Nós, seres humanos, estamos na natureza para auxiliar o progresso dos animais, na mesma proporção que os anjos estão para nos auxiliar. Portanto quem chuta ou maltrata um animal é alguém que não aprendeu a amar. (Chico Xavier)
RESUMO. O presente texto tem por finalidade precípua analisar a novíssima Lei nº 14.064, de 29 de setembro de 2020, em vigor no dia 30 de setembro de 2020, que modificou o artigo 32 da Lei nº 9.605, de 1998, criando uma qualificadora em casos de crime de maus-tratos quando praticados contra gatos e cachorros. Visa, ainda, a analisar a nova tendência mundial, que considera os animais como seres sencientes, aqueles que sentem dor e angústia, possui sentidos, sensações e emoções, o que constitui reconhecimento da sua especificidade e de suas características face a outros seres vivos.
Palavras-chave. Direito ambiental; maus-tratos; crime; gatos; cachorros; sencientes[1]; majorante.
INTRODUÇÃO
A vida, na sua essência, é marcada por múltiplos afloramentos de sentimentos, emoções e sensações, de traços marcantes no meio ambiente em que se vive, às vezes tomados por paixões amorosas, avassaladoras, ou por vezes manifestadas por impulsivas ideologias do ódio, aberrações extremadas, de apreço ao vazio. Tudo isso que, em sua grande maioria, era visível tão somente nas relações humanas. Quando, por vezes, eram perceptíveis no mundo animal, eram sempre negligenciadas; da mesma forma quando presentes nas matas e vegetações.
O homem chora de amores e ressentimentos, na fauna os animais sentem dores, emoções, alegrias e tristezas. Na flora, a vegetação se transforma o tempo todo, de acordo com as estações do ano. Há tempos, por exemplo, de primavera, em que os ipês colorem a natureza, com suas cores policromas, amarelas, brancas ou lilases, a encantar os corações dos mais apaixonados, riscando de beleza os jardins, os campos, as florestas, as margens das rodovias por onde se passam.
Os sabiás e pintassilgos, canários e pardais, pulando de galho em galho, mais parecem uma orquestra sinfônica a entoar seus cantos afinados. Tudo isso é manifestação de vida, de existência planetária e, indubitavelmente, deve ser protegido por aqueles que gozam de maior poder de transformação e domínio: o homem.
Por certo, o único pecado gravíssimo da natureza talvez seja o fato de os animais confiarem cegamente nas ações do homem; este sim, totalmente imprevisível, desalmado, interesseiro, costumeiro agente de suas conveniências, necessidades, principalmente econômicas. Uma vez humano, amoroso, gentil e confiável; e outras tantas, desumano, traiçoeiro, hipócrita, calculista e politicamente danoso.
A fidelidade do cão ao homem é eterna e imensurável. Isso pode ser comprovado pela história real registrada recentemente no hospital Nossa Senhora de Lourdes, em Nova Lima/MG, região metropolitana de Belo Horizonte. Um cão chegou no referido nosocômio nos idos de 2013, ficou aguardando do lado de fora o tratamento de seu proprietário que faleceu logo em seguida. Há sete anos o cão aguarda pacientemente pelo retorno do seu proprietário, história narrada pela reportagem do jornal Estado de Minas, em edição do dia 10 de setembro de 2020. Desde então, o cão nunca mais abandonou a porta do hospital.[2]
Com esse mundo inundado de sentimentos, bons ou ruins, há sempre uma imperiosa necessidade de se proteger os mais vulneráveis nas relações. Foi assim que nasceu o desejo de se construir a proteção jurídica dos animais que, antes havidos como meros objetos, bens móveis na sua essência, tornaram-se, a partir de uma concepção constitucionalista de direitos, objeto de proteção do legislador. Seja na esfera internacional, seja na ordem interna, os ordenamentos jurídicos houveram por bem estabelecer parâmetros de proteção e respeito à condição digna dos direitos dos animais, seres sencientes que sentem amor, angústia, saudade, tristeza, dor e alegrias.
Agora, encampando a tendência mundial, o legislador pátrio estendeu os direitos antes assegurados apenas ao homem, também aos animais: doravante, passam a ser considerados sujeitos de direitos, com personalidade jurídica sui generis, e seres sencientes carentes de proteção.
Nesse sentido, sabedor que dentre todos os animais, o gato e o cachorro representam a maior aproximação com o homem, o legislador agora inova com a edição da Lei nº 14.064, de 29 de setembro de 2020, para criar uma qualificadora no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, a fim de majorar a pena em casos de crimes de maus-tratos, se praticados contra os "maiores amigos do homem", verdadeiros parceiros em sua defesa e altamente confiável nas suas interações.
Já no então Projeto de Lei nº 1.095/2019, o próprio autor da proposta, deputado federal Fred Costa (PATRIOTA-MG), apresentou justificativa e propugnou, incisivamente, pela defesa dos animais:
“(...) os animais não possuem meios de se defender, não são capazes de procurar os seus direitos. A única maneira para que tais crimes sejam evitados é o empenho da sociedade, que não deve aceitar tamanha barbaridade, exigindo que as regras que visam reprimir esses crimes sejam cada vez mais rigorosas(...)”
1. A PROTEÇÃO LEGAL DOS ANIMAIS SENCIENTES
Animais não são simplesmente objetos descartáveis que se usam e jogam fora quando quiser. Animais possuem os mesmos sentimentos inerentes aos seres humanos: sentem dor, angústia, saudades, carinho, amor, e por isso, são chamados de seres sencientes[3], porque têm sentimentos, devendo, portanto, ser considerados sujeitos de direitos, e, portanto, destinatários de toda proteção jurídica, como vida, saúde, integridade, intimidade, imagem, além de outros.
Relevante informação diz respeito aos estados mentais, às vezes utilizados como sinônimos de senciente. Nesse sentido:
Assim, um estado mental só pode ser experimentado por uma mente e uma mente é meramente um sujeito de experiências. Um estado mental é, portanto, qualquer tipo de experiência, incluindo as mais rudimentares como sentir dor ou prazer físicos. Contudo, a palavra “mente” é frequentemente usada de uma forma diferente, com o significado de certo funcionamento cognitivo complexo ou de certas capacidades intelectuais complexas associadas com o pensamento e a aprendizagem. Entendido deste modo, o termo “mente” significa algo muito diferente daquilo que significam “senciência” e “consciência”. Possuir certas capacidades intelectuais complexas não é necessário para o que é tecnicamente chamado de estado mental – tudo o que é necessário é a posse de consciência, mesmo que muitas outras faculdades cognitivas estejam ausentes. Deste modo, há fortes razões para pensar que muitos animais não humanos possuem estados mentais.[4]
De fundamental importância para a promoção os direitos à dignidade dos animais, foi promulgada em 27 de janeiro de 1978, em Bruxelas, na Bélgica, a Declaração dos Direitos dos Animais, considerando que todo animal possui direitos. O desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza. O reconhecimento, pela espécie humana, do direito à existência das outras espécies animais, constitui o fundamento da coexistência das outras espécies do mundo. A educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais, podendo afirmar que todos os animais nascem iguais diante da vida, e devem ter o mesmo direito à existência, devendo ser respeitado, conforme assevera o artigo 3º da Declaração, a máxima de que nenhum animal deve ser submetido a maus-tratos e atos cruéis.
A Constituição da República de 1988, em seu artigo 225, § 1º, inciso VII, determina que incumbe ao Poder Público, dentre outros, o dever de proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Sabe-se que, para o Código Civil de 2002, os animais são considerados bens móveis, equivalentes a objetos, conforme dicção do artigo 82. Entrementes, tramita no Congresso Nacional projeto de lei nº 27/2018, que propõe a modificação da legislação civil para conferir aos animais a classificação como sujeitos de direitos, e, portanto, entendê-los como possuidores de personalidade especial, recebendo da lei todos os direitos inerentes ao ser humano, tais como, inclusive, a possibilidade de serem sujeitos ativos na impetração de habeas corpus e na utilização de inúmeros outros instrumentos jurídicos de proteção e garantias de seus diretos e interesses.
A teor do artigo 24, da Constituição Federal de 1988, compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição e a responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
Em São Paulo, a Lei nº 11.977, de 25 de agosto de 2005, institui o Código de Proteção aos Animais do Estado. Os dois primeiros artigos da lei tratam-se de formulações conceituais e vedações.
Artigo 1º- Institui o Código Estadual de Proteção aos Animais, estabelecendo normas para a proteção, defesa e preservação dos animais no Estado.
Parágrafo único - Consideram-se animais:
1. silvestres, aqueles encontrados livres na natureza, pertencentes às espécies nativas, migratórias, aquáticas ou terrestres, que tenham o ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras ou em cativeiro sob a competente autorização federal;
2. exóticos, aqueles não originários da fauna brasileira;
3. domésticos, aqueles de convívio do ser humano, dele dependentes, e que não repelem o jugo humano;
4. domesticados, aqueles de populações ou espécies advindas da seleção artificial imposta pelo homem, a qual alterou características presentes nas espécies silvestres originais;
5. em criadouros, aqueles nascidos, reproduzidos e mantidos em condições de manejo controladas pelo homem, e, ainda, os removidos do ambiente natural e que não possam ser reintroduzidos, por razões de sobrevivência, em seu habitat de origem;
6. filantrópicos, aqueles que aproveitam as condições oferecidas pelas atividades humanas para estabelecerem-se em habitats urbanos ou rurais.
Artigo 2º- É vedado:
I - ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência, prática ou atividade capaz de causar-lhes sofrimento ou dano, bem como as que provoquem condições inaceitáveis de existência;
II - manter animais em local desprovido de asseio ou que lhes impeça a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III - obrigar os animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas forças e a todo ato que resulte em sofrimento, para deles obter esforços que não se alcançariam senão com castigo;
IV - não propiciar morte rápida e indolor a todo animal cujo abate seja necessário para consumo;
V - não propiciar morte rápida e indolor a todo animal cuja eutanásia seja recomendada;
VI - vender ou expor à venda animais em áreas públicas sem a devida licença de autoridade competente;
VII - enclausurar animais conjuntamente com outros que os molestem;
VIII - exercitar cães conduzindo-os presos a veículo motorizado em movimento;
IX - qualquer forma de divulgação e propaganda que estimule ou sugira qualquer prática de maus-tratos ou crueldade contra os animais.
Nesse sentido, por meio da Lei nº 11.915 de 21, de maio de 2003, o Rio Grande do Sul, criou o Código Estadual de Proteção aos animais, sendo vetado ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência.
O citado comando normativo fornece conceito de animais silvestres, da fauna nativa, exótica, pesca, e animais domésticos, definindo os animas de carga e transportes de animais. Estabelece ainda os sistemas intensivos de economia agropecuária, do abate de animais e de laboratório, como define vivissecção como sendo os experimentos realizados com animais vivos em centros de pesquisas.
A Lei Estadual nº 17.485, de 16 de janeiro de 2018, de Santa Catarina, recentemente alterou o Código Estadual de Proteção aos Animais para o fim de reconhecer cães, gatos e cavalos como seres sencientes.
Destarte, foi acrescido o artigo 34-A que determinou a seguinte redação:
“Para fins desta Lei, cães, gatos e cavalos ficam reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direitos, que sentem dor e angústia, o que constitui reconhecimento da sua especificidade e de suas características face a outros seres vivos. ”
Já em Minas Gerais, a Lei nº 22.232, de 20 de julho de 2016, dispõe sobre a definição de maus-tratos contra animais no Estado e dá outras providências. O artigo 1º da lei mineira enumera os casos considerados maus-tratos, a saber:
Art. 1º São considerados maus-tratos contra animais quaisquer ações ou omissões que atentem contra a saúde ou a integridade física ou mental de animal, notadamente:
I - privar o animal das suas necessidades básicas;
II - lesar ou agredir o animal, causando-lhe sofrimento, dano físico ou morte, salvo nas situações admitidas pela legislação vigente;
III - abandonar o animal;
IV - obrigar o animal a realizar trabalho excessivo ou superior às suas forças ou submetê-lo a condições ou tratamentos que resultem em sofrimento;
V - criar, manter ou expor animal em recinto desprovido de segurança, limpeza e desinfecção;
VI - utilizar animal em confronto ou luta, entre animais da mesma espécie ou de espécies diferentes;
VII - provocar envenenamento em animal que resulte ou não em morte;
VIII - deixar de propiciar morte rápida e indolor a animal cuja eutanásia seja necessária e recomendada por médico veterinário;
IX - abusar sexualmente de animal;
X - promover distúrbio psicológico e comportamental em animal;
XI - outras ações ou omissões atestadas por médico veterinário.
O santo protetor dos animais é São Francisco de Assis. Ele sempre se referia aos bichos como irmãos. Assim, se referia a irmão fera, irmã leoa. São Francisco de Assis também era amante das plantas e de toda a natureza: irmão sol, irmã lua… São expressões comuns na fala do santo, um dos mais populares até os nossos dias. O Dia Nacional dos Animais é comemorado em 14 de março. O calendário comemorativo de datas também considera o dia 4 de outubro, considerado o Dia Mundial dos Animais, marcando também o dia de nascimento de São Francisco de Assis.
O Projeto de lei de 2012, de autoria de Eliseu Padilha, estabeleceu um conceito de animal como sendo todo ser vivo irracional, dotado de sensibilidade e movimento. Segundo ele, os animais são seres sencientes, sujeitos de direitos naturais e nascem iguais perante a vida, sendo dever do Estado e da sociedade o combate aos maus-tratos. O valor de cada ser deve ser reconhecido pelo Estado como reflexo da ética, do respeito e da moral universal, da responsabilidade, do comprometimento e da valorização da dignidade e diversidade da vida, contribuindo para livra-los de ações violentas e cruéis.
Os direitos fundamentais dos animais são tratados nos artigos 5º a 10, estatuindo que todo animal têm o direito de ter a sua existência respeitada. Todo animal deve receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida. Todo animal tem direito a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio e do sol. Todo animal têm direito a receber cuidados veterinários em caso de doença ou ferimento. Todo o animal de trabalho tem direito a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso. A posse responsável implica em respeitar as necessidades essenciais para a sobrevivência digna do animal.
2. DO CRIME DE MAUS-TRATOS NA LEI AMBIENTAL
Em 1941, a lei das contravenções penais - que, em verdade, trata-se do decreto-lei, nº 3.688/41 - define, em seu capítulo VII, as condutas contravencionais ligadas à polícia de costumes; em seu artigo 64, prevê a crueldade contra animais, consistente em tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo, culminando pena de prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa. Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo. Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.
A Lei nº 9.605, de 1998, dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. O referido comando normativo cria diversas condutas criminosas contra o meio ambiente, envolvendo a fauna, flora, poluição, ordenamento urbano e o patrimônio cultural e administração ambiental. O crime de maus-tratos é definido no artigo 32 da LCA, com a seguinte redação:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
A conduta criminosa se traduz em praticar ato de abuso ou maus-tratos, e ainda ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
O § 1º traz conduta delituosa derivada, incorrendo nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. Por sua vez, o § 2º prevê causa de aumento de pena de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
Trata-se de crime comissivo ou omissivo, que traduz conduta consistente num agir ou numa abstenção de uma conduta, praticando atos abusivos contra animais ou deixando de agir para impedi-los. Delito doloso, material ou formal, unissubjetivo, plurissubsistente, que admite-se a forma tentada. Algumas práticas podem caracterizar o delito em apreço, como por exemplo, o abandono do animal, as agressões físicas, espancamento, mutilação, envenenamento, deixar de levar o animal doente a um especialista, deixar o animal exposto ao tempo, chuva, sol, ou frio intenso, submeter o animal a tarefas exaustivas, além de suas forças, incentivar brigas entre animais, não alimentar o animal regularmente, jogar o animal de um prédio, além de outras.
Para fins de aplicação de pena ao autor do crime de maus-tratos, a própria Lei dos Crimes Ambientais, em seu artigo 9º ao 24, estabelece as medidas aplicáveis, prevendo fixação de medidas restritivas de direito como autônomas e substitutivas das penas privativas de liberdade, quando se tratar de crime culposo, ou for aplicada a pena privativa de liberdade inferior a quatro anos, e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias do crime indicarem que a substituição seja suficiente para efeitos de reprovação e prevenção do crime. As penas restritivas de direito são prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, suspensão parcial ou total de atividades, prestação pecuniária e recolhimento domiciliar, e terão a mesma duração da pena privativa de liberdade substituída.
3. DA PROPOSTA DE REFORMA DO CÓDIGO PENAL
O Código penal é uma legislação de 1940, sendo certo que, durante todo o transcorrer do tempo, a legislação em apreço foi modificada por inúmeras leis especiais, até mesmo se ajustando às modificações introduzidas na sociedade.
Mesmo diante de diversas modificações, o legislador atual propõe mudança significativa na lei penal, para criar um novo Código penal com linhagem da modernidade, como aconteceu ao longo tempo com o Código criminal de 1831, o Código penal de 1890, a Consolidação das leis penais de 1932, até se chegar ao atual Código penal de 1940.
Como esse pensamento reformista, tramita-se no Congresso Nacional e já faz algum tempo, o PLS nº 236/2012, que pretende operar profundas mudanças na legislação penal do Brasil, com a proposta maior de condensar num único Código toda legislação penal esparsa, adotando-se uma espécie de princípio da codificação penal, na tentativa de proporcionar maior segurança penal na esfera penal.
Assim, toda legislação especial constaria de um único Código penal. Com esse propósito, dentre outras junções, foram previstos dois crimes de omissão de socorro no Código penal, um contra pessoa e outro contra os animais, respectivamente, artigos 132 e 394, in verbis:
Art. 132. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo, ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena – prisão, de um a seis meses, ou multa.
Omissão de socorro ambiental
Art. 394. Deixar de prestar assistência ou socorro, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, a qualquer animal que esteja em grave e iminente perigo, ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena – prisão, de um a quatro anos.
Esse projeto de lei recebeu severas críticas de especialistas do Direito penal, notadamente, por possível violação ao princípio da proporcionalidade, porque a pena para quem deixar de prestar socorro à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo, seria menor para quem deixasse de prestar socorro a animais.
4. DA NOVÍSSIMA LEI Nº 14.064, DE 29 DE SETEMBRO DE 2020
Oriundo do Projeto de Lei nº 1.095/2019, de autoria do deputado federal Fred Costa (PATRIOTA-MG), a novíssima Lei nº 14.064, de 29 de setembro de 2020, criou uma qualificadora no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, em casos de crimes de maus-tratos se praticados contra gatos e cachorros, prevendo pena de reclusão de 02 a 05 anos, multa e proibição da guarda.
§ 1º -A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
Aconteceu importante cerimônia de sanção do Projeto de Lei em epígrafe, no Salão Nobre do Palácio do Planalto, 2º andar, em 29 de setembro de 2020, às 17 horas, com a presença de diversas autoridades de proteção aos animais. A novíssima lei foi denominada Lei Sansão em virtude de um triste fato ocorrido na cidade de Confins, na região Metropolitana de Belo Horizonte, quando um cachorro de dois anos, da raça pitbull teve suas patas traseiras decepadas a golpes de foice, por um homem de 44 anos de idade, episódio que causou grandes repercussões no Brasil em virtude dos requintes de crueldade e dos atos de tortura que o animal sofreu. A nova lei entrou em vigor na dada de sua publicação, ou seja, no dia 30 de setembro de 2020, nesta quarta-feira.
A nova qualificadora inviabiliza a possiblidade de o Delegado de Polícia arbitrar valor de fiança em caso de prisão em flagrante, deixando as hipóteses de cabimento previstas no artigo 322 do Código de Processo penal, que autoriza a autoridade policial a fixar fiança nos casos de crimes com pena não superior a 04 anos. Assim, o delinquente deverá ser recolhido ao cárcere, ficando à disposição da autoridade judiciária.
Considerando que os animais passam a ser considerados sujeitos de direito, é de boa análise afirmar que sendo o crime de maus-tratos praticados contra pessoa - e os amimais agora são equipados à pessoa, deixando de ser meramente um bem móvel para configurar sujeitos de direitos - não mais haverá possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, devendo ser aplicadas, na hipótese, as exigências e requisitos de admissibilidade do artigo 43 do Código penal, que proíbe a possiblidade de substituição das penas privativas de liberdade pelas penas restritivas de direito em casos de violência ou grave ameaça à pessoa.
É claro que a Lei dos Crimes ambientais, que deveria ser aplicada por ser legislação especial em relação ao Código penal, não havia afastado da possibilidade de aplicação das penas restritivas de direito nos crimes cometidos contra a pessoa, como o fez a legislação codificada, porque, até então, os animais eram considerados meros objetos ou bens móveis pela legislação civil. E agora, diante do novo enquadramento legal, diante de um novo mundo, até mesmo para acompanhar a evolução dos tempos, não se pode mais aplicar as normas descarcerizadoras da antiga Lei Ambiental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A grandeza de um país e seu progresso podem ser medidos pela maneira como trata seus animais (Mahatma Gandhi)
Diante de toda argumentação exposta, percebe-se, claramente, que os direitos dos animais seguem um percurso histórico-evolutivo: passam pela Declaração Universal desses direitos, desde 1978, em Bruxelas, quando se reconheceu os animais como protagonistas do meio ambiente, com respeito à sua condição, liberdade em seu espaço natural, terrestre, aéreo ou aquático, proteção contra atos de maus-tratos e tratamento cruel, tendo assegurado o direito a uma duração de vida de acordo com sua longevidade natural.
A Carta Magna em seu artigo 225, § 1º, inciso VII, determina que incumbe ao Poder Público, dentre outros, o dever de proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetem os animais a crueldade.
Por sua vez, a Lei nº 9.605, de 1998, dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Vale ressaltar que o citado comando normativo criou diversas condutas criminosas contra o meio ambiente, envolvendo a fauna, flora, poluição, ordenamento urbano, o patrimônio cultural e a administração ambiental.
Especificamente, sobre o delito de maus-tratos, este foi definido no artigo 32 da LCA, consistente em praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa.
Agora, com o advento da novíssima Lei nº 14.064, de 29 de setembro de 2020, exsurgiu a qualificadora no artigo 32, da Lei nº 9.605/98, que passou a majorar a pena de 02 a 05 anos quando o ilícito penal de maus-tratos for praticado contra gatos e cachorros, espécies animais que mais se aproximam das relações humanas. De plano, pode-se verificar que, pelo tamanho da pena em abstrato, não pode o Delegado de Polícia arbitrar fiança, a teor do artigo 322 do Código de Processo penal.
A maior crítica reside no fato de a nova qualificadora de maus-tratos a animais ser maior que todos os delitos de periclitação da vida e da saúde, artigos 130 a 136 do Código penal, inclusive maior que os ilícitos penais de abandono de incapaz, exposição ou abandono de recém-nascido, omissão de socorro e maus-tratos, o que violaria o princípio da proporcionalidade.
Sabe-se que este argumento em epígrafe não se sustenta. Assim, o Brasil deve deixar de ser medíocre e atrasado, um país da hipocrisia política, devendo esquecer essas vaidades pessoais e avançar na sua legislação para proteger novos direitos. Os animais não humanos possuem os mesmos sentimentos e sensações dos humanos. São seres que sentem dor, angústia, aliás, essa condição já foi reconhecida em países da Europa. A França e Nova Zelândia modificaram suas legislações conferindo aos animais o status de seres sencientes, ou seja, retirando-os definitivamente da condição de coisa. Alguns países como a Alemanha, Suíça e Áustria fazem constar em seus textos legais que animais não são objetos.
A meu sentir, andou bem o legislador ao criar a qualificadora do crime de maus-tratos em casos praticados contra gatos e cachorros, mas poderia ter incluído também na qualificadora os casos de maus-tratos contra os equinos que têm sido submetidos a trabalhos excessivos e cruéis em suas jornadas diárias.
É certo que a Lei dos crimes ambientais prevê os requisitos de admissibilidade de aplicação das penas restritivas de direito, silenciando sobre a hipótese dos delitos praticados contra a pessoa, por questões lógicas, mesmo porque até então os animais eram considerados meros objetos ou coisas.
Entrementes, deixando de ser simplesmente coisa ou objeto, agora quem praticar crime de maus-tratos contra gatos e cachorros, incidirá na qualificadora do artigo 32 da Lei nº 9.605/98, e, uma vez condenado, deixará de receber o benefício da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, uma vez que, doravante, o delito passa a ser cometido com violência e grave ameaça à pessoa, no caso, contra animais, com natureza jurídica sui generis, equivalente à pessoa humana, e isso aqui não faz ressurgir a aplicação da analogia in malan partem, mas construção ampliativa de proteção aos animais e adoção da Teoria do Direito Penal do Amigo dos Animais, e tudo se torna muito simples, quem não quiser ir para a cadeia, é só não agredir animais e pronto.
Por derradeiro, é importante salientar que a partir de agora nossos amigos Sansão, Zeus, Paçoca, Torresmo, Bili, Spayke, Zazá, Dudu, Cristal, Belinha, Chiavas, e tantos outros animais, terão na lei penal ambiental, rigoroso instrumento de proteção para a salvaguarda de seus direitos e garantias e, quem insistir em ofender a norma, com atos de desamor e violência, certamente, sofrerá as consequências da lei.