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Autonomia do médico e protocolos de tratamento da covid-19

Todos os dias novas pesquisas relacionadas ao tratamento da covid-19 são divulgadas pela comunidade científica, mas nada definitivo. O que os médicos da linha de frente podem fazer e quais seus limites de atuação?

O desconhecido é um dos maiores geradores de medo no ser humano e é exatamente isso que o coronavírus era quando a pandemia iniciou: desconhecido. Apesar de existirem outros vírus da mesma família, essa mutação, extremamente contagiosa, afetou milhares de pessoas rapidamente, gerando mortes e caos nos sistemas de saúde do mundo todo.

Obviamente, assim que uma doença nova é descoberta, é iniciado o processo de pesquisas para a sua cura, mas, considerando a rapidez no avanço da COVID-19, esses estudos e pesquisas estão sendo realizados concomitantemente às novas contaminações. Esse fato gera mais urgência no que tange à descoberta de tratamentos eficazes, o que faz com que os resultados das pesquisas sejam divulgados assim que possível, muitas vezes sem a quantidade de testes que necessariamente são realizados em se tratando de doenças habituais.

Todos os dias novas pesquisas relacionadas ao tratamento do coronavírus são divulgadas pela comunidade médica científica. O que parecia, em um primeiro momento, ser a solução da doença, agora, meses após a primeira contaminação, à medida que os resultados de longo prazo vão surgindo, parece não ser a melhor opção.

Essa instabilidade e o grande número de pesquisas gera inquietude dos médicos que estão na linha de frente do combate ao vírus. As possibilidades de tratamento são variadas, nenhuma com comprovação de 100% de efetividade, e o Ministério da Saúde, alguns estabelecimentos de saúde e outros órgãos estatais, acabam estabelecendo diretrizes para tratamento da doença, recomendando protocolos e medicamentos.

A dúvida que surge para o médico é: se não me sinto confortável com o uso/adoção de determinado medicamento/protocolo para tratamento da doença, após estudo das evidências cientificas sobre eles, mas há determinação da instituição que trabalho ou do MS para tratamento nesse sentido, sou obrigado a obedecer?

E ainda: se decido utilizar um medicamento ou adotar um protocolo que, em razão da novidade/escassez de testes, ainda apresenta muitos riscos conhecidos ou até mesmo desconhecidos pela comunidade médica, posso ser responsabilizado em caso de dano ao paciente?

Em primeiro lugar, essencial lembrar que o médico não é obrigado a obedecer a nenhum protocolo de tratamento dos seus pacientes, mesmo que recomendados pelo Ministério da Saúde, uma vez que não pode ser limitado nas suas escolhas em relação aos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para estabelecer um diagnóstico ou executar o tratamento, salvo quando em benefício do paciente (Capítulo I, item XVI, do CEM).

Ainda, é direito do médico indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente (Capítulo II, item II, do CEM).

Por outro lado, é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente (Art. 32 do CEM). A

A autonomia do paciente também não pode ser olvidada, uma vez que sua vontade deve ser respeitada no tratamento, desde que adequada ao caso e cientificamente reconhecida (Capítulo I, item XXI e art. 24 do CEM).

Temos também o dever de informação na soma de fatores a serem considerados. É dever do profissional obter consentimento do paciente ou do seu representante legal sobre o procedimento a ser realizado, salvo quando há risco iminente de morte. Ainda, é vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante (Arts. 22 e 34 do CEM).

Nesse sentido foi o Parecer nº 4/2020, do CFM, que discorreu sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina, em condições excepcionais, para o tratamento da COVID-19. No documento, o Conselho deixou claro que a decisão sobre o uso dos medicamentos fica a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo  ele  obrigado  a relatar ao doente que não existe, até o momento, nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID 19, explicando os efeitos colaterais  possíveis, e obtendo  o  consentimento  livre  e  esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso.

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Ressaltou, ainda, que: “O princípio que deve obrigatoriamente nortear o tratamento do paciente portador da  COVID-19  deve  se  basear  na  autonomia  do  médico  e  na  valorização  da relação médico-paciente, sendo esta a mais próxima possível, com o objetivo de oferecer ao doente o melhor tratamento médico disponível no momento.”

Por fim, isentou o profissional de responsabilidade ética quando utilizar os medicamentos na forma indicada pelo CFM – a isenção aqui foi de responsabilidade ética e não civil, administrativa ou penal.

O paciente que for lesionado continua tendo direito de ação contra o médico e, a depender da análise do caso concreto pelo judiciário, pode haver responsabilização com estabelecimento de indenização. As chances de processos, entretanto, diminuem consideravelmente quando a relação médico-paciente é pautada pela informação e quando o passo-a-passo para a tomada de decisão do médico é pautado por evidências científicas e por documentação adequada (registros completos em prontuários e termos de consentimento informado, assinados após devidamente explicados ao paciente).

Entendemos, portanto, que os protocolos de tratamento do coronavírus são recomendações – e não imposições - aos médicos, baseados em estudos científicos que estão sendo realizados diariamente ao redor do mundo. O médico não pode ser obrigado a adotar o tratamento X ou Y, sendo, porém, o seu dever informar ao paciente os motivos pela adoção de um determinado tratamento, bem como os riscos envolvidos e, excetuado nos casos de urgência/emergência, utilizar-se de termo de consentimento informado.

Por fim, quando o paciente revela sua opção por um determinado tratamento, o médico deve, sempre que possível e adequado ao caso concreto, assegurar que a sua vontade será respeitada por ele ou por profissional substituto, nos casos de objeção de consciência.

Humanização e respeito à autonomia do médico e do paciente – cada uma com seus limites, informação detalhada e registrada, bem como atualização científica do profissional - são os pilares de uma relação médico-paciente de sucesso, seja dentro ou fora do contexto atual de pandemia. Os riscos para o médico, quando esses princípios são observados, não desaparecem, mas também não assombram.

Sobre as autoras
Ana Beatriz Nieto Martins

Advogada (OAB/SP 356.287), sócia no escritório Dantas & Martins Advogadas Associadas, voltado o atendimento de profissionais da saúde, realizando diagnóstico de riscos jurídicos e elaborando condutas preventivas que permitam uma atuação segura e tranquila.

Erika Evangelista Dantas

Advogada (OAB/SP 434.502), sócia do escritório de advocacia Dantas & Martins Advogadas Associadas, especializado em direito da saúde.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Ana Beatriz Nieto; DANTAS, Erika Evangelista. Autonomia do médico e protocolos de tratamento da covid-19. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6222, 14 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83719. Acesso em: 22 dez. 2024.

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