A inafastabilidade da jurisdição é garantia individual prevista pelo constituinte originário no art. 5º, inciso XXXV, da Carta Política de 1988, segundo a qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Assim, a regra é de que toda e qualquer lesão, ou ameaça de lesão, a direito, seja apreciada pelo Poder Judiciário, que não pode se negar a prestar a jurisdição, sob pena de malferir garantia constitucionalmente prevista para o cidadão.
Doutrina majoritária tem admitido que essa garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição tem natureza principiológica, o que a difere, portanto, do tratamento dado às regras. E isso porque, os princípios, diversamente das regras, estão sujeitos à conformação e à restrição, notadamente em razão do caráter dialético do texto constitucional vigente, o qual acampa tanto postulados liberais quanto comunitaristas, que, somados à norma do art. 5º, caput e inciso II, da CF/88, dão ensejo à cláusula geral de liberdade.[1]
Sobre o tema, Virgílio Afonso da Silva[2] ensina que:
[…] a teoria dos princípios sustenta que, em geral, direitos fundamentais são garantidos por uma norma que consagra um direito prima facie. Como visto […], o suporte fático dessa norma — que tem a estrutura de princípio — é o mais amplo possível. Isso implica, entre outras coisas, que a colisão com outras normas pode exigir uma restrição à realização desse princípio. Essas normas constituem, portanto, as restrições ao direito fundamental garantido pelo princípio em questão. (2006, p. 39).
Contudo, embora esse princípio consagre a inafastabilidade da jurisdição, o seu conteúdo não leva a crer, e não impõe, que tudo, necessariamente, deva ser decidido de maneira definitiva pelo Judiciário. Há jurisprudência antiga, por exemplo, que fixa que questões políticas são, em regra, insusceptíveis de controle jurisdicional, o que não faz concluir que isso violaria o princípio da inafastabilidade. A propósito:
EMENTA. Agravo regimental. Mandado de segurança. Questão interna corporis. Atos do Poder Legislativo. Controle judicial. Precedente da Suprema Corte. 1. A sistemática interna dos procedimentos da Presidência da Câmara dos Deputados para processar os recursos dirigidos ao Plenário daquela Casa não é passível de questionamento perante o Poder Judiciário, inexistente qualquer violação da disciplina constitucional. 2. Agravo regimental desprovido (STF, MS 25588 AgR, rel. min. Menezes Direito, Tribunal Pleno, j. em 2/4/2009, DJe 22/4/2009) (grifo nosso)
Na verdade, a lógica adotada pelo sistema constitucional brasileiro leva a crer que o próprio fato de decidir não julgar, já é uma decisão definitiva, o que não atentaria contra a inafastabilidade, não havendo, portanto, falta de prestação jurisdicional.
Dito isto, questiona-se: o Poder Judiciário pode controlar o mérito administrativo da sanção disciplinar?
O Superior Tribunal de Justiça firmou a tese de que o controle judicial no processo disciplinar é restrito. Segundo a “tese 1”, publicada na edição nº 141 da base de jurisprudências em tese do STJ, de 07 de fevereiro de 2020[3]:
1) O controle judicial no processo administrativo disciplinar - PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, não sendo possível nenhuma incursão no mérito administrativo.
Julgados: MS 24126/DF, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/12/2019, DJe 17/12/2019; MS 23464/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/12/2019, DJe 13/12/2019; MS 17796/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/09/2019, DJe 19/11/2019; RMS 60913/PI, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2019, DJe 22/10/2019; MS 24031/DF, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/08/2019, DJe 16/10/2019; AgInt no MS 25060/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/09/2019, DJe 16/09/2019. (Vide Informativo de Jurisprudência N. 367)
Assim, de acordo com a Corte Superior, seria possível o exame de legalidade do ato punitivo. Como exemplo, verifica-se controle de legalidade do ato quando o Judiciário anula uma sanção que deixa de motivá-lo, indicando apenas a fundamentação jurídica. Outra hipótese seria a anulação de sanção precedida de processo em que não foram dispensados contraditório e ampla defesa ao acusado.
No que tange ao mérito administrativo da sanção disciplinar, ou seja, quanto à valoração da motivação e a escolha do objeto do ato punitivo, o STJ, ao que parece, rechaça a hipótese de intromissão do Poder Judiciário, considerando-a irregular caso aconteça. “Ao que parece”.
E isso porque, a impossibilidade de adentar no mérito administrativo não quer dizer que o Judiciário não possa fazer ponderação de valores ao analisar se o ato é, ou não, razoável e proporcional. A primeira razão para tanto é o próprio dever de inafastabilidade que recai sobre o Estado-Juiz.
É que o exame de razoabilidade e proporcionalidade do ato administrativo sancionador é compreendido como exame de devido processo legal. Nesse sentido, concebe-se que só se terá devido processo legal quando forem observados os princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório e segurança jurídica. Essa é a interpretação que se faz numa leitura sistemática, tomando-se por base, inicialmente, a Lei nº 9.784/99, que trata sobre o processo administrativo federal, a qual iremos nos restringir nessa análise sumária quanto ao tema. Vejamos:
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Ora, caso não houvesse a possibilidade de controlar o ato administrativo sancionador com base em critérios de razoabilidade e proporcionalidade, notadamente verificando se a sanção guarda peso com a transgressão disciplinar praticada, a garantia constitucional da inafastabilidade, a qual tem o acusado, estaria sendo violada.
Há precedentes no próprio STJ nesse sentido:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. REPROVAÇÃO DECORRENTE DE SUPOSTA DEFICIÊNCIA VISUAL. LAUDO MÉDICO QUE ATESTA A DESNECESSIDADE DE CORREÇÃO PARA O EXERCÍCIO DE QUALQUER ATIVIDADE MENTAL OU FÍSICA. NÃO-INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ, ANTE A CLARA E INCONTESTÁVEL CONCLUSÃO DA PROVA TÉCNICA, QUE NÃO PRECISA SER REEXAMINADA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A recorrente foi desclassificada em concurso público para o Curso de Formação de Soldados da Polícia Militar do DF sob a alegação de que sua suposta deficiência (miopia) a tornava inapta para o exercício das respectivas funções, consoante previsão em edital. O laudo médico, todavia, atesta a desnecessidade de correção visual para realizar qualquer atividade física ou mental. Nesse contexto, revela-se injusta, e fora dos parâmetros da razoabilidade, a exclusão da candidata, sendo desnecessário para tal conclusão o reexame de prova. 2. Recurso Especial provido. (REsp 945357/DF, Rel.: Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe: 04/05/2009)
Com essas razões, entende-se, sumariamente, que o Superior Tribunal de Justiça, ao pacificar o entendimento de que não é possível “incursão no mérito administrativo”, está, na verdade, concluindo que não é possível apenas a revisão fática sobre se é cabível, ou não, sanção sob o ato do servidor infrator, eis que esse juízo faz parte da função administrativa, não estando excluída a possibilidade de verificar se eventual sanção é, ou não, proporcional ao ato praticado.
Obviamente que o estudo aprofundado sobre o tema pode levar a outras conclusões, o que não significa que a conclusão aqui exposta está equivocada, principalmente se verificarmos a jurisprudência da própria Corte Superior, como se viu.
Tudo isso para dizer que, não obstante a tese firmada pelo STJ, ainda existe base para se fazer o controle do ato administrativo sancionador que aplica punição ao servidor de forma indevida, ou seja, inobservando postulados constitucionais e legais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei n. 9.784/99. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial provido. Administrativo. Concurso Público. Reprovação Decorrente De Suposta Deficiência Visual. Laudo Médico Que Atesta A Desnecessidade De Correção Para O Exercício De Qualquer Atividade Mental Ou Física, Rel.: Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe: 04/05/2009.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 33ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. Constituição do Brasil Interpretada. – 13. ed. – São Paulo: Atlas, 2003.
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Aspectos gerais sobre a restrição de direitos fundamentais. Disponível em: <https://works.bepress.com/cgi/viewcontent.cgi?article=1007&context=janere>, acesso em: 7jan2020.
SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, a. 1, n. 4, out./dez., 2006.
[1] PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Aspectos gerais sobre a restrição de direitos fundamentais. Disponível em: <https://works.bepress.com/cgi/viewcontent.cgi?article=1007&context=janere>, acesso em: 7jan2020.
[2] SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, a. 1, n. 4, out./dez., 2006.
[3] Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp?edicao=EDI%C7%C3O%20N.%20141:%20PROCESSO%20ADMINISTRATIVO%20DISCIPLINAR%20-%20IV, acesso em 07fev2020.