INTELIGÊNCIA GOVERNAMENTAL: O PAPEL DA ABIN
O emprego das ações de inteligência no combate ao crime organizado assume diversas facetas. A primeira delas refere-se ao planejamento estratégico das ações de segurança pública. Com base na coleta e no processamento de informações de caráter nacional e internacional – como rotas de tráfico, dados sobre o consumo em várias regiões do país, as novas tipologias –, pode-se fazer um mapeamento das atividades das organizações criminosas e das características dos diversos grupos que atuam em variados setores, estabelecendo-se as conexões.
Acrescente-se também a análise prospectiva, com o objetivo de identificar as tendências de ação do crime organizado e suas tipologias. Por meio dessas variáveis, é possível
traçar linhas mestras de ação na prevenção e no combate às organizações criminosas, em escala nacional, além de criar instrumentos para cooperação com outros entes da comunidade internacional.
Para esse tipo de análise de inteligência estratégica, é fundamental a existência de um órgão federal que reúna e processe os dados e informações – dados já processados – dos diversos setores de inteligência federais e municipais - no caso do Brasil, essa tarefa caberia à ABIN. Afinal, informações de caráter tático podem assumir importância estratégica quando reunidas e processadas sob uma perspectiva de inteligência de Estado, e não policial.
Além da capacidade de centralizar informações e transformá-las em análise estratégica a ser empregada na prevenção e planejamento de ações nacionais de combate ao crime organizado, a ABIN também adquire relevância no que concerne às possibilidades de treinamento dos agentes da Administração Pública federal e estadual que atuam nos setores de inteligência. Para isso, existe a Escola de Inteligência (ESINT), localizada na capital federal, que dispõe de estrutura física para abrigar alunos de todo o país em cursos variados.
Nesse sentido, convém destacar o treinamento que a ESINT vem ministrando a servidores públicos da área de inteligência, incluindo-se fiscais, agentes de polícia, servidores de autarquias e de outros Poderes, entre os quais magistrados e membros do Ministério Público. Além do aperfeiçoamento profissional em aspectos teóricos e práticos da atividade de inteligência, os cursos da ESINT permitem a integração entre pessoas e órgãos da comunidade de inteligência, o que por si já é relevante para o combate ao crime organizado.
Outra aplicação da atividade de inteligência por parte de um órgão como a ABIN está relacionada ao fornecimento de informações táticas – de pouca utilidade para o órgão federal isoladamente – relevantes para a inteligência policial estadual ou federal. Caberia lembrar que a ABIN possui escritórios em praticamente todas as capitais brasileiras e em outras cidades importantes. Essa estrutura já tem sido utilizada em alguns Estados no combate ao crime organizado, no apoio ao Ministério Público e às polícias estaduais.
Assim, de grande importância é a existência de um órgão central de inteligência de Estado, o qual não tenha obrigações nem compromisso com a investigação policial propriamente
dita, mas que contribua para o combate ao crime organizado por meio da centralização, processamento e distribuição de informações, e também com análises estratégicas que permitam aos órgãos de repressão, fiscalização e controle exercerem suas atividades na neutralização das organizações criminosas. Somente um órgão federal, sem objetivos policiais e que preste contas diretamente ao Chefe do Poder Executivo e ao Congresso Nacional, poderá desenvolver, com devida isenção, a inteligência de caráter estratégico essencial para a segurança pública e institucional.
INTELIGÊNCIA POLICIAL
Além da inteligência governamental, existe a inteligência policial, voltada para questões táticas de repressão e investigação de ilícitos e grupos infratores. Essa inteligência está a cargo – e deve aí permanecer – das polícias estaduais, civis e militares, e da polícia federal. É por meio desse tipo de atividade que se podem levantar indícios e tipologias que auxiliam o trabalho da polícia judiciária e do Ministério Público. No combate ao crime organizado, é muito mais com atividades de inteligência do que com grandes operações ostensivas que se consegue identificar esquemas ilícitos e desbaratar quadrilhas.
Operações de inteligência policial, conforme estabelece o Manual de Inteligência Policial do Departamento de Polícia Federal do Brasil, são "o conjunto de ações de inteligência policial que empregam técnicas especiais de investigação, visando a confirmar evidências, indícios e obter conhecimentos sobre a atuação criminosa dissimulada e complexa, bem como a identificação de redes e organizações que atuem no crime, de forma a proporcionar um perfeito entendimento sobre seu modus operandi, ramificações, tendências e alcance de suas condutas criminosas".
A inteligência policial, portanto, atua na prevenção, obstrução, identificação e neutralização das ações criminosas, com vistas à investigação policial e ao fornecimento de subsídios ao Poder Judiciário e ao Ministério Público nos processos judiciais. Buscam-se informações necessárias que identifiquem o exato momento e lugar da realização de atos preparatórios e de execução de delitos praticados por organizações criminosas, obedecendo-se aos preceitos legais e constitucionais para a atividade policial e as garantias individuais.
Quem deve desenvolver a inteligência policial, naturalmente, são as polícias civis e militares estaduais e a polícia federal, não cabendo esse tipo de atividades a órgãos como a ABIN ou aos setores de inteligência fiscal. Entretanto, quando se faz referência às atividades das organizações criminosas, a simples inteligência policial torna-se efêmera e de pouca utilidade para a garantia de segurança pública, se não for combinada com a inteligência governamental.
COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
A cooperação internacional entre os órgãos de inteligência é outro instrumento de grande relevância no combate ao crime organizado. Nesse sentido, além do intercâmbio de informações entre os serviços de inteligência e seus congêneres estrangeiros, também merecem destaque as iniciativas relacionadas a atividades conjuntas em encontros de cúpula entre as autoridades dos vários serviços, bem como o envio de agentes para treinamento nas escolas de inteligência das nações amigas.
O intercâmbio de dados e conhecimentos entre os serviços de inteligência é essencial para o combate às atividades de organizações criminosas transnacionais. No caso específico do Brasil, é fundamental que sejam mantidos contatos diretos e constantes entre os órgãos de inteligência do País e seus congêneres do Hemisfério, dos países africanos e das nações européias e asiáticas. Vale lembrar que pelo Brasil passam rotas importantes das atividades do crime organizado.A droga produzida nos países andinos e destinada ao mercado consumidor europeu e estadunidense, por exemplo, passa em larga escala pelo território brasileiro. Além disso, o Brasil costuma ser utilizado por organizações criminosas vinculadas à prostituição, ao tráfico de escravas brancas e, ainda, é alvo do tráfico de animais e plantas e da biopirataria. Portanto, para a produção de conhecimentos de inteligência eficazes, faz-se necessário o intercâmbio de dados entre os órgãos de inteligência sobre rotas, pessoas envolvidas em atividades criminosas e tipologias desenvolvidas pelo crime organizado.
Uma vez que o crime organizado gera problemas que ultrapassam as fronteiras nacionais, é cada vez mais complicado tentar neutralizar as atividades das organizações criminosas com políticas nacionais isoladas. Assim, essencial é a cooperação entre os órgãos de inteligência, sobretudo dos países do Hemisfério, para o estabelecimento de estratégias conjuntas de ação. Essa cooperação pode ser estimulada por encontros periódicos das cúpulas dos serviços de inteligência dos países do continente, nos quais sejam discutidos os grandes temas de segurança e buscadas linhas conjuntas para as operações de inteligência destinadas a neutralizar as atividades do crime organizado.
Finalmente, convém mencionar o grande valor do envio de servidores dos órgãos de inteligência para treinamento junto aos centros de formação dos países amigos. Além do aprimoramento dos quadros no que concerne a técnicas e métodos diversificados, o treinamento externo permite o contato com colegas estrangeiros, garantindo a consolidação das comunidades de inteligência hemisférica e internacional. Nesse sentido, importantes passos têm sido dados pelos órgãos de inteligência brasileiros, sobretudo a ABIN e sua ESINT para permitir que seus quadros sejam enviados para treinamento junto a serviços de inteligência dos países do Mercosul, do Hemisfério e até de outros continentes. Além disso, anualmente, parte do orçamento da ESINT é destinado a cursos de formação e aperfeiçoamento de pessoal oriundo de países amigos, com destaque para as nações latino-americanas e africanas.
Portanto, apesar de todas as dificuldades pelas quais passa o setor público no Brasil e em outros países do hemisfério, tem aumentado o intercâmbio internacional entre os serviços de inteligência. Essa cooperação certamente já produz efeitos positivos no combate ao crime organizado.
A REALIDADE BRASILEIRA
A comunidade de inteligência brasileira pode ser de grande utilidade no combate ao crime organizado. Entretanto, há alguns aspectos que necessitam de aperfeiçoamento para facilitar a ação dos órgãos de inteligência no Brasil, os quais relacionamos a seguir.
1. Necessidade de implementação de mecanismos de cooperação, coordenação e controle
Talvez o maior problema da efetividade das ações de inteligência no Brasil seja a ausência de um sistema que promova a cooperação entre os diversos órgãos que atuam nessa área. O que se percebe é que, na maior parte dos casos, há dificuldade de integração entre órgãos como a polícia, os organismos de fiscalização e a ABIN. Esse problema é perceptível também em outros países onde não há um órgão central de inteligência interna – como no caso dos EUA. O crime organizado, por sua vez, encontra-se bem estruturado e tira proveito dessa ausência de um ente que assuma a direção das ações de inteligência na segurança pública.
A solução plausível para o problema pode ter início pelo estabelecimento de legislação que dê o devido respaldo a um órgão central de inteligência – no caso brasileiro, a ABIN –, para que a ele sejam encaminhadas cópias de todos os documentos de inteligência produzidos pelos diferentes órgãos.
Claro que tal conduta implicaria uma reestruturação nos procedimentos internos de cada órgão, o que encontra resistências e exigiria incremento de pessoal, equipamentos, treinamento e mudanças nas diretivas da ABIN. Difícil, entretanto, será que se consiga qualquer ação efetiva sem a centralização das informações geradas pela comunidade de inteligência. O SISBIN e o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública deverão contribuir para esse trabalho.
No caso brasileiro, o estabelecimento de um órgão centralizador das informações fornecidas pela comunidade de inteligência requer mesmo que se repense o papel da ABIN nesse contexto. Alguns especialistas em inteligência e segurança pública argumentam que a ABIN deveria ficar encarregada apenas de inteligência externa, deixando-se para outro órgão as questões relacionadas à segurança pública e à inteligência interna.
2. Criação de um sistema de bancos de dados de inteligência nacional
Outro aspecto que no Brasil dificulta o emprego da inteligência no combate ao crime organizado é a ausência de um banco de dados nacional que reúna todas as informações processadas pelos diversos órgãos e as centralize, disponibilizando-as para os outros entes do sistema – tudo isso em conformidade com a legislação relacionada ao sigilo das informações. No caso brasileiro, ainda não há legislação que garanta o encaminhamento e a segurança dos dados de inteligência entre os órgãos.
A ausência de um banco de dados nacional para a atividade de inteligência é um problema sem grandes dificuldades de resolução, mas que tem contribuído para a ineficiência da atividade de inteligência em diversos setores da Administração Pública.
3. Ausência de Cultura de Inteligência entre os órgãos da Administração Pública
A presente questão envolve as deficiências e vulnerabilidades relacionadas à falta de conhecimento de condutas e procedimentos essenciais para instituições e agentes públicos que lidam com informações sigilosas e com pessoas e temas relacionados à segurança. Essa cultura pode ser estimulada por meio de treinamentos e a apresentação da atividade de inteligência a esses órgãos.
A ABIN tem promovido cursos para magistrados, membros do Ministério Público e servidores da Administração Pública direta e indireta, federal e estadual, que lidam com questões relacionadas ao combate às organizações criminosas. Tais cursos têm gerado efeitos bastante positivos, em especial junto a representantes do Poder Judiciário e do Ministério Público, que passam a se conscientizar de que mecanismos de inteligência podem ser utilizados.
Além do estímulo ao entrosamento e à cooperação entre os agentes públicos, os cursos ministrados pela ESINT poderiam garantir o estabelecimento de uma cultura de inteligência na Administração Pública, o que é de significativa importância para a garantia do sigilo e da preservação e difusão de dados essenciais à segurança pública. Não se trata de restabelecer as "estruturas tentaculares danosas do antigo SNI", mas, sim, o incentivo à percepção da importância da atividade de inteligência no Estado democrático e a aplicação desses conhecimentos no combate às organizações criminosas.
4. Dificuldades orçamentárias
As dificuldades orçamentárias são um dos maiores empecilhos à atividade de inteligência no Brasil, como acontece na maioria dos países latino-americanos. Apenas para citar o exemplo da ABIN, esse órgão tem aprovado para 2003 um orçamento de cerca de US$ 40,000,000.00, dos quais a maior parte destina-se a pagamento de pessoal. A situação dos setores de inteligência das polícias e de outros órgãos brasileiros não é muito diferente.
Não se pode pensar em prevenção e muito menos em combate às atividades das organizações criminosas sem um investimento significativo em inteligência. Afinal, investimentos em inteligência costumam dar retorno maior que a simples aplicação de recursos na solução de questões como a superlotação de presídios ou a falta de equipamentos e pessoal das polícias – não que essas também não sejam de grande relevância.
Um exemplo de quanto o investimento em inteligência pode dar retornos mais concretos refere-se aos recursos aplicados em inteligência financeira. Com apoio a essas atividades pode-se chegar às altas somas de dinheiro aplicadas pelas organizações criminosas e neutralizá-las em seu aspecto mais vulnerável: a transformação de seus recursos ilícitos em lícitos. O investimento no combate à lavagem de dinheiro requer grandes recursos para o aperfeiçoamento de técnicos e de equipamentos, mas com retorno garantido.