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Comissões parlamentares de inquérito:

a estrutura deficitária e o peso da verdade nas intervenções do Supremo Tribunal Federal

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Agenda 02/07/2006 às 00:00

3 PROCEDIMENTO INQUISITORIAL

Outra contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la. Como se o homem pudesse jurar de boa-fé que vai contribuir com sua própria destruição.

Cesare Beccaria

3.1 A pressão do inquérito e o direito ao silêncio

A frágil lei que regulamenta os procedimentos das Comissões Parlamentares de Inquérito silencia no que tange à duração dos depoimentos, tal lacuna resulta em várias horas de inquérito que chegam, às vezes, a percorrer boa parte da madrugada. Deve-se ressaltar a busca pela verdade real que deve motivar os trabalhos inquisitoriais, visto que poderá servir de base em futuro processo penal.

No artigo "A tradição inquisitorial", Kant de Lima (1989, p. 68) traça um paralelo inicial entre a common law americana e o procedimento romano-canônico adotado pelo Brasil. Na primeira vige o sistema acusatório onde os atos praticados são públicos para que o acusado possa defender-se com maior amplitude, vez que tem conhecimento de todos os dados que circundam a situação; o Estado visa tutelar o interesse deste indivíduo. A segunda corrente, por sua vez, encontra suporte no chamado sistema inquisitorial, onde a averiguação dos fatos deve ser efetuada de forma sigilosa a fim de evitar exposição do indiciado e retaliações ao denunciante.

Apesar do código de processo penal pátrio adotar o sistema acusatório, este pode ser precedido por medida extrajudicial de cunho inquisitorial realizado pela polícia. O autor observa (1989, p. 73) a difícil relação entre policiais e sociedade, uma vez que os primeiros, exercendo suas funções de vigilância e investigação na prevenção e punição de atos que julgar infracionais, provocam na sociedade – principalmente a menos favorecida – sentimento de desconfiança e conseqüente não-colaboração. Em face deste óbice e convictos do julgamento de quem lida diariamente com o crime, a polícia utiliza meios, legais ou não, para que o indiciado confesse autoria ou participação nos fatos investigados. Entendimento pacífico tanto na doutrina quanto na jurisprudência de que confissão obtida por meios ilegais deve ser desconsiderada. Em sendo assim, valendo-se de código de ética interno da polícia (1989, p. 78), seus membros deparam-se constantemente com a absolvição de pessoas que acreditam serem culpadas, taxando o Poder Judiciário de incompetente.

Diante do exposto, torna-se possível comparar o sentimento policial traçado por Kant de Lima com os trabalhos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Os inquisidores do legislativo estão habituados com os mais diversos tipos de corrupção, não é à toa que o próprio Partido dos Trabalhadores afirmou ser usual a prática de caixa-dois em campanhas eleitorais, o problema é executar o papel da polícia dentro do seu próprio meio.

Observamos durante acompanhamento de inúmeros depoimentos em sessões abertas das Comissões Parlamentares de Inquérito os mais diversos tipos de constrangimento aos quais são submetidos depoentes e testemunhas. Desde ameaça de utilização de polígrafos, informações falsas como anunciar a possível presença de alguém que certamente constrangeria o depoente, dentre outras.

Dentre as fases de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, temos que a mais marcante é a formação de conjunto probatório suficiente para que o Ministério Público futuramente ofereça denúncia. Nesta parte destacamos o inquérito em si, as acareações, depoimentos e declarações realizadas naquele âmbito, capazes de exaltar alguns e derrubar outros.

No afã de obter respostas a qualquer custo, observamos indiciados serem submetidos a prestar longas declarações que, muitas vezes, chegam a adentrar a madrugada. A pressão exercida sobre um indiciado, por vezes, não objetiva a busca pela verdade real, mas consiste em verdadeira armadilha para provocar contradição e, obviamente, causar constrangimento, procedimentos não recepcionados pelo direito brasileiro.

Em novo paralelo com o texto de Kant de Lima citado anteriormente, analisamos apontamento feito pela matéria "A técnica do stress e os métodos ilícitos", publicada na revista Consulex de 15/10/2005, de que é corriqueiro entre deputados e senadores vangloriar-se das longas sessões, de horas a fio de declarações sob intensa pressão aonde certo parlamentar chegou a evocar sua experiência policial colocando tais métodos de coerção ou coação psicológica como mérito dos trabalhos. Resta evidenciado o fato de que a tradição inquisitorial e o sentimento policial tornam-se parte do indivíduo até mesmo quando este deixa a corporação.

A reconhecida teoria de Feuerbach, pai do direito penal moderno, dispõe que as pessoas não deveriam cometer crime algum em virtude da coação psicológica exercida pela pena em abstrato e, se essa coação psicológica não for suficiente e o indivíduo vier a delinqüir, então, o Estado exerce coação física através da pena em concreto. Considerando que os interrogatórios constituem, na prática, procedimento intimidatório na grande maioria dos casos, temos que o interrogado é coagido psicologicamente pela sanção em abstrato que pode sofrer e concretamente com a perda de mandato ou outra punição concreta.

Apesar das práticas policiais e seus reflexos nos procedimentos inquisitórias numa Comissão Parlamentar de Inquérito, tem-se consagrado na constituição brasileira o direito a permanecer em silêncio e a impossibilidade de interpretação desfavorável ao acusado que se vale de tal prerrogativa (MORAES, 2001, p. 10). A amplitude do direito ao silêncio foi reforçada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, vejamos trecho da ementa do HC 68.929/SP, de relatoria do Ministro Celso de Mello, publicado no DJ do dia 28/08/1992, p. 512:

Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. "Nemo tenetur se detegere" (ninguém está obrigado a descobrir-se). Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal.

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Apesar da utilização do termo preso na constituição,temos que o sentido técnico não se aplica perfeitamente, haja vista todo acusado ou futuro acusado que possa ser processado ou punido em razão de suas declarações também assiste ao direito de permanecer calado (MORAES, 2001, p. 12).

Desta forma, conclui Alexandre de Moraes (2001, p. 14):

A conduta das Comissões Parlamentares de Inquérito deve, portanto, equilibrar os interesses investigatórios, certamente de grande interesse público, com as garantias constitucionalmente consagradas, preservando a segurança jurídica e utilizando-se dos meios jurídicos mais razoáveis e práticos em busca de resultados satisfatórios garantindo a plena efetividade da justiça, sob pena de desviar-se de sua finalidade constitucional.

Haddad leciona que o princípio contra a auto-incriminação consiste em impulso natural de que tenta preservar sua liberdade e livrar-se de eventual acusação que pese contra si (2005, p.177). Considerando que o réu, no processo penal, não tem o compromisso com a verdade, portanto, a mesma lógica estende-se ao declarante numa Comissão Parlamentar de Inquérito.

Desta feita, devemos analisar o direito de mentir citado por Haddad. O autor aponta (2005, p. 178) que:

Se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, estabeleceu-se o princípio de que tudo que não for proibido é permitido, ou seja, em não sendo vedado ao acusado prestar declarações mendazes, atribui-se-lhe o direito de falsear a verdade.

Entretanto, entende que mentir não é direito apenas por sua atipicidade, mas por não ser humano exigir que alguém se acuse e a justificativa para a impunidade da mentira não estaria restrita apenas à proteção expressa pelo princípio contra a auto-incriminação, mas também por não haver prescrição proibitiva (2005, p.179).

Haddad assinala, ainda, que o texto constitucional preza pela finalidade ética de seu conteúdo, não podendo, portanto, acobertar violações ou proteger abusos interpretativos como a ilação de que permanecer calado abrange o suposto direito a mentir. Assim, conclui o autor (2005, p. 180):

O princípio nemo tenetur se detegere permite ao acusado não contribuir para a reconstrução dos fatos, ao autorizar-lhe optar por omitir-se na produção da prova, mas não tolera comportamentos ativos para obstar o esclarecimento da verdade, a exemplo da dicção da mentira. Ele não é tão abrangente a ponto de autorizar condutas destinadas a induzir a erro as autoridades policial e judiciária. O direito de defesa não compreende o direito de provocar lesões em interesses de terceiros, sob o risco de se conceder salvo-conduto para delinqüir.

Conforme visto anteriormente, os indiciados numa Comissão Parlamentar de Inquérito, por terem interesse direto nas investigações e suas conclusões, não prestam compromisso em seu depoimento. Contudo, os apontamentos de Haddad deixam claro que isso, somado ao princípio da auto-incriminação, não lhes dá o direito a mentir. A problemática está na ausência de expressa proibição, ou até mesmo punição, para coibir tal prática.

A premissa de que veracidade não pertence ao limitado rol das virtudes políticas coloca a mentira ou arcana imperii (mistérios do governo) segundo Hannah Arendt (1973, p. 14) como instrumento legítimo para atingir metas políticas. Em sendo assim, a ação é considerada a substância da política, baseada na liberdade humana de reformar o mundo pela fonte da imaginação. Apesar do texto referir-se à política externa estadunidense, é simples aplicar sua teoria na atual política interna brasileira, onde a substância essencial no debate das Comissões Parlamentares de Inquérito é a palavra, veraz ou não.

Segundo Arendt (1973, p. 16), a mentira deliberada tem por objeto a contingência dos fatos, ou seja, invocando a teoria aristotélica da particularidade expressada na obra "Metafísica", onde a mutabilidade faz com que o objeto, no caso os fatos, possam "não ser", "ser outra coisa" ou "deixar de ser". Desta forma, a autora nos apresenta a facilidade com que a mentira se torna plausível. Primeiro porque o mentiroso sabe o que seu ouvinte anseia e segundo porque a realidade é, às vezes, inacreditavelmente surpreendente, por mais paradoxal que possa parecer.

O texto nos apresenta duas vertentes de elaboração da mentira e trabalha com ambos durante toda a argumentação. Considerando a premissa psicológica da manipulabilidade do ser humano, temos o que a autora chama de "Relações Públicas", responsáveis, grosso modo, pela propaganda originada nas sociedades de consumo. Padecem na dificuldade de vender pareceres políticos, vez que dependem da disposição da sociedade para comprar algo intangível em razão da ausência de limites à imaginação, da realidade cotidiana e, por fim, do poder político de criar. Ressalte-se que, pelo elevado número de assessores para filtrar informações e interpretar o mundo, o presidente dos Estados Unidos é, provavelmente, o maior alvo de manipulação segundo os moldes anteriormente resumidos.

A outra vertente é comandada pelos resolvedores de problemas profissionais, ou seja, seleto grupo de civis – ou militares no caso americano da guerra do Vietnã - suficientemente preparados para dissolver óbices políticos. Sem interesse na comprovação de suas hipóteses, reduziam tudo que lhes fosse apresentado em fórmulas e linguagens pseudo-matemáticas de forma a ajustar a realidade às teorias elaboradas e, assim, livrando-se da contingência factual. (ARENDT, 1973, p. 20)

O texto de Arendt refere-se aos Documentos do Pentágono, relativos à política americana durante a guerra do Vietnã. Valer-se da mentira para o governo americano não tinha o inimigo como alvo, mas o objetivo de enganar o Congresso e promover a si próprio. Os Estados Unidos emergiram como maior potência após a segunda guerra mundial, tinham, portanto, reputação a defender frente ao sentimento de onipotência. É fácil comparar o governo brasileiro atual à situação americana exposta no texto analisado, que emergiu como potência ética após sucessivos escândalos de corrupção que o precederam e defende esta característica como ponto a favor quando seus homens são investigados.

Os efeitos da derrota – no caso brasileiro, o desmoronamento de uma imagem ética histórica - eram analisados a partir da construção de imagem como política global, pouco importava o bem-estar do povo. Assim, questões militares eram solucionadas pelo ponto de vista político no que tange à eleição presidencial e a imagem norte-americana no mundo. Os Documentos do Pentágono revelaram a não-relação entre os fatos e as decisões tomadas e as manobras realizadas pelos "resolvedores de problemas" para criar sempre novas teorias de ajuste para gerar plausibilidade.

Acompanhamos o governo brasileiro se atrapalhar com as inúmeras denúncias e investigações que o envolviam e derrubaram, aos poucos, seus pilares políticos como José Dirceu e Antônio Palocci. No texto de Arendt encontramos justificativa para estes acontecimentos:

Se os mistérios do governo obscureceram a tal ponto as mentes dos protagonistas que eles já não conhecem ou não mais se lembram da verdade por detrás de seus segredos e mentiras, toda a operação de embuste por melhor organizadas que sejam suas "campanhas-maratonas de informação", como disse Dean Rusk, e por mais sofisticadas que sejam suas caríssimas maquinações – cairá por terra ou tornar-se-á contraproducente, isto é, confundirá o povo sem convencê-lo. O problema com a mentira e o engodo é que só são eficientes se o mentiroso e o impostor têm uma clara idéia da verdade que estão tentando esconder. (ARENDT, 1973, p. 35)

3.2 O poder da palavra

A política brasileira sabe, e muito bem, tirar proveito da imprensa, citemos como exemplo o ex-deputado José Dirceu, em entrevista ao programa de televisão Roda Viva, exibido no dia 24/10/2005 pela TV Cultura, afirmou e ressaltou que se colocava à disposição e demonstrou interesse direto nas investigações, buscava provar ao povo brasileiro que não estava envolvido nos esquemas de corrupção que assolavam o governo. Simultaneamente e de forma paradoxal com o discurso proferido, seus advogados impetravam Mandados de Segurança junto ao Supremo Tribunal Federal para impedir a co-guarda de seus sigilos.

Verificando a liminar concedida pelo ministro Eros Grau no Mandado de Segurança (MS) 25.618 que, apesar de mantida a tramitação da representação disciplinar contra o deputado federal José Dirceu (PT/SP), determinou que os documentos sigilosos (Requerimentos nº 75, 77 e 78) fossem arquivados e lacrados até o julgamento de mérito a respeito da legalidade de transferência de dados pela Comissão Mista Parlamentar de Inquérito dos Correios para o Conselho de Ética e Decoro da Câmara temos que o discurso de Dirceu não era tão verídico quanto parecia.

Em todas as entrevistas que concedia o ex-deputado afirmava colaborar com as investigações que, segundo ele, comprovariam sua inocência. Lamentava, ainda, o fato do princípio da presunção de inocência não ser levado em consideração pela mídia e, conseqüentemente, pela sociedade. Com o histórico de corrupção na política brasileira, talvez seja demasiada bondade popular presumir a inocência de um político tão controverso como Dirceu.

A estratégia era óbvia; consciente de que a maior fatia da população não teria acesso ou possibilidade de compreensão da realidade jurídica traçada por seus advogados para entravar o processo de cassação que o envolvia e quaisquer procedimentos investigatórios, José Dirceu serviu-se bem da chamada mass media, ou mídia de massa (MACIEL, 1998, p.114) para amortizar os efeitos provenientes de sua imagem política maculada.

Os resolvedores de problemas do governo não opinam, mas calculam racionalmente, buscam margens de probabilidade. Adotar tal postura talvez seja interessante para um jogador, mas não para um estadista (ARENDT, 1973, p.40). O erro consiste na persistência em tomar a derrota como um verdadeiro apocalipse sem enxergar a vitória como irrelevante em outros aspectos. O chamado homem forte do governo Lula foi incapaz de reconhecer sua limitação, geralmente velada pelo mito da onipotência segundo Arendt (1973, p. 41).

O autor do discurso é colocado por Michel Foucault (2000, p. 26) como fator de coerência, instrumento agrupador e origem das significações do discurso. Assim como no século VI, na Grécia, o período da Idade Média foi marcado pela veracidade do discurso atribuído a determinado autor, característica mitigada pelo discurso científico onde o autor apenas nomeava o teorema (século XVII). Na ordem do discurso literário, porém, o autor ressalta o fato do autor ser o único capaz de traduzir a verdade do texto por ser ele ciente da conjuntura em que foi escrito (2000, p. 27-28).

Com base nas idéias trazidas por Foucault, podemos efetuar ilação no sentido de que o discurso político inserto na realidade brasileira tem sua veracidade pesada na pessoa que o profere e no contexto em que foi criado.

Lembra o autor, ainda, dentre os grupos de procedimentos inerentes ao discurso, está a sujeição. Explicada por intermédio do ritual, da sociedade do discurso, da doutrina e da apropriação social. O ritual qualifica o interlocutor, abrange, ainda, o conjunto de regras do discurso, eficácia das palavras, efeitos sobre os ouvintes, limites e valor de coerção. À primeira vista, a sociedade do discurso parece paradoxal às doutrinas pela aparente tendência de limitar os interlocutores. Contudo, a doutrina tem o intuito de difusão, liga os que a alcançam e os diferencia dos demais (FOUCAULT, 2000, p. 42).

No mesmo sentido, analisemos a postura dos inquisidores junto às Comissões Parlamentares de Inquérito e a latente procura pela autopromoção. Certa feita, durante sessão aberta, acompanhamos um deputado bradar a seguinte assertiva dirigida a Marcos Valério que prestava termo de declaração: "Vossa excelência sairia daqui preso se não estivesse protegido por habeas corpus".

Como sabemos, declarante não pode ser preso por falso testemunho, vez que não presta compromisso em virtude de possuir interesse direto na causa. Entretanto, o tom ameaçador faz com que a apropriação social daquela frase imprima status de conformidade técnica. Dentre a imensidão de conteúdo disseminado por infindáveis discursos, surge a figura do temor à desordem que pode ser gerada assinalada por Foucault. Para compreender tal desordem o autor recomenda (2000, p. 51) que se proceda a um questionamento da vontade de verdade, restituição do caráter de acontecimento ao discurso e suspensão da soberania do significante, sendo este último aspecto o de aplicação mais latente ao exemplo citado. Se suspendermos a soberania do significante, no caso, do deputado federal, e analisarmos a técnica torna-se facilmente visível o intuito único de desestabilizar o declarante.

No entanto, a imagem passada sem esta suspensão é a de que o judiciário conferiu guarida ao principal articulador do chamado esquema do mensalão. Para tratar da apropriação social, Foucault utiliza o sistema de educação como exemplo, citando uma aula onde a relação entre professor e alunos exprime um sistema de sujeição latente, fazendo com que o ouvinte se aproprie do discurso na sua integralidade, inclusive no que tange aos poderes (2000, p. 44). Fácil estabelecer paralelo entre as relações professor e aluno; político e sociedade.

Como o presente trabalho visa avaliar, dentre outros aspectos, os posicionamentos e intervenções do Supremo Tribunal Federal nos trabalhos exercidos pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, não podemos deixar de analisar a influência que as reações dos parlamentares face à intervenção judiciária causa na sociedade.

Em reportagem publicada na internet a Folha de São Paulo trouxe, no dia 28 de março de 2006, a seguinte manchete: "Liminar do STF a favor de Okamotto irrita relator da CPI dos Bingos". Informou, ainda, que esta seria, segundo os cálculos dos integrantes da Comissão, a décima nona liminar concedida pelo Supremo contra os trabalhos do Congresso. O artigo retrata de forma extremamente simplória a motivação da liminar concedida e, considerando que um homem-médio dificilmente procuraria e entenderia o inteiro teor da decisão, constatamos que a indignação do relator acaba por voltar a sociedade contra o Poder Judiciário.

Em estudo feito durante o segundo semestre do ano passado junto ao Supremo Tribunal Federal, acompanhando os pedidos de liminar feitos em prol de pessoas relacionadas às Comissões Parlamentares de Inquérito pudemos observar que, em esmagadora maioria, são concedidos os pedidos no sentido de corrigir recorrentes erros cometidos pelos parlamentares na condução dos trabalhos, inexplicável, pois, a perplexidade destes frente às decisões.

O então presidente da Suprema Corte, Ministro Nelson Jobim, durante a sessão plenária do dia 23 de março de 2006, alertou sobre o constante desrespeito à Constituição por parte das CPI’s. Ressaltou, dentre outros aspectos, a falta de motivação dos atos das comissões quando requerem co-guarda de sigilos. O comportamento reiterado daquelas em constante confronto com o entendimento pacífico do Supremo mostra, mais uma vez, o despreparo dos parlamentares. Acrescentando seu ponto de vista, o Ministro Gilmar Mendes afirmou: "Há uma prática de violação grave no vazamento de informações vindas da quebra de sigilo. Luta política que vai à selvageria".

Na mesma oportunidade, Jobim salienta que o judiciário tem consciência dos objetivos escusos por trás da constância das violações constitucionais por parte das CPI’s, in verbis: "Nós sabemos que essas coisas não são gratuitas, por isso precisamos deixar muito claro para que não se venha dizer, ou pretender afirmar que tais insucessos decorram de manifestações do Tribunal", remetendo-se à possível utilização eleitoral das Comissões Parlamentares de Inquérito.

Sobre a autora
Giselle de Oliveira Coutinho

Servidora do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTINHO, Giselle Oliveira. Comissões parlamentares de inquérito:: a estrutura deficitária e o peso da verdade nas intervenções do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1096, 2 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8549. Acesso em: 22 dez. 2024.

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