O Panóptico não é uma prisão. É um princípio geral de construção, o dispositivo polivalente da vigilância, a máquina óptica universal das concentrações humanas[1]
O pensador utilitarista Jeremy Bentham idealizou – em várias cartas e dois pós-escritos [no final do século XVIII] – aquilo que denominou de plano para a construção de casa de inspeção penitenciária[2]. Basicamente, trata-se de edifício circular com várias celas, sendo que no centro se encontra a torre de controle. Em tal torre permanece o “inspetor”, que tudo vê, mas jamais é visto.
Nas celas (ou apartamentos) ficam aqueles que deverão ser controlados, inspecionados, monitorados o tempo todo, e, quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado[3]. Mas inexiste a necessidade de vigilância constante do inspetor, porquanto há, inexoravelmente, a submissão voluntária do preso, mesmo que seu “fiscal” esteja ausente da torre.
Noutros termos, a arquitetura do edifício foi de tal modo planejada por Bentham que existe a aparente onipresença do inspetor, que tudo vê, tudo sente, tudo monitora. Os presos se sentem vigiados, controlados em seus passos, mesmo que, de fato, nem sempre ocorra tal vigilância por parte do inspetor. Ou, como diz Bentham, as pessoas a serem inspecionadas devam sempre sentir-se como se estivessem sob inspeção ou, pelo menos, como tendo uma grande possibilidade de estarem sob inspeção[4].
No século XXI, o panóptico se traduz nas câmeras de vídeo instaladas em lojas - quase sempre com a indisfarçável placa na parede: Sorria! Você está sendo filmado[5] - ruas, estabelecimentos bancários, elevadores, e assim por diante. É difícil encontrar lugar que não seja monitorado diariamente, quer pelas máquinas governamentais, quer pelas máquinas do homem comum. Nos dizeres de Michel Foucault, o panóptico tem um efeito importante: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação[6].
A sociedade pós-moderna, em decorrência do avanço tecnológico, da era virtual, do distanciamento físico em tempos de crise sanitária, se tornou uma sociedade de vigilância[7]. Os sites de vídeos, as redes sociais de relacionamentos [qualquer um pode ter seu perfil na internet, atualizar informações e ainda ter “seguidores”, como se fosse verdadeiras “estrelas”] e os potentes aparelhos celulares, estão aí para dar a prova de que o virtual, a era digital, chegou para ficar. A própria sociedade dita organizada monitora seus passos, pois, é sociedade ávida de informação e holofote. Por outro lado, paradoxalmente, aprecia ser monitorada diuturnamente.
De fato, não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens, como bem esclarece Foucault[8]. O controle, por assim dizer, é diário, constante, indefectível. Por outro lado, a [ampla] visibilidade, não raro, é necessária, primordial, na justa medida em que a sociedade aprecia mostrar o novo, ou o que é pretensamente novo. O se deixar ver instiga, dá força, inspira a era do espetáculo, tão bem retratado por Guy Debord.
As atenções voltadas para o novo, buscam-se informações; os olhos sempre abertos dão o toque especial para que o controle social seja cada vez mais efetivo e permanente. Aprecia-se isso. E os “seguidores” das “estrelas” que o digam, na medida em que tudo sabem em tempo real. A mundialização do capital propiciou [também] tal auditório, que, sorridente, a tudo aplaude. É este mesmo auditório que passa suas informações nas redes sociais e nas de controle, sem solicitação.
Entrementes, não é somente a sociedade que ostenta o poder de monitoração, de disciplina, de controle sobre os indivíduos. O Estado [com sua onipresença e onipotência quase divina], muito mais que a sociedade, monitora os cidadãos. O controle é exercido sobre a mente do indivíduo. Esse mesmo Estado, que detém autoridade constituída para tal, olvida [não raro] dos direitos fundamentais constitucionais e às vezes extrapola seus poderes de vigilância e disciplina.
Aliás, esclarece o mesmo Foucault que numa sociedade em que os elementos principais não são mais a comunidade e a vida pública, mas os indivíduos privados por um lado, e o Estado por outro, as relações só podem ser reguladas numa forma exatamente inversa ao espetáculo: no tempo moderno, estava reservado à influência sempre crescente do Estado, à sua intervenção cada dia mais profunda em todos os detalhes e relações da vida social, aumentar e aperfeiçoar as garantias estatais, utilizando e dirigindo para essa grande finalidade a construção e a distribuição de edifícios destinados a vigiar ao mesmo tempo uma grande multidão de homens[9]. Nos tempos atuais, a própria sociedade se monitora e tudo vira espetáculo.
Pode-se dizer, então, que o panoptismo se faz bem presente no século XXI, o século da pós-modernidade e do controle, o século abstruso; o século das superficialidades mundanas, diria o humanista Michel de Montaigne.
Notas
[1] Miller, Jacques-Alain. A máquina panóptica de Jeremy Bentham, in: BENTHAM, Jeremy. O panóptico. São Paulo:Autêntica Editora, 2000, p. 89.
[2] A “casa de inspeção” é aplicável a outros estabelecimentos nos quais exista a necessidade de controle das pessoas (escolas, hospícios, hospitais, e assim por diante).
[3] Op. cit., p. 20. Todos os detalhes da construção se encontram na citada obra.
[4] Op. cit., p. 29.
[5] O cidadão tem certeza de que realmente está sendo monitorado.
[6] Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 31ª edição, 2006, p. 166.
[7] Op. cit., p. 178.
[8] Idem, p. 179.
[9] Op. cit., p. 178.