Resumo: O presente ensaio tem por escopo precípuo analisar a possibilidade do reconhecimento do furto famélico no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo, durante a crise mundial de Saúde Pública, em razão da pandemia do Coronavírus que impõe à sociedade brasileira o sistema de isolamento social na modalidade horizontal, com ênfase no pensamento das correntes doutrinárias e as decisões dos Tribunais Superiores acerca do tema.
Palavras-chave: Furto famélico. Coronavírus. Isolamento social. Horizontal. Estado de necessidade. Configuração.
“Ademais, propugna pela comunhão de vontade na edificação dos valores humanitários, e desprezo às concepções meramente individualistas, às ideologias filosóficas e políticas partidárias em busca do equilíbrio justo nas relações intersubjetivas e sobrevivência da paz social, cuja finalidade maior é a preservação de vidas, colocando o Homem no centro da valorização social, fazendo valer as normas cogentes do Artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a que todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
1. INTRODUÇÃO
O mundo vive hodiernamente num insofismável flagelo social, inequívoca e verdadeira catástrofe na saúde pública com reflexos na atividade econômica e em diversos setores sociais. O ano de 2020 escreve um cenário tétrico de visualização de angústia, cenas de caixões enfileirados levando cadáveres, suspensão de velórios, surgimento de hospitais de campanha utilizados normalmente em situações extremas, beligerantes, de guerras declaradas, mais de 40 mil mortes e 800 mil infectados no mundo, tudo isso marca a história da humanidade assim como marcou a memória mundial a Gripe Espanhola em 1918 que deixou milhares de mortos e cicatrizes indeléveis nos anais históricos da humanidade.
A crise humanitária se inicia na China e se expande para mais de 200 países do mundo, deixando rastros de destruição na Europa, em especial na Itália e Espanha, chegando com efeitos devastadores nos Estados Unidos e inevitavelmente chegando no Brasil e em toda América do Sul.
No Brasil a crise se instala mediante a presença de três vírus corrosivos com grande poder de destruição, o da pandemia do coronavírus, o vírus da destruição da economia, do desemprego e o mais grave de todos, o vírus da divisão e da intolerância, da instalação do ódio e da peçonha num país extremamente destruído pela maldade de seus agentes políticos, responsáveis por contaminar diretamente grande parte da população.
O ódio se instala inclusive em torno de especialistas em saúde pública e políticas sanitárias, que não se entendem acerca das medidas profiláticas contra o mal invisível do vírus, uns defendendo o isolamento horizontal, ou seja, de todas as pessoas como única medida de prevenção da doença e outros, propugnam pelo isolamento seletivo, o chamado lockdown vertical, que isola tão somente aquelas pessoas mais susceptíveis de contaminação, nesse sentido, se incluem os idosos e aquelas pessoas com doenças preexistentes.
Quem defende o isolamento horizontal são violentamente criticados por outros segmentos sociais sob argumento de implantarem a indústria da morte pela fome no Brasil, em razão do desemprego, da falência múltipla de comerciantes e trabalhadores, são acusados de incitarem um futuro sombrio de saqueamentos de supermercados nos próximos dias e aumento da criminalidade em números nunca vistos no país.
Por sua vez, quem defende o isolamento vertical são também criticados por outros setores sociais, que utilizam como argumento que esta prática despreza a vida em nome da economia do país, e mais que isso, que a economia do Brasil pode ser ressuscitada, mas a vida ninguém traz de volta.
Neste cenário dicotômico, quaisquer que sejam as medidas eleitas pelos governantes detentores do Poder, certamente os reflexos na criminalidade vão aparecer notadamente no recrudescimento dos crimes de tráfico ilícito de drogas e crimes patrimoniais.
E seguramente, o tema do furto famélico ganha enorme relevância no meio jurídico e na sociedade como todo, dado a sua iminente ocorrência em escadas imprevisíveis onde o Estado-Polícia deverá ser chamado num primeiro plano como garantidor do estado de direito, a dirimir essas questões nos cantos e recantos do país.
Ab initio, importante dizer que furto famélico é um fato jurídico e doutrinário onde um agente num ato de profundo desespero e comprovada penúria subtrai bens patrimoniais da vítima, destinados a saciar a sua fome e de seus familiares por questões de sobrevivência.
2. DO CRIME DE FURTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
O crime de furto é previsto no ordenamento jurídico brasileiro, no título referente aos crimes contra o patrimônio, art. 155 do Código penal, cuja conduta típica é subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. A pena cominada é de reclusão de um a quatro anos, e multa.
Além do preceito fundamental, e estrutura do tipo possui sete parágrafos distribuídos entre causas de aumento de pena, possibilidade da substituição da pena de reclusão em casos de primariedade do autor, do pequeno valor da coisa furtada, nestes casos, podendo o juiz substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
Existem também inúmeras qualificadoras, § 4º, I, II, III e IV, que elevam a pena de reclusão de dois a oito anos, e multa, quando o crime for cometido com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa, com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza, com emprego de chave falsa e mediante concurso de duas ou mais pessoas.
Nessa toada de qualificadora, o artigo 155 possui ainda mais quatro hipóteses, sempre com pena maiores, por exemplo, se durante a prática do delito, houver emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum, ou se se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
E ainda se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração ou ainda se a subtração for de substâncias explosivas ou de acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou emprego.
Chama-se a atenção para a hipótese de cabimento de o juiz de direito considerar na Justiça Militar o crime de furto como infração disciplinar, no chamado furto atenuado, art. 240, § 1º do Decreto-Lei nº 1.001/69, que dispõe sobre o Código Penal Militar, in verbis:
§ 1º Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar. Entende-se pequeno o valor que não exceda a um décimo da quantia mensal do mais alto salário mínimo do país.
3. DA POSSIBILIDADE OU NÃO DO FURTO FAMÉLICO NO DIREITO PÁTRIO
Logo torna-se importante conceituar furto famélico, como sendo aquele praticado por uma pessoa em estado de extrema privação, para satisfazer necessidades básicas do ser humano.
Percebe-se claramente, que de uma simples leitura da tipicidade total, fundamental e derivada do artigo 155 do CP, não existe a contemplação da figura do furto famélico, podendo afirmar que o nosso direito penal não prevê expressamente a hipótese do furto famélico, ficando sua caracterização a cargo das correntes doutrinárias e das decisões dos nossos Tribunais superiores.
Assim, já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça da Paraíba, in verbis:
“Admite-se o furto famélico àquele que, vivendo em condições de maior indigência, subtraíram objetos, aptos a satisfazer privado inadiável, na qual padeciam tanto eles como seus familiares e dependentes. Ninguém furta gêneros alimentícios para acrescentá-los a seu patrimônio; fá-lo, tão-somente, para saciar a fome e atender suas vicissitudes imediatas, pois que apenas a isso se prestam mercadorias de tal natureza” (TJPB, Ap, 99.0044701-5, Câmara Criminal, rel. Júlio Aurélio Moreira Coutinho, 16.11.1999, v. u., RT 773/647).
ALBERTO SILVA FRANCO, em sua famosa obra Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, apresenta rol de decisões de Tribunais Superiores, ora pela admissibilidade ou não, em torno da adoção do furto famélico, o que se seguem:
PELA ADMISSIBILIDADE:
“Quem subtrai um quilo de carne para acrescentá-lo em seu patrimônio; fá-lo, tão-só, para mitigar a forme, pois apenas a isso se presta mercadoria de tal natureza’ (TACRIM-SP – AC – Rel. Canguçu de Almeida – JUTACRIM 86/425).
“O conceito de famelicidade, nos dias de hoje, não pode ser apreciado com muito rigor” (TACRIM-SP – AC – Rel. Adauto Suannes – TUACRIM 78/416).
“Apenas é reconhecida a impunidade do furto famélico, isto é, do furto praticado por quem, em estado de extrema penúria, é impelido pela fome, pela inadiável necessidade de se alimentar” (TACRIM – SP – AC – Rel. Nogueira Camargo – JUTACRIM 69/467).
“A comprovação do estado de necessidade cabe à defesa. Mas pode resultar de prova indiciária e circunstancial, para se reconhecer o furto famélico” (TAGB – AC – Rel. Raul da Cunha Ribeiro – RT 469/414).
Furto famélico – Agente que adentra granja, mata duas galinhas e se retira do local com as mesmas. Alegação de que praticava a infração impelido pela fome. Valor insignificante da “res”. Reconhecimento – “Circunstâncias excepcionalíssimas autorizam o reconhecimento de tentativa de furto famélico de duas galinhas de valor insignificante, que, embora abatidas pelo agente, não saíram dos limites da propriedade da vítima” (TACRIM –SP – AC – Rel. Haroldo Luz – JUTACRIM 99/154).
Sobre a questão: JUTACRIM 90/155, RT 615/311.
Além destas decisões em epígrafe, caminham nesse mesmo sentido:
No caso de uma pizza grande arrebatada pelo entregador (denúncia rejeitada) (TACrSP, RT 615/312), ou em supermercado, por agente gestante e família na penúria (TACrSP, Julgados 82/206), ou ainda, no caso de um galo e duas galinhas (também pelo princípio da insignificância) (TAPR, PJ 43/274). ”
PELA INADMISSIBILIDADE
“ O furto famélico não pode ser reconhecido quando o próprio agente não pretendeu ter agido para matar a sua fome ou de outrem” (TACRIM-SP – AC – Rel. Ricardo Andreucci – JUTACRIM 89/402).
“ Em razão da natureza da res, subtração de objetos típicos de lazer, como fitas-cassete e aparelhamento de som, não pode ensejar reconhecimento do chamado furto famélico” (TACRIM-SP – AC – Rel. Gonzaga Franceschini – TACRIM 91/388).
“Furto famélico é a subtração praticada pelo agente, a fim de satisfazer necessidade extrema. Mesmo estando o réu desempregado e não havendo provas de que ele estivesse em extrema necessidade, não se pode falar em furto famélico” (TACRIM –SP – AC – Rel. Brenno Marcondes – JUTACRIM 80/398).
“Impossível o reconhecimento de furto famélico se a intenção do agente é a de subtrair pacotes de cigarro e não alimentos imprescindíveis à sua sobrevivência” (TACRIM-SP – AC – Rel. Gonzaga Franceschini – JUTACRIM 82/282).
“Simples circunstância de estar o réu desempregado não configura descriminante de estado de necessidade, mormente quando os objetos furtados não são próprios para a sua alimentação” (TAMG –AC – Rel. Gudesteu Biber – RTJE 36/335 e RT 608/392).
“A fome, evidentemente, não pode ser provocada voluntariamente pelo indigitado autor do furto, como também é inevitável. Todavia, para satisfazê-la não é necessário que o indivíduo lance mão da subtração de dinheiro de cofre de igreja. Repele-se, assim, a defesa escudada no estado de necessidade, que exige para a sua constatação que o ato vise a salvaguardar um direito; que haja perigo atual impondo sua atividade; ausência de provocação da parte; inevitabilidade .do perigo e, finalmente, ocorram circunstâncias razoáveis para prevalência do direito “salvaguardado” (TACRIM –SP – AC – Rel. Rezende Junqueira – RT 448/401).
“Inexiste o estado de necessidade, pela ausência de inexigibilidade de outra conduta, eis que o direito à subsistência, bem ameaçado, seria atendível por outros meios; opera, contudo, a causa especial de diminuição de pena, tendo-se em vista as especiais circunstâncias que rodeiam o fato, a condição do agente, a natureza da res furtiva e o destino que a ela se deu” (TACRIM-SP – AC Rel. Laudo Malheiros – RT 449/427).
“Em tema de furto, não é simples apuração das condições que perfazem o estado de necessidade – Verificando-se que a res furtiva não se presta à satisfação imediata do direito à subsistência, necessidade básica do indivíduo, não está excluída a antijuridicidade do fato, responde o agente pelo ilícito praticado” (TACRIM-SP – AC – Rel. Régio Barbosa – RT 649/290).
Furto famélico. Agente que, durante a noite, e com veículo motorizado, subtrai suínos, que abatera – “ Não há cuidar de furto se o agente o empreendeu na calada da noite, utilizando veículo automotor no qual transportou o produto da subtração, pois isto evidencia a perfeita evitabilidade do fato” (TACRIM-SP – AC – Rel. Haroldo Luz – JUTACRIM 99/155).
Furto. Estado de necessidade. Subtração de uma vaca holandesa, que já estava remarcada quando capturada – “ O alegado estado de necessidade não se comprovou em momento algum. E nem seria fácil conciliar a ideia do furto famélico com a subtração de uma vaca, por mais exagerado que fosse o agente o apetite atribuível aos petizes mencionado pelo apelante” (TACRIM-SP – AC – Rel. Alberto Marino – JUTACRIM 99/153).
Sobre a questão: JUTACRIM 56/153, 49/211, 28/171, 18/174.[1]
4. NATUREZA JURÍDICA DO FURTO FAMÉLICO
Discute-se na doutrina qual seria a natureza jurídica do furto famélico. E aí surgem três correntes à respeito.
I – Causa de atipicidade penal
Existe uma corrente que defende a adoção do princípio da insignificância ou bagatela no caso de furto famélico, e neste caso, estaria excluída a tipicidade material, mas necessariamente não se associa o furto famélico á insignificância e tampouco ao furto privilegiado ou atenuado, art. 155, § 2º do Código Penal.
II – Causa de estado de necessidade
Existe grande parte da doutrina que defende o furto famélico como excludente de ilicitude, com afastamento do crime pelo estado de necessidade, artigo 23, I c/c art. 24 do Código Penal, por se tratar de situação extrema penúria do agente o que inviabilizaria a sua sobrevivência em face do perigo existente, e na rota de colisão de direitos fundamentais, propriedade e vida, deve ser sacrificada aquela em favor da prevalência do direito à vida.
III - Causa de inexigibilidade de causa diversa.
Há quem defenda o furto famélico como sendo uma causa de inexigibilidade de conduta diversa que exclui a culpabilidade. A necessidade de saciar a forme deve ser gravíssima, atual ou iminente, inevitável situação em que não poderia exigir conduta diversa do agente.
O festejado professor ROGÉRIO GRECO, que muito enaltece a construção jurídico deste país, apresenta singular ensinamentos acerca da admissibilidade do furto famélico no sistema legal pátrio no âmbito do estado de necessidade.
“A palavra famélico traduz, segundo o vernáculo, a situação daquele que tem fome, que está faminto. Quando nos referimos ao furto famélico queremos apontar uma situação em que a subtração dos bens da vítima foi levada a afeito para que o agente pudesse saciar sua fome. Em tese, o fato praticado pelo agente seria típico. Entretanto, a ilicitude seria afastada em virtude da existência do chamado estado de necessidade. Podemos concluir que o furto famélico amolda-se à condições necessárias ao reconhecimento do estado de necessidade, uma vez que, de um lado, podemos visualizar o patrimônio da vítima e, do outro, a vida ou a saúde do agente, que corre risco em virtude da ausência de alimentação necessária à sua subsistência. No entanto, como em todo raciocínio que diz respeito ao estado de necessidade, ambos os bens em confronto são juridicamente protegidos, o agente deve subtrair patrimônio alheio (alimento) que cause menos prejuízo, uma vez que, havendo alternativa de subtração, deve optar por aquela menos lesiva à vítima, pois, caso contrário, não poderá beneficiar-se com a causa de justificação em estudo. Assim, aquele que, no interior de um supermercado, podendo subtrair um saco de feijão, seleciona que peça de bacalhau, por mais que tenha necessidade de se alimentar, não poderá ser beneficiado com o raciocínio do estado de necessidade, pois a escolha do bem a ser subtraído deve recair sobre aquele que traga menor prejuízo à vítima. Apesar da possibilidade do seu reconhecimento, somente os casos extremos permitem o raciocínio correspondente ao furto famélico.”[2]
O prestigiado autor menciona o pensamento de Weber Martins Batista, que arremata:
“Exige a doutrina, para a configuração do estado de necessidade, a impossibilidade de evitar por outro modo o perigo. Por isso, como se tem decidido, não o caracteriza o simples desemprego [...] e, com maior razão, o fato de o agente perceber parco salário [...]. Lógico concluir, portanto, [...] que não pode alegar o estado de necessidade o agente que sofre as agruras comuns a toda classe trabalhadora do país e que, além de estar empregado – o que não acontece a todos – não faz prova de que passa por situação de especial dificuldade”.
A jurisprudência tem admitido o reconhecimento como modalidade de estado de necessidade, desde que presentes os seguintes requisitos:
I - Que o fato seja praticado para mitigar a fome;
II - Que seja o único e derradeiro recurso do agente - Inevitabilidade;
III - Que haja a subtração de coisa capaz de diretamente contornar a emergência;
IV - A insuficiência dos recursos adquiridos pelo agente com o trabalho ou a impossibilidade de trabalhar.
Para o professor NUCCI, o furto famélico caracteriza autêntico caso excludente de ilicitude, estado de necessidade, conforme se expõe:
“Pode, em tese, constituir estado de necessidade. É a hipótese de se subtrair qualquer alimento para saciar a fome. O art. 24 do Código Penal estabelece ser possível o perecimento de um direito (patrimônio) para salvaguardar outro de maior valor (vida, integridade física ou saúde humana), desde que o sacrifício seja indispensável e inevitável. Atualmente, não é qualquer situação que pode configurar o furto famélico, tendo sem vista o estado de pobreza que prevalece em muitas regiões de nosso País. Fosse ele admitido sempre e jamais se teria proteção segura ao patrimônio. Portanto, reserva-se tal hipótese a casos excepcionais, como, por exemplo, a mãe que, tendo o filho pequeno adoentado, subtrai um litro de leite ou um remédio, visto não ter condições materiais para adquirir o bem desejado e imprescindível para o momento. Configura o estado de necessidade, caso os bens subtraídos sejam gêneros alimentícios, sem qualquer qualidade para representar acréscimo ao patrimônio.”[3]
DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Tem alguém levando o lucro
Tem alguém colhendo o fruto
Sem saber o que é plantar
Tá faltando consciência
Tá sobrando paciência
Tá faltando alguém gritar
Feito um trem desgovernado
Quem trabalha tá ferrado
Nas mão de quem só engana
Feito mal que não tem cura
Estão levando a loucura
O país que a gente ama”(Meu País – Zezé Di Camargo e Luciano)
Como se percebe de toda exposição fática, o momento exige união de forças, de métodos, de estratégias e fins, unidade de desígnios, para vencer o inimigo maior, o vírus que transmite a doença, tudo isso tentando minimizar os nefastos impactos da doença que já deixou rastros de destruição no mundo.
É preciso envidar esforços na busca de um equilíbrio entre a prevenção contra o inimigo agressivo e a preservação da economia de mercado mesmo porque a situação excepcional criada não deixa tantas alternativas, ou se morre da doença viral ou se morre de fome.
Sábias são as palavras do Dr. Henrique de Oliveira, ex-Superintendente de Planejamento, Finanças e Gestão da Polícia Civil de Minas Gerais, quando assevera que “seria interessante, neste momento de adversidade pelo qual todos estão passando que as pessoas deixassem as questões políticas de lado e apresentassem propostas para construção do bem comum. Setores inteiros da economia vão quebrar. Em contrapartida, milhares de pessoas vão adoecer e, talvez, morrer”.
E nesse contexto, quem não pretende morrer de forme possui saídas que o direito pátrio ampara, e nesse sentido cabe ao intérprete da lei a função de aplicá-la em seu sentido mais justo e equânime para proteger dois bens fundamentais, - a vida e a propriedade - mas se ambos estiverem em rota de colisão certamente entrará em cena a técnica da exclusão do bem menos importante para prevalecer o bem mais importante para o cidadão.
E assim, se na Justiça Militar, onde geralmente prevalece um conjunto de regras rígidas, austeras, até mesmo em razão do binário, disciplina e hierarquia, pode o Juiz castrense converter um crime de furto em infração administrativa-disciplinar, art. 240, § 1º, decreto-lei nº 1.001/69, claramente possível na justiça comum reconhecer o furto famélico se presentes as condições de admissibilidade, quais sejam, de penúria extremada, o estado de necessidade ou a inexigibilidade de conduta diversa a fim de saciar a fome própria ou de terceiros, devendo a vida prevalecer sobre quaisquer outros bens jurídicos.
Noutro viés, diga-se que em tempos de embates com o governo e com a mídia, em defesa de interesses nem sempre coincidentes, vale a reflexão sobre os efeitos colaterais decorrentes da praga do momento, o Coronavirus. Efeitos colaterais, que se refiram à situação da economia global, que repercute em nosso país, em nosso Estado, enfim, em nosso cotidiano. Basta observarmos a deterioração das relações familiares, quando o provedor do lar se vê desempregado e não consegue sustentar aquele grupo de pessoas. As brigas, ofensas e desavenças eclodem naquele meio.
A sociedade na qual vivemos não é diferente desse núcleo familiar desajustado. É um grupo maior, uma "macro-família". Antevendo a paralisação e estagnação da economia do Estado e do pais, não precisa ser um "expert" na matéria para prever que haverá a falência não de empresas, mas de setores inteiros - vide a situação das companhias aéreas - o desemprego e a falta de dinheiro, somado a todos à problemática social, tudo isso pode levar ao caos, gerando o que alguns chamam de "caldo social". Lembremos que, em casa que falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. Não bastasse isso, o cidadão de bem nos próximos dias vai conviver com criminosos que cumpriam pena nos regimes semiaberto e aberto, que serão liberados, por determinação judicial.
E para combater os efeitos mais graves da doença social, governos sempre lançam mão do mesmo remédio, chamado Polícia. Diante de quadro tão dramático, não é hora de as forças policiais serem confrontadas, esquecidas, desdenhadas. É hora de governo e Polícias se sentarem à mesa de negociação, despidos da arrogância, vaidade e prepotência. Os próximos dias serão escuros e tenebrosos; a sociedade vai precisar ainda mais dos profissionais da Saúde, categoria tão imprescindível no contexto social, que está para a sociedade como oxigênio para a vida, mas brutalmente desvalorizada pelos nossos governantes, para cuidar dos males do corpo e vai precisar dos Policiais, que como médicos intensivistas, cuidarão de uma sociedade em estado terminal, já com falência de alguns "órgãos ".
Ademais, propugna pela comunhão de vontade na edificação dos valores humanitários, e desprezo às concepções meramente individualistas, às ideologias filosóficas e políticas partidárias em busca do equilíbrio justo nas relações intersubjetivas e sobrevivência da paz social, cuja finalidade maior é a preservação de vidas, colocando o Homem no centro da valorização social, fazendo valer as normas cogentes do Artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a que todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código Penal Militar. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001.htm. Acesso em 31 de março de 2020, às 16h16min.
FRANCO, Alberto Silva...(et al). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. Editora Revista dos Tribunais. 4ª edição. São Paulo. Pág. 1006-1008. 1993.
GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial – Artigos 121 a 212 do CP – 14ª edição. Item 13.4. Editora Ímpetus. Volume2. Niteroi – Rio de Janeiro. 2017.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 2ª edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. Pág. 495-497. 2002.
Notas
[1] FRANCO, Alberto Silva...(et al). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. Editora Revista dos Tribunais. 4ª edição. São Paulo. Pág. 1009. 1993.
[2] GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial – Artigos 121 a 212 do CP – 14ª edição. Item 13.4. Editora Ímpetus. Volume2. Niteroi – Rio de Janeiro. 2017.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 2ª edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. Pág. 495-497. 2002.