O direito do trabalho trata-se essencialmente de um direito social, e, portanto, guarda relação íntima com a dignidade da pessoa humana. É através do emprego que se gera renda e, consequentemente, o movimento de toda uma estrutura, sendo tal ramo do direito responsável direto pelo combate à exclusão.
A pandemia mundial do covid-19 (coronavírus) reformulou em poucos meses toda a estrutura econômica, relacional, laboral etc. da sociedade. Tudo isso, pelo fato do espantoso crescimento nos números de afetados pela doença e os altos índices de contaminação, culminando na instauração do estado de calamidade pública no Brasil e em diversos outros países, exigindo dos governos medidas enérgicas como as ordens de distanciamento social, fechamento de comércios e flexibilização de leis trabalhistas, com especial incentivo ao home office.
Em que pesem as divergências políticas e opinativas do modo como se opera o direito do trabalho no Brasil, é fato que nos encontramos diante de um cenário mundial atípico, de modo que, as relações de trabalho foram profundamente atingidas, e, portanto, tanto os empregados quanto as empresas necessitam neste momento de amparo estatal.
Dito isto, dentro dessa nova realidade, torna-se questionável, por exemplo, a possibilidade de pagamento de adicional de insalubridade, mesmo que temporário, aos trabalhadores que laboram em serviços essenciais.
De antemão, importa salientar que a saúde no ambiente de trabalho é prerrogativa disposta não apenas no diploma celetista, mas também na própria Constituição, em seu artigo 200, inciso VIII, quando destina ao SUS (Sistema Único de Saúde) a função de colaborar na proteção do meio ambiente laboral, in verbis:
“Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”.
Logo, o adicional de insalubridade vem esculpido no texto constitucional quando tratamos do direito do trabalhador a um ambiente laboral saudável. Portanto, em um ambiente contrário a este, faz jus o empregado a uma contraprestação, chamada de adicional, já que exposto a um ambiente que compromete sua saúde ou integridade física.
No período em comento, falamos de uma pandemia sem precedentes históricos, de uma doença ainda sem expectativa de cura e com taxa de letalidade sensivelmente alta (em especial para aqueles que integram o grupo de risco), o que, por óbvio, se mostra fato gerador do direito ao adicional em questão, face ao risco de contaminação em diversos ambientes onde há circulação de pessoas e não apenas em hospitais.
Isso porque o adicional de insalubridade tem seu cerne no ambiente que traz ao trabalhador riscos à sua saúde, encontrando assim perfeita harmonia na situação atual, em relação aos trabalhadores que laboram expostos ao risco de contaminação pelo COVID-19, em especial, àqueles que trabalham com serviços essenciais para a manutenção da sociedade.
O atual texto celetista prevê o pagamento do referido adicional nas hipóteses previstas em seu artigo 192, que dispõe em seu escopo:
“Art. 192 - O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário-mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo. (Redação dada pela Lei nº 6.514, de 22.12.1977)”.
Entretanto, atualmente, não basta a referida previsão legal, pois o próprio artigo aduz que o Ministério do Trabalho definirá quais os limites de tolerância das condições de trabalho. Além disso, o referido adicional necessita de norma regulamentadora que disponha quais as atividades expõem o empregado a agentes nocivos à saúde. Por último, quando requerido em juízo, é necessária perícia por profissional especializado para quantificar o grau de insalubridade da atividade em análise.
Em que pesem os requisitos lançados pela legislação atual, o COVID-19 (coronavírus) é sabidamente contagioso, bastando, para tanto, simples exposição a gotículas de saliva, na superfície da pele, de roupas ou de objetos, de modo que a perícia se mostra inócua, restando evidente o risco da exposição.
Em função disto, o projeto de lei 830/20 proposto pelo Deputado Heitor Freire (PSL) requer a alteração do artigo 192 da CLT para que conste na nova redação a possibilidade de pagamento de adicional de insalubridade em grau máximo (40%) aos empregados que laborem em serviços essenciais, com a inserção do seguinte parágrafo único:
“Art. 192...
Parágrafo único – Em casos de decretação de estado de calamidade pública, a atuação dos profissionais da área de saúde, segurança pública, vigilância sanitária, corpo de bombeiros e limpeza urbana, no combate de epidemias enseja o pagamento de adicional de insalubridade em grau máximo. (NR)”.
Da referida proposta encontramos pontos positivos, como por exemplo a previsão do adicional para um futuro novo estado de calamidade com novas pandemias, que poderão surgir ao longo do tempo, bem como o pagamento de adicional de insalubridade de forma taxativa aos empregados que laborem nas condições descritas, eliminando a necessidade de norma regulamentadora nos casos em que a insalubridade decorra de agente sabidamente nocivo capaz de ser necessária a instauração de estado de calamidade.
Contudo, a proposta não abarca todos os profissionais realmente expostos, o que geraria, por consequência, discussão quanto àqueles empregados que trabalham para a manutenção da sociedade, a fim de que não haja danos que impliquem o convívio social em meio à um estado de calamidade decretado.
De qualquer forma, mesmo que não aprovado a tempo referido projeto, o adicional se mostra possível, tendo em vista a natureza do direito e a notoriedade da atual situação.
Não obstante, o conceito de serviços essenciais não pode ser reduzido ao proposto no referido projeto, sendo que o próprio executivo lista diversas outras atividades essenciais, por meio do decreto 10.282 de 20 de março de 2020, vejamos:
I - assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares;
II - assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade;
III - atividades de segurança pública e privada, incluídas a vigilância, a guarda e a custódia de presos;
IV - atividades de defesa nacional e de defesa civil;
V - transporte intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo;
VI - telecomunicações e internet;
VII – captação, tratamento e distribuição de água;
VIII - captação e tratamento de esgoto e lixo;
IX - geração, transmissão e distribuição de energia elétrica e de gás;
X - iluminação pública;
XI - produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, alimentos e bebidas;
XII - serviços funerários;
XIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, de equipamentos e de materiais nucleares;
XIV - vigilância e certificações sanitárias e fitossanitárias;
XV - prevenção, controle e erradicação de pragas dos vegetais e de doença dos animais;
XVI - vigilância agropecuária internacional;
XVII - controle de tráfego aéreo, aquático ou terrestre;
XVIII - compensação bancária, redes de cartões de crédito e débito, caixas bancários eletrônicos e outros serviços não presenciais de instituições financeiras;
XIX - serviços postais;
XX - transporte e entrega de cargas em geral;
XXI - serviço relacionados à tecnologia da informação e de processamento de dados (data center) para suporte de outras atividades previstas neste Decreto;
XXII - fiscalização tributária e aduaneira;
XXIII - transporte de numerário;
XXIV - fiscalização ambiental;
XXV - produção, distribuição e comercialização de combustíveis e derivados;
XXVI - monitoramento de construções e barragens que possam acarretar risco à segurança;
XXVII - levantamento e análise de dados geológicos com vistas à garantia da segurança coletiva, notadamente por meio de alerta de riscos naturais e de cheias e inundações;
XXVIII - mercado de capitais e seguros;
XXIX - cuidados com animais em cativeiro;
XXX - atividade de assessoramento em resposta às demandas que continuem em andamento e às urgentes;
XXXI - atividades médico-periciais relacionadas com o regime geral de previdência social e assistência social;
XXXII - atividades médico-periciais relacionadas com a caracterização do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial da pessoa com deficiência, por meio da integração de equipes multiprofissionais e interdisciplinares, para fins de reconhecimento de direitos previstos em lei, em especial na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência; e
XXXIII - outras prestações médico-periciais da carreira de Perito Médico Federal indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Diante da relação dessas atividades, necessário se faz a análise do caso concreto, visto que a insalubridade decorrente da exposição ao covid-19 está ligada ao serviço exclusivamente físico, e não a trabalhos que possam ocorrer de forma remota, como é o caso de algumas profissões elencadas no decreto acima mencionado.
Outrossim, o grande desafio nos próximos meses, não apenas de toda a sociedade em relação ao combate da pandemia, mas também de nós, profissionais do direito, será o de analisar e adaptar as novas possibilidades que emergirão.
Em conclusão, entende-se que o pagamento do adicional de insalubridade em grau máximo, dada a gravidade da pandemia e no atual estado de calamidade decretado, se mostra legítimo aos empregados que laboram em atividades consideradas serviços essenciais, e não apenas naquelas que se dedicam ao combate direto, sendo cabível seu pagamento, também, naqueles serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades da comunidade.