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As representações do sistema de justiça criminal cearense acerca de mulheres vítimas do crime de estupro.

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Agenda 04/11/2020 às 15:24

O estupro é crime de natureza hedionda, previsto no código penal, em seu artigo 213. Esse delito, que enseja repulsa e indignação, tem em seu polo passivo, normalmente, mulheres: fruto de um passado machista e patriarcal, mas que ainda gera reflexos, sobretudo no Judiciário, no cenário contemporâneo.

INTRODUÇÃO

O estupro está previsto em diversas legislações e visa a punir o agressor que, sem a anuência da outra pessoa, a obriga a ter relações sexuais. São quatro os elementos que integram o delito: (1) constrangimento decorrente da violência física (vis corporalis) ou da grave ameaça (vis compulsiva); (2) dirigido a qualquer pessoa, seja do sexo feminino ou masculino; (3) para ter conjunção carnal; (4) ou, ainda, para fazer com que a vítima pratique ou permita que com ela se pratique qualquer ato libidinoso.

O estupro, consumado ou tentado, em qualquer de suas figuras (simples ou qualificadas), é crime hediondo (Lei8.072/90, art.1º,V) (MAGGIO, 2013). Em decorrência de sua natureza hedionda, deve ser tratado de forma mais severa pelas legislações, sendo esse crime insuscetível de graça e anistia.

Normalmente, o polo passivo desse crime é composto por mulheres. Tal como será discutido no primeiro capítulo, historicamente, as mulheres são tratadas como seres inferiores e subordinadas à figura do homem. No sistema patriarcal, androcêntrico e machista, tais vítimas acabam sendo, em sua maioria, julgadas pela sociedade como provocadoras do agente.Entende-se, no âmbito da Vitimologia, que vítima provocadora é aquela que, através das vestimentas ou atitudes, provoca o agente para a prática do crime. No caso do estupro contra a mulher, este é um julgamento de cunho machista, o que será demonstrado ao longo dos próximos capítulos.

Desta forma, o estupro é, por um lado, repudiado e qualificado como crime hediondo. Por outro, no contexto da Vitimologia, existe o argumento de cunho androcêntrico de que as mulheres vítimas desse crime procuraram o resultado. Tal argumento é resultado (e também produtor) de um contexto pernicioso para as vítimas, assim como aos direitos de todas as mulheres. Por essa razão, é necessário se deter sobre o problema do tratamento deste crime no contexto jurídico. Igualmente importante é entender o impacto do movimento feminista e os consequentes direitos conquistados pelas mulheres, pois foi através deles que a problemática dos crimes sexuais, mais precisamente o crime de estupro, começaram a ter um tratamento diferenciado pelas legislações e pela sociedade.

Assim, a realização desta pesquisa monográfica teve como objetivo principal analisar as representações sociais acerca das mulheres vítimas do crime de estupro. A análise se deteve, em âmbito geral, sobre as representações de natureza androcêntrica presente no contexto social amplo.Emsentido estrito, foram analisadas essas representações especificamente em narrativas concretizadas em processos de casos de estupro julgados no Justiça Estadual do Ceará.

O estudo se classifica como qualitativo e utilizou-se do método dedutivo. Em sua etapa inicial consistiu em um estudo de cunho bibliográfico que decorreu de revisão de literatura, doutrina e jurisprudência aplicadas à área considerada. Na etapa final, consistiu em uma análise documental, que deteve-se sobre a análise de seis casos de estupro contra mulheres na Justiça Estadual do Ceará. As fontes consideradas foram sítios de notícia com reportagens sobre casos de estupro veiculados nos últimos dez anos. A análise teve como propósito identificar a ocorrência da culpabilização da vítima de estupro (através do argumento da vítima provocadora) e sua sobrevitimização. Nesta etapa, os textos foram submetidos a uma cuidadosa leitura, que considerou o conteúdo total das narrativas contidas no texto verificando as representações sociais envolvidas. Identificou-se os emissores dos discursos, considerando manifestações das partes no que se refere às alegações advindas do judiciário, no âmbito da denúncia, da defesa e do julgamento. Os processos foram representados por numeração não intencional, tendo em vista a da delicadeza do tema. Também com o objetivo de preservar os sujeitos envolvidos, a identificação das partes foi feita unicamente por meio das iniciais de seus nomes.

Verificada o quão relevante é a análise das representações sobre a mulher vítima do crime de estupro, é possível o levantamento das seguintes indagações: sob o ponto de vista histórico, como a legislação tratou o crime de estupro contra a mulher no Brasil? Como a luta de mulheres resultou em conquistas por direitos amplos e, especificamente, sobre o próprio corpo? Como se define Vitimologia? Por fim, Como são representadas as mulheres vítimas de estupro em processos da Justiça Estadual do Ceará? Pretende-se, nas linhas que seguem dar respostas a essas perguntas.

Sendo assim, no primeiro capítulo, será abordada uma breve história do estupro e da violência sexual no Brasil. Em primeiro plano, será analisado o estudo acerca da história deste nas legislações brasileiras, retratando como essa violação era punida anteriormente. Será abordado o estupro no Código de 1830, denominado Código do Império do Brasil, retratando a figura das mulheres que eram denominadas com honra e sem honra. Em seguida, será analisado o Código Penal Republicano de 1890, que trouxe novidades referente às penas dos agressores. Em seguida será considerado o Código de 1940,que não trouxe grandes inovações.Por fim, serão expostas as alterações trazidas pela lei 12.015 de 2009. Finalmente, ainda no mesmo capítulo, será brevemente apresentada a luta das mulheres no Brasil e como este movimento alcança direitos relacionados a educação, trabalho e voto, assim como relevantes conquistas referentes aos direitos sobre o corpo.

No segundo capítulo, será analisada a culpabilização da vítima sob o prisma da Vitimologia. Apresentaremos, neste sentido, o conceito de Vitimologia, a história do estudo das vítimas e suas fases, bem como seu surgimento como ramo do direito. Será demonstrado o estudo do iter victimae, que tem como fundamento estudar as características próprias existentes nas vítimas e as suas referidas fases. Serão abordadas as classificações das vítimas atribuídas por Benjamim Mendelsohn, criador da Vitimologia e os graus de vitimização que descrevem os prejuízos e tormentos causados ao sujeito passivo após o sofrimento de determinado delito.

No terceiro capítulo, inicialmente, será discutido o valor probatório da vítima em julgamentos de crimes sexuais, que possuem diferenças com relação a outros crimes. Serão também expostos os elementos que ampliam a confiabilidade da palavra da vítima. Em seguida, serão descritos os resultados da pesquisa documental realizada neste texto monográfico.A pesquisa teve como fonte textos jornalísticosdeseis casos julgadospela Justiça Estadual do Ceará. Os casos foram analisados individualmente para, então, serem inter-relacionados.


1 A VIOLÊNCIA SEXUAL NA LEGISLAÇÃO E A LUTA DAS MULHERES NO BRASIL: UM BREVE HISTÓRICO

1.1 Evolução histórica do crime de estupro na legislação brasileira

Ao longo dos tempos, o Código Penal brasileiro sofreu diversas modificações, principalmente no que se refere aos crimes sexuais. Seja com relação à própria redação do texto penalou mesmo a materialidade do crime, suas penas, assim como hoje, poderiam ser agravadas ou atenuadas a depender da situação.

No entanto, é válido ressaltar que as mulheres eram divididas em classes, posto que a liberdade sexual da mulher não era vista como ponto central do crime de estupro em épocas anteriores devido às mesmas serem consideradas propriedade e objetos de seus maridos.

As mulheres possuíam duas denominações, sendo elas: mulheres que possuíam honra e àquelas que não eram detentoras da mesma, ou seja, mulheres sem honra alguma. Para crimes cometidos com as primeiras elencadas, o agressor sofreria uma pena mais grave, podendo até mesmo ser banido da cidade da vítima e ainda ter que pagar dotes para família da mesma. Porém, com o passar dos anos essa punição sofreu alterações, não sendo mais permitido esse tipo de sanção.

No que tange às mulheres denominadas sem honra, ou seja, aquelas que não eram casadas e que já tivessem tido relações sexuais, ou até mesmo prostitutas, a pena do agressor seria diminuída; mas se o agressor resolvesse casar-se com alguma delas, o crime perderia a sua punibilidade e o mesmo, consequentemente, sairia impune. Confirmando a análise acima temos o seguinte texto:

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A meretriz estuprada, além da violência que sofreu, não suporta outro dano. Sem reputação e honra nada tem a temer como consequência do crime. A mulher honesta, todavia, arrastará por todo o sempre a mancha indelével com que a poluiu o estuprador- máxime se for virgem, caso que assume, em nosso meio, proporções de dano irreparável. No estupro da mulher honesta há duas violações: contra a liberdade sexual e contra a honra; no da meretriz, apenas o primeiro bem é ferido” (NORONHA,1995)

Nesse sentido, é visto como as mulheres sofriam desvalorizações e eram objetificadas, tanto no âmbito social como nas legislações penais brasileiras, que serão expostas adiante, com base em um lapso temporal.

1.1.1 Código Penal de 1830

O Código Criminal do Império do Brasil, sancionado em 1830, trouxe inúmeras discussões ao tratar de crimes sexuais, em especial o estupro. A pena prevista para quem cometesse tal ato era de três a doze anos de detenção, mais um dote oferecido à família da ofendida.

No entanto, se a mesma não fosse detentora de honra, ou seja, se fosse prostituta, a pena do agressor seria diminuída para um mês a dois anos, fato elucidado na redação do artigo 222 do código penal de 1830:

Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.

Penas- de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.

Se a violentada fôr prostituta.

Penas - de prisão por um mez a dousannos.

Da leitura do artigo, é possível constatar a diferenciação e o julgamento que se fazia com relação à honra das mulheres e a desvalorização existente para com as mesmas. Havia, pois, uma diminuição de pena se fosse constatado que o agressor havia estuprado uma prostituta.

Além disso, havia, ainda, outras caracterizações do crime, expostos em artigos posteriores. Sendo essas: quando ocorria violência com fim libidinoso, e não ocorresse à conjunção carnal, a pena de prisão seria de um a seis meses e de multa correspondente a metade do tempo.

Art. 223. Quando houver simples offensa pessoal para fim libidinoso, causando dôr, ou algum mal corporeo a alguma mulher, sem que se verifique a copula carnal.

Penas - de prisão por um a seis mezes, e de multa correspondente á metade do tempo, além das em que incorrer o réo pela offensa.

Nesse sentido, pode-se extrair que o crime de estupro só era caracterizado quando efetivamente houvesse a conjunção carnal.Caso contrário, seria caracterizado como “simples ofensa” e a pena seria diminuída pela metade. Cumpre salientar que, caso a mulher fosse menor de dezesseis anos e sofresse o crime de estupro, ou seja, a conjunção carnal, o agressor era levado para fora da comarca em que a vítima menor residia, e era obrigado a pagar um dote à vítima. Assim expõe o artigo 224 do código penal de 1830:

Art. 224. Seduzir mulher honesta, menor dezaseteannos, e ter com ella copula carnal.

Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a seduzida, por um a tresannos, e de dotar a esta.

Por fim, verifica-se a questão do casamento com a vítima, onde, caso ela se casasse com o agressor, o mesmo seria absolvido do crime em questão. Assim, a vítima sofreria duplamente, pois não bastasse ter sofrido o estupro, deveria conviver diariamente com o seu agressor. Desta maneira, o texto do Art. 225 assim dispõe: “Não haverá as penas dos três artigos antecedentes os réos, que casarem com as offendidas.” A menos de dois séculos, a liberdade de escolha da mulher inexistia, e a subordinação ao homem era claramente positivada no texto legal.

1.1.2 Código Penal de 1890

O Código Penal de 1890, conhecido como Código Penal Republicano, trouxe duas inovações: uma se refere às penas, que foram diminuídas. Nesse sentido, se o agressor estuprasse uma mulher honesta, sua pena seria de um a seis anos, do contrário, sua pena seria de seis meses a dois anos.

Além disso, o conceito de mulher honesta não mais tem como referência a virgindade ou sua ausência, e sim se a mulher era, de um lado, “honesta”, ou de outro, “pública” ou “prostituta”. Assim dispõe o artigo 268 do código penal de 1980:

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:

Pena – de prisão cellular por um a seis annos.

§ 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta:

Pena – de prisão cellular por seis mezes a dousannos.

Com isso, já se pode constatar uma pequena evolução da legislação, pois a honra da mulher não mais se limitaria à sua liberdade sexual. Importante salientar que o próprio Código trouxe a definição do crime de estupro no seu artigo 269: “Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não.” Dessa forma, seria incriminado aquele que cometesse qualquer tipo de violência, que interferisse nas faculdades psíquicas da mulher, não mais interessando se era virgem ou não para fins de honra. Ainda assim, apenas a mulher poderia ser figurada no polo passivo.

1.1.3 Código  Penal de 1940

O Código Penal de 1940 não trouxe grandes inovações aos crimes sexuais, tendo em vista que, como os códigos anteriores, apenas a mulher poderia ser vítima do crime, assim como ainda havia a diferenciação entre mulheres honestas e não honestas. Expõe o artigo 213 do referido Código:

Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena - reclusão, de três a oito anos.

Parágrafo único. Se a ofendida é menor de catorze anos.

Pena - reclusão de quatro a dez anos

No entanto, o agravante de pena que se daria se a mulher fosse menor de dezesseis anos, foi alterado, no sentido de que, nesse Código, se a mesma fosse menor de quatorze anos, o autor já teria esse aumento de pena. Para os demais crimes sexuais não abrangidos pelo artigo definido acima, eram encaixados como atentado violento ao pudor no artigo 214, senão vejamos:

Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:

Pena - reclusão de dois a sete anos. 

Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos:

Pena - reclusão de três a nove anos.

Com isso, percebe-se que a legislação ainda trazia diferenciações com relação ao crime de estupro, pois a conjunção carnal era denominada como o núcleo subjetivo do tipo, e somente com a conjunção carnal se obteria o crime de estupro propriamente dito.

1.1.4 Alterações trazidas pela Lei 12.015 de 2009

Como se sabe, o Código Penal de 1940 está em vigor hodiernamente. No entanto, sofreu grandes modificações.Dentre elas, a que mais trouxe alterações foi a Lei nº 12.015 de 2009, a qual modificou e alterou os crimes contra os costumes, hoje denominadoscrimes contra a dignidade sexual.

A grande mudança já começa no que se refere ao polo passivo desse crime, que não será enquadrado apenas com mulheres, mas também abrange homens, e as relações homoafetivas. Sendo modificado o termo constranger “mulheres” por constranger “alguém”. Como expõe o artigo 213 do código penal vigente.

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

Além disso, a honra da mulher já não é mais questionada, tendo em vista que não se aceita penalidade mais branda para a pessoa que agredir sexualmente a prostituta. Com isso, a mesma pode recusar-se a ter relações com qualquer pessoa, ou estabelecer limites para o ato, mesmo estando em serviço.

Além disso, houve uma unificação entre o estupro e o atentado ao pudor, se tornando uma só figura delitiva. Através dessa nova definição consagra um crime de conteúdo variado, onde o agente comete duas condutas, mas comete apenas um crime, sendo excluído assim o concurso de crimes.

Por fim, vale ressaltar que surge também, através dessas modificações, a figura do estupro de vulnerável, o qual trouxe uma proteção maior a menores de quatorze anos. Foram incluídos como vulneráveis: menores de quatorze anos,deficientes mentais e quem, por alguma enfermidade, não tem capacidade de discernimento para a prática do ato sexual e que não esteja em condições de oferecer resistência, conforme o artigo 217-A do Código Penal vigente:

Art. 217-A Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

É notório que a lei 12.015 trouxe alterações importantes para a legislação vigente, como proteção de menores de quatorze anos, deficientes mentais, e quem, por alguma enfermidade, não tem capacidade de discernimento para a prática do ato sexual.

Além disso, passou a “descoisificar” a figura da mulher, não mais trazendo divisões no que se refere à sua honra, e passou a tratar o estupro não mais como uma afronta ao homem, pai ou marido, e sim como um ataque à dignidade e à liberdade sexual da vítima.

Com isso, o polo passivo passa a ser ocupado por outras figuras como o homem e os relacionamentos homoafetivos. Tais modificações puderam trazer uma maior segurança às mulheres que em legislações mais antigas não obtinham reconhecimento e liberdade sexual.

Além de entender como o crime de estupro se dava nas legislações mais antigas e a sua consequente evolução, é importante saber os aspectos que estavam por trás dessas evoluções: ou seja, como as mulheres conseguiram ter seus direitos reconhecidos para que não mais fossem tratadas como propriedades. Com isso, faz-se necessário compreender a luta das mulheres por direitos, que serão abordadas em seguida.

1.2 Aspectos históricos sobre a luta feminista no Brasil

Como se sabe, as mulheres sofreram diversas discriminações e repressões ao longo dos anos, de forma que eram submetidas à figura masculina, representadas pelo pai (pater família), irmãos e marido, não possuindo direito algum de manifestarem suas escolhas e/ou ideias. Sendo assim, educação, política, direito à vida, direito ao divórcio e acesso ao mercado de trabalho eram inexistentes para a mulher.

A posição submissa imposta à mulher, historicamente, não foi aceita sem resistência; aliás, vale salientar como se deu o movimento de luta e enfrentamento, até chegar a tempos hodiernos,conforme veremos adiante.

Na época do império (1822-1889), foi através de Nísia Floresta (Dionísia Gonçalves Pin, 1810-1885), fundadora da primeira escola para mulheres no Brasil e ativista na emancipação feminina que o direito à educação começou a ser reconhecido para as mulheres e ainda assim de forma limitada, pois muitas vezes eram impedidas de estudar pelo seu pai ou marido (MATUOKA, 2017).

Percebem-se as consequências trazidas pela desigualdade de gênero. As mulheres eram impedidas de estudar para que sempre se mantivessem em pé de desigualdade, nesse caso, intelectual, com relação aos homens. No entanto, como já exposto, não era apenas na seara da educação que as mulheres possuíam limitações. No que tange aos direitos políticos, é importante frisar que, somente em meados do século XIX, através do movimento sufragista, as mesmas puderam ter direito ao voto.

De forma específica, no Brasil, esse direito foi aprovado em 1932, fruto da luta liderada por Bertha Lutz, fundadora da Fundação Brasileira pelo Progresso Feministae concretizado em 1933. Ocorre que esse período foi marcado por intensas manifestações, impulsionados por um momento peculiar na história: a Proclamação da República, em novembro de 1889. O republicanismo era marcado por ideias abolicionistas e de igualdade, o que chamou a atenção de diversas mulheres que apoiaram o movimento republicano (SALAMANDRA,2015).

Após anos de reivindicações, cerca de quatro décadas e discussões, as mulheres conquistaram o direito de votar e serem eleitas para cargos no executivo e legislativo. Essas reivindicações feministas demandavam um status de igualdade, pois os homens sempre estavam à frente das mulheres no que se refere aos direitos e as mulheres desejavam chegar à mesma posição jurídica e social dos homens.

Além da luta pela educação e direitos políticos, houve também a luta pela inserção das mulheres no mercado de trabalho, posto que em tempos remotos estas só podiam se ocupar com as tarefas tradicionais determinadas pelo sistema patriarcal, como procriar, educar os filhos, seremboasesposas e dona de casa.

Foi durante as greves realizadas em 1907, intitulada “greve das costureiras”, e em 1917, com influência dos imigrantes europeus (espanhóis e italianos) e de inspirações anarcossindicalistas, que algumas mudanças passam a ocorrer. Na pauta estava a melhoria de condições de trabalho em fábricas, em sua maioria têxtil, onde predominava a força de trabalho feminina. As demandas dos movimentos que resultaram nessas paralisações eram: a regularização do trabalho feminino, a abolição de trabalho noturno e a jornada de oito horas para as mulheres, tendo em vista que as jornadas eram extenuantes, perdurando até 14 (quatorze) horas diárias(FAHS,2018).

Nesse mesmo ano, 1917, foi aprovada a resolução para salário igualitário pela Conferência do Conselho Feminino da Organização Internacional do Trabalho e a aceitação de mulheres no serviço público. Garantiu-se, dessa forma, mais uma conquista para as mulheres, pois agora poderiam estender suas atividades e garantir salários mensais sem depender exclusivamente de seus pais ou maridos.

Por fim, vale ressaltar a conquista das mulheres no que se refere ao direito ao divórcio. Como já elucidado ao longo do texto, as mulheres eram tidas como propriedade de seus maridos, devendo-lhes obediência e não podendo ultrapassar as fronteiras de suas atividades tradicionais. Além disso, aquelas que não conseguissem manter o casamento eram chamadas de “desquitadas” que possuía o mesmo significado de “mulher sem honra” ou “sem moral”, sendo renegadas pela sociedade. Com o advento da Emenda Constitucional número 9, em 1977, o divórcio passa a ser instituído no Brasil. Ainda assim, a mulher só poderia casar-se novamente uma vez.

O direito de divorciar e recasar quantas vezes quisesse só foi garantido a partir da Constituição Federal de 1988, onde a mulher não mais se sentiu obrigada a conviver com outra pessoa. Nesse sentido, dispõe a autora Nogueira (2001) sobre o movimento feminista:

A emancipação das mulheres de um estatuto civil dependente e subordinado, e a reivindicação pela sua incorporação no estado moderno industrializado como cidadãs nos mesmos termos que os homens foram as preocupações centrais deste período da história do feminismo. Podem-se considerar como principais causas (históricas, políticas e sociais) desencadeadoras do feminismo, a revolução Industrial, num primeiro momento, e as duas grandes guerras num segundo momento. As principais reivindicações desta vaga foram essencialmente pelo direito ao voto, pelo qual o movimento sufragista se caracterizou, e pelo acesso ao estatuto de ‘sujeito jurídico’.

Portanto, foram necessários diversos embates para que as mulheres conseguissem elevar seu status jurídico e social, tendo em vista que, antes de suas conquistas, as mesmas não possuíam direito a um dos pilares mais básicos, que é a educação. Esse enfrentamento trouxe avanços, que, embora árduos e lentos, foi essencial para a consolidação da mulher, garantindo os direitos que lhes são fundamentais.

1.3 Os direitos sobre o corpo e conquistas dos movimentos feministas

No cenário mundial, o feminismo é um movimento social que busca a emancipação da mulher, especificamente no que se refere à dominação do homem com a mesma, fruto do machismo (MARQUES, 2015). Busca-se, com esse movimento, combater os preconceitos sofridos pelas mulheres, lutando por uma sociedade mais igualitária. Foi a partir do século XIX que as mulheres passaram a fazer reivindicações pelos seus direitos, sendo criada, nessa época. a Fundação Brasileira pelo Progresso Feminista, tendo Bertha Lutz como fundadora.

Nesse contexto, mulheres se reuniam criando associações e grupos de reflexões, nas quais eram discutidas suas angústias e problemas até então individuais, passando a tornar-se questões coletivas e, logo após, questões públicas. Nessas reuniões o foco da questão girava em torno de problemas como a violência sexual e familiar contra a mulher. Entre as demandas, se alegava ser um tema que deveria ser publicamente discutido e solucionado, tendo em vista a gravidade da sua natureza, muito embora fosse culturalmente tratado como um problema restrito ao âmbito doméstico(ALVES,1985).

Logo quando se depararam com a luta que teriam pela frente, as mulheres passaram a fortalecer ainda mais esses movimentos, e tiveram como primeira manifestação a “marcha das vadias” ocorrida no Canadá, especificamente na cidade de Toronto em 2011.

Esse movimento teve como enfoque o pensamento que transfere a culpa da agressão sexual para a vítima, insinuando que, de alguma forma, é a vítima que provoca o ataque ao usar vestes estimulantes e se comportarem de modo que chamem a atenção do agressor.

A finalidade do movimento foi demonstrar que nenhuma mulher deve ser rotulada pelas roupas que usa, bem como ser denominada culpada em um crime dessa natureza. Embora ainda não se tenha alcançado uma igualdade de fato com relação aos homens, houve progresso para as mulheres a partir dos movimentos feministas. A dominação total da figura masculina sobre a feminina tem sido enfrentada, tendo em vista, que as mulheres têm avançado na problematização de suas reais demandas e na conquistapordireitos(PINHEIRO,2012).

Outro fator de importante destaque refere-se ao fato de a própria Constituição de 1988 prever, em seu artigo 5º, inciso I, que homens e mulheres devem ser tratados de maneira igual, sem distinção de natureza.

Art.5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição

Assim sendo, é constitucionalmente previsto nas legislações brasileiras a igualdade de gênero e de direitos, devendo receber de todos um tratamento material igualitário. A atividade política e teórica do movimento feminista foi demonstrada eficiente para alterar o status jurídico da mulher.

Fora a legislação interna referente aos direitos fundamentais, existem documentos internacionais que coadunam com os ideais de igualdade referente às mulheres. Nesse sentido, o apoio da ONU aosdireitos das mulherescomeçou com a Carta da Organização.No artigo primeiro da referida Carta, está entre seus preceitos:

conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

Além disso, no dia 2 de julho de 2010, a Assembleia Geral da ONU criou um órgão denominado Entidade da ONU para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, ou ONU Mulheres, encarregado de acelerar os progressos para alcançar a igualdade de gênero e fortalecer a autonomia das mulheres, o qual começou a funcionar no dia 1 de janeiro de 2011.

Portanto, além do âmbito interno, as lutas feministas também ganham apoio na seara internacional, fazendo com que se tenha maior notoriedade e força diante do cenário centrado na figura masculina. Esse reconhecimento em âmbito internacional demonstra como a sociedade está evoluindo, pois a figura da mulher está sendo desvinculada da figura do homem como sua subordinada, e passando por um olhar de independência, por meio do qual lhe é possível exercer os seus direitos sem que precise de autorização de um terceiro, caracterizando uma grande evolução e trazendo força ao feminismo. Afinal, é através de suas lutas, e do empoderamento feminino, que as mulheres conseguem cada vez mais espaço em locais em que, antes, a figura feminina era quase inexistentes.

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