É inegável que a pandemia da covid-19 corresponde ao maior desafio enfrentado pela humanidade nos últimos 75 anos, demandando esforço, persistência e criatividade não só das pessoas, mas também dos Estados soberanos e de seus governantes.
Como é de se esperar, eventos históricos de proporções grandiosas, como guerras, desastres naturais e pandemias, têm a capacidade de alterar paradigmas sociais e estimulam a reflexão acerca do próprio papel do ser humano no mundo. Contudo, embora tais acontecimentos possuam inegável capacidade indutora de mudanças, é certo que a verdade dos fatos não pode simplesmente ser desvirtuada para se ajustar à conveniência do momento. E é isso que o Supremo Tribunal Federal (STF) fez ao declarar constitucional, por unanimidade, a Lei Complementar 173/2020 (LC 173/2020).
Nesse sentido, restou consignado no voto do relator das ADIs 6442, 6447, 6450 e 6525, Ministro Alexandre de Moraes, o qual foi seguido pelos demais Ministros da Corte, que a LC 173/2020 está em consonância com a Constituição, pois evita que “a irresponsabilidade fiscal do ente federativo, por incompetência ou populismo, seja sustentada e compensada pela União, em detrimento dos demais entes federativos. Pretendeu-se, pois, evitar que alguns entes federativos façam ‘cortesia com chapéu alheio’, causando transtorno ao equilíbrio econômico financeiro nacional” (destaque nosso).
O referido posicionamento parte do pressuposto de que, com a pandemia, a União passou a ‘bancar’ todos os demais entes federativos, ganhando, com isso, a prerrogativa de intervir, mediante lei federal, na gestão de suas finanças, independentemente da real situação econômico-orçamentária desses entes.
Vale dizer que, embora tenha promovido algumas medidas de assistência financeira aos Estados e Municípios, como é o caso da moratória de certas dívidas e a distribuição de parcos recursos – considerando o tamanho do país e do problema – para o combate à pandemia, a LC 173/2020 está longe de representar uma verdadeira assunção dos gastos dos entes subnacionais por parte da União.
Além disso, o que se viu é que a responsabilidade pelo efetivo enfrentamento à covid-19 foi assumida, desde o início, pelos Estados e Municípios, por meio de seus serviços de saúde, enquanto o Governo Federal preferiu adotar uma política errática, negacionista e confusa no combate à doença.
Em outras palavras, a ‘cortesia com chapéu alheio’, consignada pelo Ministro Alexandre de Moraes em seu voto, somente poderia ter acontecido caso a União tivesse, efetivamente, assumido as responsabilidades dos Estados e Municípios no combate à pandemia, suportando, em grande parte, as despesas que os entes subnacionais contraíram no decorrer desse último ano, o que, como sabemos, está longe de ser verdade.
Por sua vez, como já nos posicionamos aqui nesta Conjur, a LC 173/2020 desprezou a existência de diferenças sensíveis entre os mais de 5,5 mil municípios brasileiros, além de 26 Estados e o Distrito Federal, ao colocar todos em uma mesma situação de presumida ‘irresponsabilidade fiscal’ agravada pela hipotética ‘incompetência ou populismo’ de seus gestores, conforme defende o eminente Ministro Alexandre de Moraes, os quais aumentariam despesas – especialmente, de pessoal – em um momento de reconhecida gravidade no país.
Nesse contexto, todo e qualquer gasto reputado, unilateralmente, pela lei federal como desnecessário ou adiável, estaria vedado, pouco importando as peculiaridades e necessidades de cada ente federativo.
Melhor seria, nesse caso, se a LC 173/2020 utilizasse critérios, baseados em métricas orçamentárias, para classificar os entes federativos em níveis de saúde financeira, a fim de possibilitar maior ou menor grau de liberdade na gestão de suas finanças no período da pandemia. É o que fez, com sucesso, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/00), ao vedar, por exemplo, a concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração aos agentes públicos, caso a despesa total com pessoal exceda a 95% do respectivo limite, calculado com base na receita corrente líquida do ente (artigo 22, Parágrafo único, I).
E mesmo se superados todos os pontos acima levantados, é fato que a referida decisão abre perigoso precedente para fundamentar futuros ataques à federação brasileira e ao esquema de repartição de competências, sob o argumento vago de garantir o reequilíbrio das finanças nacionais, o que não pode contar com o aval da Corte Suprema, cuja função maior consiste em defender a Constituição e a forma de Estado federal por ela adotada, a qual, inclusive, é imutável por expressa previsão (artigo 60, §4º, I, da CF/88).
Portanto, torcemos para que tal entendimento seja revisto em um futuro breve e que iniciativas abusivas e centralizadoras da União, como é o caso da LC 173/2020, não mais encontrem ressonância nos tribunais brasileiros.