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Crime de venda de medicamento sem registro da autoridade competente e de procedência ignorada: desnecessidade de laudo pericial para comprovação da materialidade e aplicação de pena em analogia ao do crime de tráfico de drogas

A importância da aplicação do Direito Penal na conduta de vender medicamento sem registro da autoridade competente e de procedência ignorada, dados os riscos que daí podem advir para a saúde pública, sendo razoável o afastamento de um laudo pericial.

 

A conduta de vender medicamento sem registro da autoridade competente e de procedência ignorada assim está tipificada no Código Penal Brasileiro:

Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:

[...]

§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado:

[...]

§ 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:

I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;

[...]

V - de procedência ignorada

 

Discorrendo sobre esses dois incisos e explicando as expressões ali contidas, Nucci leciona:

 

a) sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente: é o produto que, embora não adulterado de qualquer forma, deixou de ser devidamente inscrito no órgão governamental de controle da saúde e da higiene pública.

[...]

e) de procedência ignorada: ou seja, é o produto sem origem, sem nota e sem controle, podendo ser verdadeiro ou falso, mas dificultando, sobremaneira, a fiscalização da autoridade sanitária. É um nítido perigo abstrato” (NUCCI, Guilherme de Souza. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 992 e 993) (grifos inovados)

 

Não há, inclusive, necessidade de laudo pericial atestando a situação para a comprovação do crime, consoante entendimento do Tribunal da Cidadania:

 

RECURSO ESPECIAL. POSSE, COM INTUITO DE VENDA, DE SIGNIFICATIVA QUANTIDADE DE MEDICAMENTOS SEM REGISTRO E COM VENDA PROIBIDA PELA ANVISA. PRAMIL E CYTOTEC. ABSOLVIÇÃO NA CORTE A QUO, CALCADA NO ENTENDIMENTO DE QUE O LAUDO PERICIAL FOI SILENTE AO NÃO CONSTAR A EXIGIBILIDADE DE REGISTRO DOS MEDICAMENTOS. NEGATIVA DE VIGÊNCIA AOS ARTS. 273, § 1º-B, I, DO CP; ART. 386, III, DO CPP; ARTS. 1º E 4º, DA LEI N. 5.991/1973; E ARTS. 1º E 12, DA LEI N. 6.360/1976. PROCEDÊNCIA. EXIGIBILIDADE QUE DECORRE DA LEI FEDERAL. RESTABELECIMENTO DA CONDENAÇÃO. RETORNO DOS AUTOS AO TRIBUNAL A QUO. 1. Consoante o disposto nos arts. 1º e 12, ambos da Lei n. 6.360/1976, só é admissível a venda de medicamento no território nacional, inclusive importado, após registro no órgão público competente. 2. Se o registro figura como condição para a difusão de medicamento, nos termos da lei, afigura-se desnecessário que o laudo pericial ateste a sua exigibilidade, sendo suficiente - para fins de caracterização do crime tipificado no art. 273, § 1º-B, I, do Código Penal -, evidência de que o medicamento, objeto de difusão, não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. 3. No caso, além da falta de registro, atestada em laudo pericial, há atos normativos, referenciados na sentença, que proíbem a comercialização dos medicamentos apreendidos, circunstância mais que suficiente para caracterizar o crime. 4. Recurso especial provido a fim de restabelecer a condenação do recorrido com relação ao crime tipificado no art. 273, § 1º-B, I, do Código Penal, determinando o retorno dos autos ao Tribunal a quo para análise das demais questões suscitadas na apelação, que ficaram prejudicadas com o acolhimento da tese ora afastada. (STJ, REsp 1755862/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 18/09/2018, DJe 08/10/2018)

 

A doutrina e a jurisprudência debatem, ainda, a respeito da pena prevista para esse tipo penal, qual seja, 10 (dez) a 15 (quinze) anos de reclusão. A pena mínima preceituada para o crime é superior à do delito de homicídio simples, por exemplo, que parte da basilar de 6 (seis) anos.

 

Há Tribunais que defendem a aplicação tal qual determina a legislação. A título exemplificativo:

 

PENAL E PROCESSUAL PENAL. VENDA DE MEDICAMENTOS SEM REGISTRO E DE PROCEDÊNCIA IGNORADA. PRECEITO SECUNDÁRIO DO ART. 273, DO CP. CONSTITUCIONALIDADE. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU MANTIDA. 1. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é constitucional a norma secundária do artigo 273, do CP, a qual comina ao crime de vender medicamentos sem registro ou de procedência ignorada a pena mínima de 10 (dez) anos de reclusão. 2. Comprovado nos autos que os réus tinham em depósito, para venda, medicamentos sem registro e de procedência ignorada, é de ser mantida a pena aplicada pelo juiz de primeiro grau, à luz da jurisprudência do STF. 3. Recursos conhecidos e desprovidos. (TJ-DF 20140410037007 DF 0003240-37.2014.8.07.0001, Relator: JESUINO RISSATO, Data de Julgamento: 12/04/2018, 3ª TURMA CRIMINAL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 18/04/2018 . Pág.: 286/294)

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Em verdade, o STF, no Recurso Extraordinário 979962 RG, em 03/08/2018, reconheceu que há repercurssão geral do assunto, porém ainda não julgou a matéria. O Tema 1003 da Repercussão Geral foi assim descrito:

 

Recursos extraordinários nos quais se discute, à luz dos princípios da proporcionalidade e da ofensividade, se é constitucional a cominação da pena em abstrato prevista para importação de medicamento sem registro, tipificada no art. 273, § 1º-B, inc. I, do Código Penal e se é possível utilizar o preceito secundário de outro tipo penal para a fixação da pena neste caso.

 

Os que entendem que existe a desproporcionalidade defendem a aplicação analógica da pena descrita para o delito de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006), o que, sem dúvida, é bem mais benéfico ao réu.

 

Sobre essa aplicação analógica de pena, Nucci explica o contexto da legislação:

[...] noticiou-se uma onda de eventos, trazendo à tona alguns problemas relativos à falsificação e adulteração de remédios, em particular, no contexto das pílulas anticoncepcionais. Por conta disso, em função da explosiva carga da mídia, o Legislativo, mais uma vez, editou lei penal, alterando o tipo penal do art. 273, bem como sua faixa de penas. Para um delito de perigo abstrato, criou-se a impressionante cominação de 10 a 15 anos de reclusão, algo equivalente a um homicídio qualificado. Há condutas tipificáveis nesse artigo, que são nitidamente pobres em ofensividade, razão pela qual jamais poderiam atingir tais reprimendas. O outro oposto seria considerar bagatela a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de remédios e similares, bem como outras condutas previstas nos §§ do art. 273. Exagero, por certo. Há relevância jurídica em punir tais atitudes, mas o ponto fulcral é a absurda penalidade inventada pelo legislador, sem qualquer critério. Diante disso, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, muitos julgados têm optado por soluções alternativas: alguns absolvem, alegando falta de provas (quando elas, na verdade, elas estão presentes); outros preferem usar a analogia in bonam partem, aplicando a pena de tráfico de drogas – o que me parece a mais sensata; terceiros, ainda, simplesmente, ignoram a pena e punem tal como prevê a lei. (…) optamos pelo meio-termo: entre a abusiva pena do art. 273 e a absolvição, por qualquer causa, quando presentes as provas suficientes, o ideal é o uso da analogia, com aplicação da pena do tráfico de drogas (art. 33, Lei 11.343/06). (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 990)

 

 

A propósito, o STJ, ao julgar a Arguição de Inconstitucionalidade no Habeas Corpus n. 239.363/PR, reconheceu essa desproporcionalidade da pena, declarou a inconstitucionalidade da reprimenda descrita para o delito do art. 273, § 1º-B, do Código Penal, e autorizou a aplicação, por analogia, das penas do crime de tráfico de drogas.

 

Ademais, a Corte Especial tem admitido, para os casos de incidência do art. 273, §1º-B, do CPB, a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, conhecida como “tráfico privilegiado”, mesmo sendo tipos penais diversos. Para tanto, deverá ser avaliado se, no caso concreto, o agente preenche os requisitos previstos no citado dispositivo legal, vejamos:

 

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FALSIFICAÇÃO, CORRUPÇÃO, ADULTERAÇÃO OU ALTERAÇÃO DE PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS. TER EM DEPÓSITO PARA VENDA, DISTRIBUIÇÃO OU ENTREGA A CONSUMO MEDICAMENTOS E INSUMOS SEM REGISTRO NO ÓRGÃO DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA COMPETENTE E DE PROCEDÊNCIA IGNORADA. INCONSTITUCIONALIDADE DO PRECEITO SECUNDÁRIO DO ART. 273, § 1º-B, DO CÓDIGO PENAL. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA PENA DO DELITO DE TRÁFICO DE DROGAS. POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO PREVISTA NO § 4º DO ART. 33 DA LEI N. 11.343/2006. 1. A Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade no Habeas Corpus n. 239.363/PR, declarou a inconstitucionalidade do preceito secundário do art. 273, § 1º-B, do Código Penal, autorizando a aplicação analógica das penas previstas para o crime de tráfico de drogas. 2. Analisando o referido julgado, esta colenda Quinta Turma firmou o entendimento de que, diante da ausência de ressalva em sentido contrário, é possível a aplicação da causa de diminuição prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 no cálculo da pena dos condenados pelo delito previsto no art. 273, § 1º-B, do Estatuto Repressivo. Precedentes. MINORANTE DO § 4º DO ARTIGO 33 DA LEI N. 11.343/06. PRETENDIDA APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. QUANTIDADE DE MEDICAMENTOS ALIADA ÀS DEMAIS CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. DEDICAÇÃO Á ATIVIDADE CRIMINOSA. REEXAME DE PROVAS. 1. Para a incidência do redutor previsto no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/06, é necessário o preenchimento dos requisitos legais: a) o agente seja primário; b) com bons antecedentes; c) não se dedique às atividades delituosas; e d) não integre organização criminosa. 2. Na hipótese, as instâncias de origem entenderam que o agravante se dedica a atividades criminosas, em razão da quantidade de substâncias apreendidas aliada a outros elementos do caso concreto, especialmente o fato de ter sido flagrado após denúncias de moradores das proximidades do local onde as drogas estavam sendo armazenadas e comercializadas. 3. Para afastar a conclusão das instâncias ordinárias no sentido de que o réu não se dedicava a atividades criminosas, seria necessário o revolvimento de matéria fático-probatória, providência vedada na via especial, ante o óbice da Súmula n. 7/STJ. SUBSTITUIÇÃO DA PENA CORPORAL POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. ANÁLISE PREJUDICADA, DIANTE DA MANUTENÇÃO DA REPRIMENDA. INSURGÊNCIA DESPROVIDA. 1. Mantida a pena em patamar superior a 4 anos de reclusão, incabível a substituição da sanção privativa de liberdade por restritivas de direitos, já que não preenchido o requisito objetivo previsto no art. 44, inciso I, do Código Penal. 2. Agravo regimental desprovido. (STJ - AgRg no AgRg no AREsp: 1610153 PE 2019/0319670-1, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 05/05/2020, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/06/2020)

 

Compreendemos que existe a importância da aplicação do Direito Penal na conduta de vender medicamento sem registro da autoridade competente e de procedência ignorada, dados os riscos que daí podem advir para a saúde pública, sendo razoável o afastamento de um laudo pericial para comprovar a materialidade do crime, vez que a própria ausência do registro e de documentos sobre a origem da medicação já são suficientes para a comprovação da prática do delito.

 

Conforme explicitado, há total razoabilidade no afastamento do preceito secundário legal, dada a gritante desproporcionalidade quando comparado a outros tipos penais, sendo uma boa e prudente alternativa a aplicação da pena do delito de tráfico de drogas, discussão que se aguarda que seja pacificada pelo STF quando do julgamento do tema já reconhecido como de repercussão geral.

 

 

Sobre as autoras
Inês Cristina Alencar de Albuquerque Barbosa

Mestranda em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará. Graduada em Direito, pós-graduada em Direito Processual, servidora do Ministério Público do Estado do Ceará.

Narjara Soares Magalhães

Graduada em Direito, pós-graduada em Direito Público, mestre em Planejamento e Políticas Públicas, servidora do Ministério Público do Estado do Ceará.

Informações sobre o texto

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