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Covid-19 e a competência dos estados e municípios para editar o complemento de normas em branco

Agenda 01/05/2020 às 12:40

Em tempos de calamidade pública, pode uma norma penal em branco ser complementada por leis, decretos ou regulamentos emanados pelo Poder Executivo estadual ou municipal?

1.O CRIME DE INFRAÇÃO DE MEDIDA SANITÁRIA PREVENTIVA

O crime de infração de medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal, ocorre quando o agente ativo viola norma sanitária específica destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa determinada.

A norma sanitária, que tem como escopo impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa, é uma determinação do poder público, mas não é descrita no tipo penal, ou seja, trata-se de uma norma penal em branco.


2. MEDIDA SANITÁRIA PREVENTIVA, UMA NORMA PENAL EM BRANCO

A definição de norma penal em branco é bem conceituada por Luiz Régis Prado[1]:

A lei ou norma penal em branco pode ser conceituada como aquela em que a descrição da conduta punível se mostra lacunosa ou incompleta, necessitando de outro dispositivo legal para sua integração ou complementação. Essa afirmação significa dizer que o preceito, hipótese legal (preceito ou prótase) é formulada de maneira genérica ou indeterminada, devendo ser preenchida colmatada ou determinada por ato outro normativo (legislativo ou administrativo) em regra, de cunho extrapenal, que fica pertencendo, para todos os efeitos, à lei penal. [...].

Foi Karl Binding quem, pela primeira vez, usou a expressão "lei em branco" para batizar aquelas leis penais que contêm a sanctio juris determinada, porém o preceito a que se liga essa consequência jurídica do crime não é formulado senão como proibição genérica, devendo ser completado por outra lei (em sentido amplo).[2]

Inicialmente, dever ser pontuado que, na norma penal em branco, o preenchimento do tipo é feito a partir de outras disposições, de modo que, para haver subsunção, subemete-se a outras disposições jurídicas (remissão interna e externa) ou atos administrativos.


3. COMPETÊNCIA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS PARA EDITAREM O COMPLEMENTO DE NORMAS EM BRANCO

No artigo “Covid-9: isolamento social e direito penal”, o Promotor de Justiça Andreas Eisele[3] defende que:

A Lei nº 13.979/2000, em seu art. 3º, § 7º, II, possibilitou aos gestores locais de saúde a adoção das medidas relacionadas nos incisos I, II e VI, do art. 3º (o isolamento, a quarentena e a restrição à circulação de pessoas), mas não a definição de outras medidas distintas daquelas. Porém, várias medidas foram implementadas em diferentes Estados e Municípios, cujo conteúdo é diferente do definido pela Lei nº 13.979/2000, e que têm uma abrangência mais restritiva.

O problema é que o art. 22, I, da Constituição Federal estabelece expressamente que: “compete privativamente à União legislar sobre Direito Penal”. Consequentemente, não é juridicamente possível a utilização de decretos estaduais e municipais para integrar uma lei penal em branco. Esta vedação constitucional garante a uniformidade do Direito Penal em todo o território nacional, e se não existisse esta reserva de competência, um mesmo fato poderia ser considerado crime em uma cidade, e não em outra. Se isto ocorresse, teríamos uma legislação penal completamente caótica no país, porque cada Estado e Município restringiu diferentes atividades, de diversas formas, e com prazos distintos.

Portanto, o eventual descumprimento de medidas sanitárias implementadas por regulamentações estaduais e municipais que não correspondam exatamente ao conteúdo especificado na Lei nº 13.979/2000, não poderá ser classificado como um fato típico nos termos do art. 268 do Código Penal.

Ao que parece, o renomado autor defende a posição de Santiago Mir Puig[4], que ensina que no Direito Alemão somente há de se falar em norma penal em branco quando houver uma hierarquia entre os órgãos legislativos do poder, in verbis:

 [...] ...serviu na Alemanha para explicar os casos em que a Lei do Império (código Penal do Reich) deixava a determinação da hipótese de fato nas mãos dos Estados Federados (Lander) ou dos Municípios. A lei penal em branco é concebida, por isso, a princípio, com “autorização” ou “delegação” por parte de um órgão legislativo superior em relação a órgãos de inferior hierarquia: a norma resultante só é válida desde o ponto de vista de Hierarquia das fontes, por força da autorização concedida pela lei penal em branco. Esta é a concepção que Binding idealizou. [...]

No Brasil, a norma penal em branco tem uma classificação, que pode ser:

a) Homogênea: A norma penal em branco será homogênea, quando a norma que vai completar o preceito primário é oriunda da mesma fonte legislativa.

Luiz Luiz Flávio Gomes e Antonio Molina[5] sustentam que a lei penal em branco homogênea pode ser homovitelínea ou heterovitelínea. Será homovitelínea quando a norma que a complementa for da mesma instância legislativa (Poder Legislativo) e estiver na mesma estrutura normativa da descrição típica (lei penal complementando lei penal: art. 304 do CP, que é complementado pelo art. 297 do mesmo CP). Será heterovitelínea quando a norma complementar for da mesma instância legislativa (Poder Legislativo) e se encontrar em estrutura normativa diversa da descrição típica (lei extrapenal complementando lei penal: art. 235 do CP, que é complementado pelo art. 1.521 e segs. do CC).

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Neste caso, para não violar a Constituição Federal, o complemento da norma penal em branco homogênea, seja homotivelina ou heterovitelínea será, como regra geral,  impreterivelmente de competência da União.

Exemplo: Artigo 3º da Lei nº 13.979/2020, in verbis:

“Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: I - isolamento; II – quarentena”.

b) Heterogênea. A norma penal em branco será heterogênea quando o complemento é oriundo de fonte diferente da que editou a norma principal.

Heleno Cláudio Fragoso[6] define a norma penal em branco heterogênea como sendo uma descrição da conduta de incriminadora do direito penal, que necessita ser complementada por outra norma já existente ou futura, mas de fonte legislativa diversa.

Portanto, admite-se que o complemento das normas penais em branco heterogêneas, podem advir de fonte diversa da União e por órgão distinto do poder legislativo, ou seja, do Poder Executivo Estadual ou Poder Executivo Municipal.


4. POSIÇÃO DA DOUTRINA BRASILEIRA

O grande Nelson Hungria[7] já nos ensinava que:

Trata-se de um caso típico de lei penal em branco: seu complemento são as eventuais determinações do poder público (mediante editais ou portarias, oficialmente publicadas para o conhecimento geral) concernentes a medidas preventivas contra a incursão ou difusão de moléstia contagiosa (isto é, transmissível por contágio). Tais medidas poderão ter, ou não, base em regulamento permanente. Poder público quer dizer, aqui, autoridade competente (federal, estadual ou municipal). O crime consuma-se com o simples fato da transgressão da medida ou determinação. Esta deve ter caráter obrigatório (quer no sentido de um facere, quer no de um omittere) e não de mero conselho ou advertência. (...)

Esse é o entendimento dominante na doutrina brasileira, ente outros doutrinadores podemos citar:

Rogério Sanches Cunha explica:

Norma penal em branco e instâncias federativas diversas: a lei penal em branco (própria ou imprópria) pode ser complementada por normas oriundas de instâncias federativas diversas (Poderes Executivo ou Legislativo Federal, Estadual ou Municipal). O art. 63 da Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), por exemplo, pune com reclusão, de 1 a 3 anos, e multa, “alterar aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico ou artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida”. Nestes casos, a lei ou ato administrativo criado para proteger a edificação pode ser municipal. Eis, portanto, típico caso de norma penal em branco complementada por norma não federal. É preciso, no entanto, que se atente para o fato de que a iniciativa dessas instâncias federativas no complemento das normas penais em branco deve ser restrita, sob pena de se caracterizar generalizada delegação de competência legislativa privativa da União, expediente vedado pela Constituição Federal. A este respeito, alertam Zaffaroni e Pierangeli:

“O Poder que complementa a lei em branco deve ter o cuidado de respeitar a natureza das coisas porque, do contrário, através de tal recurso pode ser mascarada uma delegação de competências legislativas penais. Assim, por exemplo, o executivo não pode incluir o café na lista de substâncias entorpecentes, como tampouco incluir o vinho. Nem mesmo poderia incluir um rifle de ar comprimido entre as armas de guerra”. [8]

Nucci[9]: “Quando se tratar de normas penais em branco heterogêneas, frise-se que “se utilizam de fontes formais heterogêneas, porque o órgão legiferante é diverso. Como exemplo ilustrativo podemos indicar o crime contra a economia popular, referente à transgressão da tabela de preços, que é fixada por órgão do Poder Executivo, através de regulamento federal, leis ou regulamentos estaduais ou municipais, tem como complemento da lei penal em branco um complemento de diferente fonte normativa”.

Cleber Masson[10]: “É a determinação do poder público. O “poder público” que baixa a determinação pode ser qualquer autoridade (federal, estadual, distrital ou municipal) competente para o ato, a qual deve constar do rol de suas atribuições legais. Cuida-se, portanto, de lei penal em branco, pois seu preceito primário depende de complementação, a qual pode ser veiculada por outra lei (lei penal em branco homogênea ou lato sensu) ou por algum ato administrativo (lei penal em branco heterogênea ou stricto sensu)”.


5. UMA CONCLUSÃO NECESSÁRIA

Os Estados e Municípios têm competência para editarem o complemento de normas em branco heterogêneas, notadamente quando a competência é concorrente, na exata forma do artigo 23, inciso II, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 23.  É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

Nesse contexto, a norma penal em branco heterogênea não viola nem o princípio da legalidade, e nem o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, uma vez que a lei em si já reúne todos os seus elementos fundamentais para sua criação do tipo penal. Destarte, a lei federal já elenca os elementos configuradores da tipicidade formal, e apenas deixa para o seu complemento fonte legislativa diversa.

O exemplo são os Decretos-Leis estaduais e atos editados pelos Municípios, dispondo sobre as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (covid-19).                                               


Notas

[1] PRADO, L. R. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte geral. V.1. São Paulo: RT, 2010.

[2] Vide sobre o assunto: SOLER, Derecho Penal argentino, Buenos Aires, TEA, 1976, I:122.

[3] https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/04/23/covid-19-isolamento-social-e-direito-penal/

[4] MIR PUIG, S. Derecho Penal. Parte General. 7. ed. Barcelona: editorial Reppertor, 2004.

[5] Direito Penal – Parte Geral, Vol. 2, p. 50.

[6] FRAGOSO, H. C. Lições de Direito Penal (parte geral). 16.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

[7] Comentários ao Código Penal, cit.,p.102-103.

[8] Ob. cit., p. 452.

[9] Nesse sentido: Nucci, Guilherme de Souza, editora RT, 2. ed., 2002.

[10] MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 a 212) – Volume 2. 12ª edição. São Paulo: Editora Método, 2019, p.11.

Sobre o autor
Francisco Dirceu Barros

Procurador Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral durante 18 anos, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, ex-Professor universitário, Professor da EJE (Escola Judiciária Eleitoral) no curso de pós-graduação em Direito Eleitoral, Professor de dois cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, com vasta experiência em cursos preparatórios aos concursos do Ministério Público e Magistratura, lecionando as disciplinas de Direito Eleitoral, Direito Penal, Processo Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional. Ex-comentarista da Rádio Justiça – STF, Colunista da Revista Prática Consulex, seção “Casos Práticos”. Colunista do Bloq AD (Atualidades do Direito). Membro do CNPG (Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público). Colaborador da Revista Jurídica Jus Navigandi. Colaborador da Revista Jurídica Jus Brasil. Colaborador da Revista Síntese de Penal e Processo Penal. Autor de diversos artigos em revistas especializadas. Escritor com 70 (setenta) livros lançados, entre eles: Direito Eleitoral, 14ª edição, Editora Método. Direito Penal - Parte Geral, prefácio: Fernando da Costa Tourinho Filho. Direito Penal – Parte Especial, prefácios de José Henrique Pierangeli, Rogério Greco e Júlio Fabbrini Mirabete. Direito Penal Interpretado pelo STF/STJ, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Recursos Eleitorais, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Direito Eleitoral Criminal, 1ª Edição, Tomos I e II. Editora Juruá, Manual do Júri-Teoria e Prática, 4ª Edição, Editora JH Mizuno. Manual de Prática Eleitoral, Editora JH Mizuno, Tratado Doutrinário de Direito Penal, Editora JH Mizuno. Participou da coordenação do livro “Acordo de Não Persecução Penal”, editora Juspodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Francisco Dirceu. Covid-19 e a competência dos estados e municípios para editar o complemento de normas em branco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6148, 1 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81578. Acesso em: 27 dez. 2024.

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