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O Ministério Público não pode ficar afastado de acordos de leniência

Agenda 05/08/2020 às 09:00

A quem interessa esvaziar as garantias institucionais conferidas pela Constituição Federal de 1988 ao Ministério Público?

Leniência é brandura, suavidade, mansidão. O acordo de leniência é o ajuste que permite ao infrator participar da investigação, com o objetivo de prevenir ou reparar dano de interesse coletivo.

A leniência surge no direito brasileiro no campo concorrencial, especialmente no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), no qual assume uma feição híbrida, uma vez que é destinada ao afastamento de sanções penais e administrativas àqueles que colaborarem com o Conselho.

O acordo de leniência é previsto na Lei nº 12.846/2013 (também denominada de Lei Anticorrupção (LAC).

Objetiva o acordo de leniência a extinção da ação punitiva da administração pública ou redução de penalidade que seria imposta.

No Brasil, a ineficácia dos instrumentos de combate aos atos de concentração de mercado fez com que as autoridades antitrustes vissem, nesse instituto, um caminho para a ampliação dos seus poderes de investigação, através do incentivo aos agentes econômicos para que forneçam provas que ajudem a condenar todos os demais membros dos cartéis e acabar com os efeitos nocivos sobre a economia popular.

Em decorrência desses efeitos práticos, surgiram 3 posições a respeito da aplicabilidade do acordo de leniência.

A primeira posição entende que a norma atribuiria à SDE (Secretaria de Desenvolvimento Econômico) a faculdade de firmar o programa de leniência, e este acordo, na esfera administrativa, impede que o Ministério Público ingresse com a ação criminal.

A segunda posição nega total aplicabilidade das regras do acordo de leniência na esfera penal e tem como fundamento o Princípio da Indisponibilidade da Ação Penal Pública.

A terceira posição entende que o consentimento do Ministério Público é imprescindível para a realização do Acordo e para decretação da extinção da punibilidade. Neste sentido, embora a lei 8884/94 não seja expressa a respeito da extinção da punibilidade, ao realizarmos uma interpretação teleológica, poderemos concluir que a concordância do Ministério Público para o Acordo de Leniência dá o necessário suporte a sua aplicação. Isso porque os crimes contra a ordem econômica são de ação pública incondicionada e só o Ministério Público, como titular da ação penal, poderá, nos casos previstos pela lei, dispor ou restringir a sua aplicação. É a importação, para o sistema brasileiro, do princípio da oportunidade e da plea bargain dos E.U.A.

Essa é a melhor resposta por estar devidamente fundamentada na Constituição de 1988.

Exemplo das divergências entre os órgãos envolvidos pode ser encontrada, por exemplo, posicionamento do STF sobre envio de dados ao TCU sobre acordo de leniência.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar no Mandado de Segurança (MS) 34031, suspendendo a determinação de encaminhamento ao Tribunal de Contas da União (TCU) das informações sobre os acordos de leniência em trâmite na Controladoria Geral da União (CGU).O relator apontou que o artigo 16, parágrafo 14, da Lei 12.846/2013, incluído pela Medida Provisória (MP) 703/2015, dispõe que o envio do acordo de leniência para o TCU somente deve ser efetuado após ele ser assinado. Anotou ainda que estão presentes os requisitos para a concessão da liminar, pois o prazo para que a CGU encaminhasse as informações se encerrava no dia 22 de fevereiro de 2016.

“Nesse caso, há pretenso conflito de atribuições entre órgãos de controle interno (CGU) e externo (TCU), de densa relevância constitucional que merece maior reflexão por esta Corte”, afirmou o ministro Gilmar Mendes, destacando que sua decisão pode ser reavaliada ao longo do trâmite do MS.

No mandado de segurança impetrado no STF, a Controladoria Geral da União alega que o sigilo previsto no parágrafo 6° do artigo 16 da Lei 12.846/2013 é imperativo e temporário, impedindo a CGU, até a celebração de um acordo de leniência, de fornecer cópia de documentos ou de informações referentes às tratativas, de maneira a não prejudicar as investigações e o processo administrativo.

O dispositivo estabelece que a proposta de acordo de leniência somente se tornará pública após a efetivação do respectivo acordo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo.

“Esclarece-se que o processo de negociação do acordo de leniência, em todo o mundo, é um processo tipicamente de negociação. A empresa poderá ser condenada pela Administração Pública a várias sanções. Para pleitear a atenuação ou isenção de tais sanções, a empresa avalia se lhe será mais vantajoso colaborar com as investigações e sofrer uma reprimenda menor. Sem a proteção do sigilo, a empresa não se sentirá incentivada em colaborar com as investigações, em buscar o acordo de leniência, tomando a lei letra morta e reduzindo a capacidade investigativa do Estado”, argumenta.

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O Ministério Público deve participar do acordo de leniência, para que o seu cumprimento resulte em renúncia da ação penal. 

O princípio da obrigatoriedade da ação penal - assim como na Lei 9.099/95, em espaço infraconstitucional - deve ser mitigado a exemplo dos eficazes institutos do plea bargain norte-americano e do pattegiamento italiano.

O acordo de leniência celebrado com a participação da Advocacia Pública e do Ministério Público impede o ajuizamento ou o prosseguimento da ação já ajuizada contra a pessoa jurídica.

Lembre-se, por certo, nesse cenário, que existem pessoas jurídicas que são verdadeiros instrumentos de organização criminosa, no sentido de ocultar ativos e dissimular interesses daquela que, embora transitoriamente, serviu a propósitos obscuros ou ilícitos de seus dirigentes.

Pelo acordo de leniência, as sanções previstas na LIA podem ser afastadas, como é o caso da vedação à transação prevista no artigo 17,§ 1º, da Lei nº 8.429/92.

Pois bem.

Surge notícia veiculada pelo O Globo que abaixo reproduzo e que trago à colação:

“O governo federal e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, finalizam uma proposta para regulamentar a negociação de acordos de leniência, que funcionam como delações premiadas de empresas. A minuta do projeto, à qual O GLOBO teve acesso, retira o Ministério Público Federal (MPF) das negociações e concentra poderes na Controladoria-Geral da União (CGU) e na Advocacia-Geral da União (AGU), órgãos subordinados ao presidente Jair Bolsonaro.

A proposta abre brecha para esvaziar os poderes do MPF em investigações contra empresas. Os grandes acordos de leniência da Operação Lava-Jato, com companhias como o Grupo J&F e a Odebrecht, foram conduzidos inicialmente por procuradores do Ministério Público, para só depois terem a adesão de órgãos como a CGU. Na longa negociação com o MPF, a J&F ofereceu inicialmente R$ 700 milhões, mas, no final, aceitou pagar R$ 10,3 bilhões de ressarcimento.”

Ainda pela proposta, os acordos poderiam passar a ser assinados mesmo sem a manifestação do Tribunal de Contas da União (TCU). Com a intenção de evitar que o tribunal trave um acordo, o projeto estabelece que o órgão se manifeste em 90 dias. Caso não responda, AGU e CGU poderão assinar o documento.

O Tribunal de Contas da União seria transformado, assim, em verdadeiro órgão de cálculo.

A proposta é deveras preocupante.

Coloca nas mãos de entidades governamentais que são orientadas por governos e que estão sujeitas a contaminação de suas ideias.

Pior do que isso: retira o Ministério Público, titular da ação penal pública, de um eventual acordo de leniência. Politiza a solução desses acordos e, pior do que isso, o retira da persecução penal onde ela deve ser tratada, violando a Constituição, em particular o artigo 129, I, da Constituição Federal.

O Ministério Público deve atuar sob o pilar da autonomia funcional, da não subordinação a “governos da hora”, agindo em defesa da sociedade, tendo uma atribuição que AGU e CGU não têm: ser titular da ação penal pública, repito.

A ideia do governo é criar um “balcão único” na negociação de acordos de leniência. Mas isso é preocupante, pois não se sabe que critérios de conveniência poderão ser utilizados no bojo de seus interesses.

Trata-se, pois, de grave matéria em discussão que deve merecer o devido amadurecimento.

Afinal, a quem interessa esvaziar o Ministério Público titular de garantias institucionais que lhe são conferidas pela Constituição Federal de 1988?

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O Ministério Público não pode ficar afastado de acordos de leniência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6244, 5 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84415. Acesso em: 22 dez. 2024.

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