Discute-se se o Senado Federal ou a Câmara dos Deputados, no seu âmbito de competência privativa, traçado na Constituição, têm poderes para investigar atos cometidos pelos Estados-Membros, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios.
O artigo 146 do regimento do Senado diz:
'Não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes:
1- à Câmara dos Deputados
2- às atribuições do Poder Judiciário
3- aos Estados
A dúvida, portanto, é se competiria apenas às assembleias legislativas a criação de CPI para apurar irregularidades cometidas por governadores e secretários estaduais de Saúde.
Observo o artigo 58 da Constituição Federal:
Artigo 58 - O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.
(...) § 3º - As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo as suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
As comissões parlamentares são órgãos colegiados, nascidos na Câmara ou no Senado, com número certo de integrantes, incumbidos de analisar as proposições legislativas a fim de emitirem pareceres a respeito delas.
O Supremo Tribunal Federal já concluiu que a comissão parlamentar de inquérito destina-se a apurar fatos relacionados à Administração. Objetiva conhecer situações que possam ou devem ser disciplinadas em lei, ou ainda verificar os efeitos de determinada legislação, sua excelência, inocuidade ou nocividade. Seu escopo não é apurar crimes, nem, tampouco, puni-los competência esta dos poderes Legislativo e Judiciário. Se no curso de uma investigação venha a deparar-se com fato criminoso, dele dará ciência ao Ministério Público, para os fins de direito como qualquer autoridade, e mesmo como qualquer do povo(STF, RDA, 199:205).
Voltada para investigar fatos relacionados com as atribuições congressuais, a comissão parlamentar de inquérito te poderes imanentes ao natural exercício de suas competências, como colher depoimentos, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, notificando-as a comparecer perante ela e a depor(STF, 199:205).
Discute-se a questão da competência para que o Senado possa apurar fatos ocorridos nas diversas unidades da federação com relação a fatos ligados à administração de recursos para o atendimento da população por conta da pandemia da Covid-19.
Sobre ela disse o ministro Celso de Mello(Investigação parlamentar estadual: as comissões especiais de inquérito, in Justitia, p.155) que a competência para investigar é limitada pela competência para legislar, de tal sorte que será abusiva a utilização do inquérito parlamentar para elucidar fatos que refujam às atribuições legiferantes do órgão investigante.
Fábio Konder Comparato(Comissões parlamentares de inquérito: limites, direito público: estudos e pareceres, p.91) entende que "a atividade fiscal ou investigatória das comissões de inquérito há de desenvolver-se no âmbito de competências do órgão dentro do qual elas são criadas."
Por sua vez Alexandre Hissa Kimura(CPI-Teoria e Prática, Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 47) assim ensinou:
“Podem ser criadas comissões de inquérito respeitando-se as competências legislativas e administrativas que a Constituição conferiu à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios.”
Bem lembrou Carlos Alberto De Alckmin Dutra(Comissões Parlamentares de Inquérito: Sua competência investigatória) que à União, aos Estados Federados e aos Municípios é vedado invadir o campo de atuação legislativa exclusiva de cada entidade federativa, nos moldes enumerados pela Carta Política de 1988.
Ainda ensina Carlos Alberto De Alckmin Dutra(obra citada) que no caso Hammer v. Dagenhart (247 U.S. 251), a Suprema Corte norte-americana assentou que o Governo Federal fere o sistema federativo quando invade os poderes reservados aos Estados. Seguindo essa orientação, no caso United States v. Owlett (M. D. Pa. 1936), decidiu-se que as CPIs devem permanecer circunscritas ao seu campo de ação legislativa: The attempt (...) to investigate a purely federal agency is an invasion of the sovereign powers of the United States of America (...) The investigatory power of a legislative body is limited to obtain information on matters which fall within its proper field of legislative action(apud João Carlos Mayer Soares, in Poder sobre a informação: comissões parlamentares de inquérito e suas limitações, in Juris Sintese, p.2).
No entanto outra é a posição de Frederico Augusto D’ Àvila Riani(Comissão parlamentar de inquérito: requisitos para criação, objeto e poderes, Revista de direito constitucional de internacional, p.188-189) quando afirmou:
“Críticas podem ser feitas a estes critérios interpretativos (vinculação do objeto da CPI à competência do órgão Legislativo). Qual o critério para determinação da competência do órgão Legislativo que vai delimitar os possíveis objetos de uma CPI? São as competências legislativas privativas? São as competências legislativas concorrentes? São as competências privativas de cada Casa, em se tratando de Congresso Nacional? São competências materiais? São todas elas? Não nos parece seja esse (competência do órgão Legislativo) um bom critério delimitador do objeto de uma CPI. Principalmente porque grande parte de nossa legislação está dentro do que a doutrina chama de competência concorrente –art. 24, CF. E mais, os municípios podem legislar sobre tudo aquilo que se referir a legislação federal e estadual (art. 30, II, CF). Como, então, se delimitar o objeto da CPI pela competência legislativa? Se o fator determinante para a sua criação, ou não, for a competência para a criação de normas gerais, teremos, praticamente, só CPI’s federais, devido à peculiaridade de nosso federalismo, que concentra poderes na União. Outro aspecto é que o parlamento é, pelo menos em tese, o órgão estatal mais representativo da sociedade. É um órgão plural por excelência. Por isso, não se pode fazer uma interpretação restritiva no que diz respeito a suas atribuições.”
Então propôs o professor Riani, como exposto por Carlos Alberto De Alckmin Dutra(obra citada):
“Pensamos que a resposta adequada é o interesse público local. Em primeiro lugar, é primordial, imperativo, que o fato investigado seja realmente de interesse público. Em segundo lugar, é preciso que esse fato afete a vida dos indivíduos que estejam na circunscrição do órgão Legislativo que esteja instalando a comissão. Pode-se argumentar que sempre que houver interesse de um município haverá também do estado no qual ele se insere. E que se for interesse do estado também será da União. Entretanto, o critério proposto é baseado na inteligência do art. 30, I, da CF, quando é atribuída competência aos municípios para legislarem sobre interesse local. Esse interesse deve ser compreendido como peculiar interesse, interesse preponderantemente local. Assim, o critério estabelecedor do possível objeto da CPI é que o fato certo tenha interesse público. E depois, que ocasione lesão (ou pelo menos indícios) aos indivíduos da circunscrição do órgão Legislativo criador da Comissão Parlamentar. Para melhor compreender, podemos tomar como exemplo a CPI criada para investigar a queda na qualidade da telefonia fixa no Estado de São Paulo. Pelo critério da competência legislativa, só a União poderia criar uma CPI para investigar a qualidade do serviço de telefonia, sendo qualquer outra, que não criada em nível federal, inconstitucional. Isto porque o art. 22, IV, da CF dispõe que compete privativamente à União legislar sobre telecomunicações, e, principalmente, porque o art. 21, XI, confere competência à União para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações.”
Mas é ainda Carlos Alberto De Alckmin Dutra(obra citada) que nos ensina:
“Seria impossível e inviável a criação de CPIs federais para a elucidação de fatos ocorridos em âmbito estadual. A própria existência da Federação brasileira, com 26 Estados e um Distrito Federal já evidencia, por si só, a inviabilidade de o Congresso Nacional investigar, por meio de CPI, fatos de interesse dos Estados-membros. Se forem levados em consideração os Municípios, então a inviabilidade de investigação federal é ainda mais patente.”
“Quantas CPIs podem existir concomitantemente em cada Casa do Congresso: em média, 04 a 05 CPIs em trâmite na Câmara Federal e por volta de 03 no Senado? A existência de uma simples irregularidade por Estado-membro, hábil a gerar uma CPI, já levaria à necessidade de 27 CPIs no Congresso.”
Daí porque Carlos Alberto De Alckmin Dutra(obra citada) propõe que “o critério a ser observado para a verificação da legitimidade ou não de determinada CPI é, portanto, ao nosso ver, a existência de peculiar interesse da unidade federativa à qual pertença o parlamento na matéria objeto da almejada investigação, devendo o requerimento de instauração desta fundamentar objetivamente a existência desse interesse peculiar e sempre de caráter público.”
Vem a notícia, publicada pelo Estadão, em sua edição de 14 de abril do corrente ano, de que “em sessão realizada ontem, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) leu o requerimento de criação da CPI da Covid, cumprindo a ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso. Na guerra política, o presidente Jair Bolsonaro foi derrotado na estratégia de impedir a instalação da comissão, mas conseguiu incluir no escopo da investigação os repasses de verbas federais para Estados e municípios, ampliando o seu alcance.”
Entendo, data vênia de entendimento contrário, que a CPI deve examinar, a conduta do governo federal e, no máximo, os repasses federais, no sentido de se saber a União Federal repassou ou não recursos aos Estados, Distrito Federal e Municípios, mas não, como essas entidades federativas utilizaram tais recursos. Tal ofício caberá às Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais respectivas. Isso porque essas verbas repassadas já se encontrarão incorporadas aos Estados, Distrito Federal e Municípios.
É certo que há entendimento no sentido de que os recursos transferidos pela União, a estados e municípios, para prevenção e combate à pandemia (COVID-19) enquadram-se, até o presente momento, na categoria de transferências constitucionais e legais (“fundo a fundo”).
Caberá à Justiça Comum Estadual e não à Federal a instrução e julgamento de causas que envolvam repasse de verbas da União Federal a esses outros entes federativos e já por eles incorporadas.
Em matérias que envolvem a malversação de recursos do SUS por parte de Estados e Municípios, compete à Justiça Estadual o processo e julgamento do feito, com base nos arestos colacionados. Nesse sentido veja-se: CC 167204 Rel. Min. Gurgel de Faria, CC 168418 Rel. Min. Sérgio Kukina, CC 152715 Rel. Min. Benedito Gonçalves.
Tem-se ainda:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 131.067 -MA (2013/0369538-4) RELATOR: MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES Data da Publicação 07/02/2014PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA INSTAURADO ENTRE JUÍZOS FEDERAL E ESTADUAL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA AJUIZADA PELO MUNICÍPIO CONTRA EX-PREFEITO. SUPOSTAS IRREGULARIDADES NA UTILIZAÇÃO DE VERBAS FEDERAIS JÁ INCORPORADAS À MUNICIPALIDADE. SÚMULA 209/STJ. PRECEDENTES DO STJ. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.
Por simetria, se não cabe, no âmbito jurisdicional, a competência da Justiça Federal para tais casos, com certeza, não caberá ao Senado a apuração em CPI do uso dessas verbas repassadas aos Estados, Distrito Federal e Municípios e por eles já incorporadas.