incêndio, o seu causador doloso não invocar a descriminante, mas o negligente pode”.

O terceiro requisito é a exigência de inevitabilidade do dano, ou seja, se o dano causado pelo agente for evitável, não há que se falar em estado de necessidade. Pontua Francisco de Assis Toledo (p.183-184)apud Rogério Greco (2015, p.382):

na situação de conflito entre bens juridicamente protegidos, o sacrifício de um deles somente está autorizado quando a salvação do outro só possa fazer-se à custa desse sacrifício. Se houver alguma possibilidade razoável de salvação do bem ameaçado, de modo que evite ou que, pelo menos, reduza o dano a bem de outrem, a inevitabilidade do dano causado, ou do dano maior, desaparece. Quem mata ou fere, para salvar-se, quando podia fugir do perigo, mesmo com desprestígio para a sua fama de homem corajoso, não se ampara na excludente de ilicitude em exame, que não se confunde, neste aspecto, com a legítima defesa.

O quarto requisito é salvar direito próprio (estado de necessidade próprio) ou alheio (estado de necessidade de terceiro). Neste ponto não há controvérsias, quanto a autorização do titular do bem, quando este for indisponível, para que terceiros o salve da situação de perigo. Discute-se se, quando o bem for disponível, alguém possa agir sem concordância do titular do direito ameaçado. Ensina Francisco de Assis Toledo (p. 187) apud Rogério Greco (2015, p. 384): “a intervenção de terceiros, contudo, quando se trate de bens disponíveis, não pode prescindir da aquiescência do titular do direito exposto a perigo de lesão, pois, nesse caso, o titular do direito pode preferir outra solução ou até, se lhe aprouver, sofrer o dano”.

Em sentido contrário pontua Flávio Monteiro (p.315-316)apud Rogério Sanches Cunha (2013, p. 237):

O estado de necessidade de terceiro inspira-se no princípio da solidariedade humana. Tratando-se, porém, de bens disponíveis, alguns autores sustentam a necessidade da aquiescência do titular do direito exposto a perigo de lesão. Não procede o raciocínio, pois a vontade do terceiro em perigo, como dizia La Medica, não é tomada em consideração; é substituída pela vontade do agente, juridicamente superior. Sobremais, em muitos casos não há nem tempo para pedir a concordância do terceiro.

O quinto requisito trata do dever legal de enfrentar o perigo, questiona-se se está incluído o dever jurídico. Preleciona Guilherme de Souza Nucci (2009, p. 255):

O dever legal é o resultante de lei, considerada esta em seu sentido lato. Entretanto, deve-se ampliar o sentido da expressão para abranger também o dever jurídico, aquele que advém de outras relações previstas no ordenamento jurídico, como o contrato de trabalho ou mesmo a promessa feita pelo garantidor de uma situação qualquer. Identicamente: Bento de Faria (Código Penal brasileiro comentado, v. 2, p. 197). No prisma da ampliação do significado, pode-se citar o disposto na Exposição de Motivos da Parte Geral de 1940 (não alterada pela atual, como se vê no item 23): ‘A abnegação em face do perigo só é exigível quando corresponde a uma especial dever jurídico’. Por isso, tem o dever de enfrentar o perigo tanto o policial (dever advindo da lei), quanto o segurança particular contratado para a proteção de seu empregador (dever jurídico advindo do seu contrato de trabalho). Nas duas situações, não se exige da pessoa encarregada de enfrentar o perigo qualquer ato de heroísmo ou abdicação de direitos fundamentais, de forma que o bombeiro não está obrigado a se matar, em um incêndio, para salvar terceiros, nem o policial a enfrentar o perigo irracional somente pelo disposto no art. 24, §1º. A finalidade do dispositivo é evitar que pessoas obrigadas a vivenciar situações de perigo, ao menor sinal de risco, se furtem ao seu compromisso.

Em sentido diverso pontua Damásio E. de Jesus (2002, p. 378):

A disposição do art. 24, §1º, restringe a aplicação da justificativa do estado de necessidade. Em face disso, não podemos empregar a analogia nem a interpretação extensiva, uma vez que viriam prejudicar a situação do agente (in malam partem). Assim, só é excluído o fato necessário quando o sujeito tem o dever legal de enfrentar o perigo. Quando se trata de dever contratual, p. ex., pode invocar a descriminante.

Além dos requisitos objetivos supracitados, há um de caráter subjetivo, é dizer, o necessitado deve agir consciente de que estar amparado pela causa de exclusão de crime (estado de necessidade).

A segunda causa de exclusão de crime prevista no artigo 23 do Código Penal é a legítima defesa e está localizada no artigo 25 do mesmo diploma com a seguinte redação: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

Não obstante o Estado obter o monopólio do direito de punir e de aplicar o direito ao caso concreto, é sabido que ele não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sendo assim confere ao cidadão, diante de uma agressão injusta e para manutenção da ordem jurídica, que haja em legítima defesa própria ou de terceiros.

Todavia, este direito de autodefesa, delegado pelo Estado, sofre limitações trazidas pela lei para que não se torne em vingança privada. Nas palavras de Rogério Greco (2015, p. 395):

Contudo, tal permissão não é ilimitada, pois encontra suas regras na própria lei penal. Para que se possa falar em legítima defesa, que não pode jamais ser confundida com vingança privada, é preciso que o agente se veja diante de uma situação de total impossibilidade de recorrer ao Estado, responsável constitucionalmente por nossa segurança pública, e, só assim, uma vez presentes os requisitos legais de ordem objetiva e subjetiva, agir em sua defesa ou na defesa de terceiros.

O primeiro requisito para a configuração da legítima defesa é que a agressão seja injusta. Agressão é um comportamento humano que causa lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. Será injusta quando este comportamento não for abarcado pelo ordenamento jurídico. Pontua Damásio E. de Jesus (2002, p. 386):

Exige-se que a agressão seja injusta, contrária ao ordenamento jurídico (ilícita). Se a agressão é licita, a defesa não pode ser legítima. Assim, não comete o fato acobertado pela causa de exclusão de ilicitude quem repele uma diligência de penhora em seus bens realizada por um oficial de justiça munido de mandado judicial. A conduta do oficial, se bem que constitua agressão, não é injusta.

O segundo requisito é que a agressão injusta seja atual ou iminente. Ensina Guilherme de Souza Nucci (2009, p. 258):

Atual é o que está acontecendo (presente), enquanto iminência é o que está em vias de acontecer (futuro imediato). Diferentemente do estado de necessidade, na legítima defesa admitem-se as duas formas de agressão: atual ou iminente. Tal postura legislativa está correta, uma vez que a agressão iminente é um perigo atual, portanto passível de proteção pela defesa necessária do art. 25. Não é possível haver legítima defesa contra agressão futura, tornando-se forma imponderável de defesa, ou passada, que configura autêntica vingança, nem tampouco contra meras provocações, pois justificaria o retorno ao tempo do famigerado duelo. Em idêntico prisma: Bento de Faria (Código penal brasileiro comentado, v. 2, p. 204).

O terceiro requisito é o uso moderado dos meios necessários, é dizer, quem se defende de uma agressão injusta deve utilizar do meio menos gravoso a sua disposição para a repelir, todavia, necessário e moderado, ou seja, o excesso no uso do meio necessário poderá ser punível. Preleciona Rogério Sanches Cunha (2013, p. 244):

O legislador, com o presente requisito, quer assegurar proporcionalidade entre o ataque e a defesa. Para repelir a injusta agressão (ataque), deve o agredido usar de forma moderada o meio necessário que servirá na sua defesa (contra-ataque). Entende-se como necessário o meio menos lesivo à disposição do agredido no momento da agressão, porém capaz de repelir o ataque com eficiência. Encontrado o meio necessário, deve ser ele utilizado de forma moderada, sem excessos, o suficiente para impedir a continuidade da ofensa. É obvio que o magistrado deverá julgar esse requisito objetivamente, sem desconsiderar as condições de fato, do caso concreto.

O quarto requisito é a proteção do direito próprio (legítima defesa própria) ou de terceiros (legítima defesa de terceiros). Leva-se em conta o titular do bem que está sendo agredido ou prestes a sofrer a agressão. Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 321):

Qualquer bem jurídico pode ser protegido pelo instituto da legítima defesa, para repelir agressão injusta, sendo irrelevante a distinção entre bens pessoais e impessoais. Considerando, porém, a titularidade do bem jurídico protegido por esse instituto, pode-se classifica-lo em: legítima defesa própria, quando o repelente da agressão é o próprio titular do bem jurídico ameaçado ou atacado, e legítima defesa de terceiros, quando objetiva proteger interesses de outrem. No entanto, na defesa de direito alheio, deve-se observar a natureza do direito defendido, pois quando se tratar de bem jurídico disponível, seu titular poderá optar por outra solução, inclusive a de não oferecer resistência.

Ainda há um requisito subjetivo, qual seja, o conhecimento da situação de fato justificante, ou seja, é necessário que aquele que repele uma agressão injusta saiba que está agindo amparado pela causa de justificação da legítima defesa, pois caso contrário a sua conduta será ilícita. Pontua Rogério Greco (2015, p. 407):

Para que se possa falar em legítima defesa não basta só a presença de seus elementos de natureza objetiva, elencados no art. 25. do Código Penal. É preciso que, além deles, saiba o agente que atua nessa condição, ou, pelos menos, acredita agir assim, pois, caso contrário, não se poderá cogitar de exclusão da ilicitude de sua conduta, permanecendo esta, ainda, contrária ao ordenamento jurídico.

A terceira causa de exclusão de crime prevista no artigo 23, inciso III do Código Penal é o estrito cumprimento de dever legal. A lei, diferentemente da legítima defesa e do estado de necessidade, não traz o conceito desta excludente, assim coube a doutrina defini-la. Neste sentido, preleciona Fernando Capez (2015, p. 310): “causa de exclusão da ilicitude que consiste na realização de um fato típico, por força do desempenho de uma obrigação imposta por lei. Exemplo: o policial que priva o fugitivo de sua liberdade, ao prendê-lo em cumprimento de ordem judicial”.

A regra é que agem amparados por esta causa justificante os agentes públicos, contudo, a divergência na doutrina gira em torno da possibilidade do particular invocar tal excludente, no que se refere àquele que exerce função pública, há um consenso de que é possível, e àquele que não exerce? Assim pontua Flávio Monteiro de Barros (p. 343) apud Rogério Sanches Cunha (2013, p. 246):

O advogado processado pelo delito de falso testemunho, porque se recusou a depor sobre fatos envolvendo segredo profissional, pode invocar a justificativa do estrito cumprimento do dever legal. Se, porém, o cliente havia autorizado a revelação do segredo, o advogado que, mesmo assim, recusa-se a depor pode invocar a excludente do exercício regular de direito.

Para configurar a causa de exclusão de crime supracitada é necessário que se observem dois requisitos, que haja um comando normativo determinando que se pratique certa conduta, é dizer, o dever legal deve decorrer direta ou indiretamente de lei, ou seja, o comando normativo pode constar de decreto, regulamento ou qualquer ato administrativo infralegal, desde que originários de lei. Nas palavras de Fernando Capez (2015, p. 310):

Compreende toda e qualquer obrigação direta ou indiretamente derivada de lei. Pode, portanto, constar de decreto, regulamento ou qualquer ato administrativo infralegal, desde que originários de lei. O mesmo se diga em relação a decisões judiciais, que nada mais são do que determinações emanadas do Poder Judiciário em cumprimento da ordem legal. No caso, porém, de resolução administrativa de caráter específico dirigida ao agente sem o conteúdo genérico que caracteriza os atos normativos, como, por exemplo, na hipótese de ordens de serviço específicas endereçadas ao subordinado, não há que se falar em estrito cumprimento de dever legal, mas obediência hierárquica (a ser estudada dentro da culpabilidade).

O segundo requisito é que aquele que cumpre um dever legal o faça estritamente dentro dos limites legais, é dizer, aquele que ultrapassá-los, responderá pelos excessos causados e a excludente não subsistirá. Na precisa lição de CezarRoberto Bitencourt (2008, p. 325-326):

Em outros termos, o limite do lícito termina necessariamente onde começa o abuso, pois aí o dever deixa de ser cumprido estritamente no âmbito da legalidade, para mostrar-se abusivo, excessivo e impróprio, caracterizando sua ilicitude. Exatamente assim configura-se o excesso, pois embora o “cumprimento do dever” se tenha iniciado dentro dos limites do estritamente legal, o agente, pelo seu procedimento ou condução inadequada, acaba indo além do estritamente permitido, excedendo-se, por conseguinte. Não há, convém que se destaque, qualquer ilogicidade ou paradoxo entre o reconhecimento de estrito cumprimento de dever legal e a configuração de excesso na sua execução, tanto que o Código Penal, no art. 23, parágrafo único, com a redação determinada pela Lei n. 7.209/84, consagra a punição do excesso para todas as modalidades de excludentes. Por isso, a incompatibilidade ou impossibilidade do excesso no estrito cumprimento do dever somente poderia ser defendida antes da Reforma Penal de 1984, quando o Código Penal, na sua versão original, só o prescrevia para a hipótese da legítima defesa.

A quarta e última causa de exclusão de crime prevista no artigo 23, inciso III, segunda parte, do Código Penal é o exercício regular de direito. Assim como o estrito cumprimento de dever legal, a lei não trouxe o conceito de exercício regular de direito, ficando a cargo da doutrina definir esta excludente. Assim define Fernando Capez (2015, p. 311): “causa de exclusão da ilicitude que consiste no exercício de uma prerrogativa conferida pelo ordenamento jurídico, caracterizada como fato típico”.

Estará protegido pela justificante citada acima quem age protegido por um direito subjetivo oupor uma faculdade prevista em lei em sentido amplo. Nas palavras de Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (2015, p. 175):

Qualquer pessoa pode exercitar um direito subjetivo ou faculdade previsto na lei (penal ou extrapenal). É disposição constitucional que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma senão em virtude de lei (art. 5º, inciso II, da CF), excluindo a antijuridicidade nas hipóteses em que o sujeito está autorizado a esse comportamento. Há exercício regular de direito na correção dos filhos pelos pais, na prisão em flagrante por particular, no penhor forçado (art. 1.470. do CC), na defesa em esbulho possessório recente (art. 1.210, § 1º do CC), no expulsar, ainda que usando a força, pessoas que entram abusivamente ou permanecem em escritório, clube ou outro local em que lhe está vedado o acesso etc. Não age o sujeito ativo por dever, como na justificativa anterior, mas exercita uma faculdade de agir conforme o Direito. Prevê a lei penal, na Parte Especial, casos específicos de exercício regular de direito: a “imunidade judiciária” (art. 142, inc. I); o direito de crítica (art. 142, inc. II); a coação para evitar suicídio ou para a prática de intervenção cirúrgica (art. 146, § 3º) etc.

Assim como nas demais excludentes penais, o excesso no exercício regular de direito poderá ser punido, devendo aquele que age acobertado por esta excludente respeitar os limites legais impostos. Ensina Cezar Roberto Bitencourt (2008, p. 326):

Regular será o exercício que se contiver nos limites objetivos e subjetivos, formais e materiais impostos pelos próprios fins do Direito. Fora desses limites, haverá o abuso de direito e estará, portanto, excluída essa causa de justificação. O exercício regular de um direito jamais poderá ser antijurídico. Deve-se ter presente, no entanto, que a ninguém é permitido fazer justiça pelas próprias mãos, salvo quando a lei permite (art. 345. do CP).

Após fazer uma breve explanação sobre as excludentes previstas no Código Penal, passar-se-á ao estudo da incidência das excludentes no auto de prisão em flagrante.

2.3. INCIDÊNCIA DAS EXCLUDENTES NO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE: EXEMPLOS.

A incidência das excludentes penais no auto de prisão em flagrante acontece com frequência, sobretudo, quando se trata daquele que prende alguém em flagrante delito. Se for policial (estrito cumprimento de dever legal) o que é mais comum na prática, se for qualquer um do povo (exercício regular de direito) o que é não é comum.

Percebe-se que, em relação às excludentes supracitadas, até mesmo aqueles que defendem que o delegado de polícia não pode analisar as excludentes de ilicitude na prisão em flagrante, entendem que, nestes casos supramencionados, não haverá crime, ou seja, não se presencia o delegado prender um policial em flagrante que conduziu um delinquente até a delegacia, pois, em tese, aquele comete um fato típico (constrangimento ilegal ou cárcere privado), todavia a sua conduta está acobertada por uma causa de justificação.

Pode-se citar Guilherme de Souza Nucci (2015, p.560), que é contra o exame das causas de exclusão de crime pela autoridade policial, que ao criticar a redação do artigo 304, parágrafo 1º do Código Penal, escreve:

Excepcionalmente, no entanto, pode ocorrer a situação descrita no § 1.º do art. 304, isto é, conforme o auto de prisão em flagrante desenvolve-se, com a colheita formal dos depoimentos, observa a autoridade policial que a pessoa presa não é, aparentemente, culpada. Afastada a autoria, tendo sido constatado o erro, não recolhe o sujeito, determinando sua soltura. É a excepcional hipótese de se admitir que a autoridade policial relaxe a prisão. Ao proceder desse modo, pode deixar de dar voz de prisão ao condutor, porque este também pode ter-se equivocado, sem a intenção de realizar prisão ilegal. Instaura-se, apenas, inquérito para apurar, com maiores minúcias, todas as circunstâncias da prisão.

Compreende-se que o autor supracitado defende que a autoridade policial deve relevar o erro daquele que prendeu alguém de forma ilegal, é dizer, quando não há o dolo em realizar a prisão ilegal. Logo, se o doutrinador mencionado faz uma interpretação para mais, entende-se que, apesar de não estar expresso em seu livro, muito menos defenderá que o delegado de polícia deva prender quem age em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Nesta toada, é difícil imaginar um entendimento em sentido contrário e se tivesse certamente não iria prevalecer, uma vez que inviabilizaria a persecução criminal.

O estado de necessidade é uma excludente não muito comum de acontecer na prática. Já a legítima defesa é uma causa de justificação que ocorre com mais frequência no cotidiano das pessoas, sendo assim tem grande incidência no Auto de Prisão em Flagrante. É justamente quanto a esta justificante, pelo que se percebe, que há resistência por parte de alguns operadores do direito em aceitar que a autoridade policial a identifique, quando evidente, e, assim, deixe de ratificar a voz de prisão àquele que agiu amparado por ela, ou seja, o mesmo raciocínio quanto as demais excludentes (estrito cumprimento de dever legal, exercício regular de direito) deve ser aplicado aqui, é dizer, quem age amparado por qualquer uma das excludentes elencadas no artigo 23 do Código Penal não comete crime e, portanto, é inocente.

Imagine um policial que avista “B” com uma arma apontada para “A” prestes a ceifar a sua vida, conforme o artigo 13, parágrafo 2º, alínea a, do Código Penal, ele tem o dever de agir, portanto não tem escolha, saca sua arma e dispara contra “B” para repelir a injusta agressão perpetrada contra “A”, vindo “B” a morrer em razão do disparo. Pode-se dizer que o policial agiu amparado por duas excludentes de ilicitude: estrito cumprimento de dever legal, pois tinha o dever legal de agir e legítima defesa de terceiros.

Num primeiro momento, o policial será capturado e conduzido até a presença do delegado de polícia, vale dizer, não é razoável exigir, daqueles que participam das duas primeiras etapas da prisão em flagrante, exame das causas justificantes, mas sim da tipicidade da conduta, tendo em vista que qualquer um do povo pode prender alguém em flagrante, logo, não tem conhecimento jurídico para tanto e no caso dos agentes policiais (civis ou militares), sendo mais comum a prisão em flagrante ser realizada por eles, outrossim, por enquanto, não exige formação acadêmica em Direito para ingresso na carreira, exigindo-se, do mesmo modo, apenas análise da tipicidade.

Num segundo momento, a análise da prisão em flagrante será feita pelo delegado de polícia de quem se exigiu formação em ciência jurídica para a ocupação do respectivo cargo, ou seja, ele detém todo o conhecimento técnico para analisar todos os substratos do crime, portanto, ao colher os depoimentos do condutor, das testemunhas e perceber que o policial agiu acobertado pelas excludentes supracitadas, ele não deve ratificar a prisão em flagrante, pois caso contrário recolherá ao cárcere um inocente. Consoante se extrai do artigo 2º, parágrafo 6º da Lei n. 12.830/13:

Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

§ 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

Conforme se lê, a autoridade policial exerce atividade jurídica, portanto, está apta a fazer uma análise técnica do fato concreto, examinando os substratos do crime, para decidir ou não pela ratificação da prisão em flagrante.

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Sobre o autor
Dioni Barbosa Cardoso

Policial Militar em Minas Gerais, integrante do quadro da ativa. Bacharel em Direito pelas Faculdades Unificadas de Teófilo Otoni, Minas Gerais, Pós-Graduado em Ciências Penais e Segurança Pública pela Faculdade de Direito Presidente Antônio Carlos em Teófilo Otoni, Minas Gerais. Aprovado no XVIII Exame de Ordem Unificado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Direito das Faculdades Unificadas de Teófilo Otoni. Área de Concentração: Direito Penal e Direito Processual Penal. Orientador: Gylliard Matos Fantecelle.

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