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Vôo Gol 1907: da possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional.

Agenda 22/11/2006 às 00:00

O acidente ocorrido com o Boeing da Gol, exaustivamente noticiado desde então, acabou por ceifar 154 vidas humanas. Ao que parece, as conclusões finais sobre a tragédia que entrou para os anais da aviação brasileira como a maior de sua história ainda estão longe de ser alcançadas, como é possível extrair da divulgação diária de notícias ao longo destes quase 2 meses que se passaram. O presente texto, por óbvio, devido à extensão que comporta o tema, discorrerá apenas sobre alguns aspectos interessantes a orientar o raciocínio do leitor, registre-se.

Não obstante a incessante busca da verdade dos fatos pelo direito, na medida em que se almeja sempre a solução justa ao caso concreto, ao analisar as questões jurídicas envolvendo o ocorrido é possível depararmo-nos com uma hipótese instigante no que diz respeito à viabilidade de provimento jurisdicional initio litis em função do incontestável dano experimentado pelos familiares das vítimas do acidente, o que, por certo, se reveste de todos os predicados a gerar ferozes debates no meio jurídico.

Significa dizer, à luz do que prevê o ordenamento jurídico pátrio em relação ao sistema de normas de proteção dos direitos do consumidor, que existe, a nosso ver, a possibilidade plena da concessão dos efeitos antecipatórios da tutela, pelo juízo que vier a apreciar as ações envolvendo as indenizações por ato ilícito decorrente da violação dos deveres jurídicos não observados no caso em tela, uma vez que estamos diante de um fenômeno regido responsabilidade civil objetiva.

Da análise dos fatos, cremos ser possível chegar a uma conclusão primária juridicamente lógica e incontroversa: a perda das vidas dos passageiros em questão, indubitavelmente acarretou, de imediato, um dano aos respectivos familiares, sendo que destacaremos como suficiente à consecução e compreensão do presente trabalho o de natureza moral.

Apenas a título ilustrativo, para que o leitor disponha de condições a vislumbrar a dimensão desse dano, o jornal Folha de São Paulo, em sua versão eletrônica na internet (www.folha.uol.com.br) veiculou, no dia 08/10/2006, notícia intitulada "TRAGÉDIA DA GOL DEIXA AO MENOS CEM ÓRFÃOS". Em suma, tal matéria dá conta das conseqüências psíquicas pelas quais vêm passando os filhos que perderam seus pais em virtude da queda do avião, muitos dos quais, em vista da pouca idade para compreender o ocorrido, não obstante a própria dor, vêm agravando a dor dos familiares com quem convivem diariamente, ao indagarem sobre a ausência de seus pais a todo o momento.

Fornecido o exemplo, passamos agora a discorrer sobre a postura do Judiciário diante da situação fática ao apreciar um eventual pedido de tutela antecipada para a composição dos danos experimentados.

O Código de Processo Civil brasileiro regra a tutela antecipada no art. 273, e demais disposições subseqüentes, consignando ser licito ao juiz, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação, bem como haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação e fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.

De pronto, é possível notar que a existência de prova inequívoca a permitir tal provimento está cristalinamente demonstrada, expressa na queda do avião como fato notório, o que até mesmo dispensaria a parte autora de sua prova, a teor do que dispõe o art. 334, I do diploma legal em epígrafe. Por sua vez, como é de curial saber, a injustificada demora no provimento jurisdicional final fundamentaria a decisão sumária, se for levado em conta que a perda de um chefe de família importa, entre outros, e via de conseqüência, na perda da base de subsistência familiar, gerando, no mínimo, seqüelas de caráter alimentício, entre outras, logicamente. Quanto ao abuso de direito de defesa ou o manifesto caráter protelatório do réu, basta reportarmo-nos ao acidente ocorrido com um Boeing da Varig em 1989, o qual, até o momento em que este artigo é escrito, ainda está pendente de julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça, ou seja, um fato ocorrido há 17 anos, evidenciando, assim, a possibilidade da adoção, pelo réu, das condutas descritas no inciso II do art. 273. do CPC, visto que nossa sistemática processual prevê um número demasiadamente grande de recursos até que o processo chegue ao fim e haja a efetiva entrega da tutela ao jurisdicionado.

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Nada obstante, impende registrar que estamos diante de uma relação de consumo, fazendo com que toda e qualquer consideração seja objeto de analise à luz das disposições do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), posto que o sujeito protegido pelo referido codex é a parte vulnerável na relação de consumo, conforme assentado em 1985, pela ONU, em sua 106ª Sessão Plenária, através da Resolução nº 39/248, justificando, assim, o tratamento jurídico diferenciado que lhe confere, pelo menos em tese, condições materiais e processuais a litigar com o fornecedor.

Dentro da sistemática abraçada pelo diploma consumerista, a responsabilidade civil recebeu tratamento diverso do que lhe é tradicionalmente atribuído, pois veio a consagrar a responsabilidade objetiva do fornecedor, fundada no risco do empreendimento, e traduzida no dever jurídico sucessivo (responsabilidade) de reparar os danos advindos do descumprimento de um dever jurídico originário (obrigação), independentemente de culpa, sendo que o dever jurídico originário, aqui, está expresso na queda do Boeing, importando em inadimplemento contratual por parte da empresa aérea, ao não conduzir os passageiros incólumes ao destino final.

Todavia, somente para argumentar, mesmo se cogitarmos acerca de eventual falha do sistema de controle do espaço aéreo brasileiro, da mesma forma não se perquirirá a culpa, pois a responsabilidade civil do Estado também é objetiva, consoante dispõe a Constituição Federal em seu art. 37, § 6º, o que, de qualquer forma, autorizaria a concessão liminar dos efeitos antecipatórios da tutela jurisdicional.

No caso em exame, pouco importa quem foi o causador do dano para fins de assegurar o direito do destinatário da reparação, posto que, em qualquer caso, a responsabilidade será objetiva, seja ela por parte da empresa aérea transportadora, do Estado, ou até mesmo da empresa proprietária do jato Legacy que colidiu com a aeronave da Gol, pois a legislação consumerista, in casu, ao equiparar a consumidor todas as vitimas do evento, assegura-lhes o direito de ação em face de terceiros, consoante dispõe o art. 17. do CDC. O interesse maior é então a garantia da concretização das medidas protetivas do consumidor. Assim, transporta-se a discussão acerca do nexo causal para um plano secundário, em homenagem à eficácia que deve revestir o provimento jurisdicional pleiteado.

O simples fato da queda do avião, à luz dos fundamentos alinhados, por si só já é capaz de autorizar a concessão dos efeitos antecipatórios da tutela, para determinar, incontinenti, o pagamento de indenização a quem de direito, em razão de o juiz, através da cognição sumária, já saber ser a mesma devida. É, portanto, prova forte e imodificável!

No que tange ao perigo de irreversibilidade do provimento, podemos afirmar com segurança que tal inexiste, pois o direito está cabalmente demonstrado. Com o desastre, o dano moral se consumou, ou seja, já fez nascer nos parentes das vítimas o direito à correspondente reparação. Nesse especial cabe registrar a magistral lição de Luiz Fux: "Sob o ângulo civil, o direito evidente é aquele que se projeta no âmbito do sujeito de direito que postula. Sob o prisma processual, é evidente o direito cuja prova dos fatos sobre os quais incide revela-os incontestáveis ou ao menos impassíveis de contestação séria."

Como já apontado precedentemente, a morte dos passageiros do Boeing é fato, e, segundo a dicção do brocardo jurídico, "contra fatos não há argumentos!" Seria, no mínimo, em observação à construção feita pelo eminente Ministro, insensato não se considerar tal fato incontestável ou impassível de contestação séria!

Provável discussão poder-se-ia levantar, então, em relação à individuação do quantum a indenizar, tendo em vista que o juiz, no exercício de seu mister, tem de considerar uma série de requisitos objetivos e subjetivos para a fixação do respectivo valor. Porém, em se tratando do dano moral sob exame, não há, nesse particular, que se cogitar tal hipótese, se considerarmos pura e simplesmente o fato do prestador de serviço ter causado a morte dos passageiros. O direito à reparação se faz presente em face do evento morte, o que lhe reveste de liquidez e certeza, pelo que o magistrado, diante dessa característica, e a fim de resguardar o direito da parte, poderá fixar um mínimo a ser indenizado, já que o dano sumariamente observado é o denominador comum, sendo que outros fatos em especial que por ventura vierem a importar no aumento do quantum debeatur poderão, sem prejuízo, ser objeto de apreciação no decorrer da instrução processual, em harmonia com o devido processo legal.

Outra consideração que se faz imperiosa, e ainda toca na questão da irreversibilidade da decisão, diz respeito aos direitos constitucionalmente envolvidos no litígio. Se por um lado a antecipação dos efeitos da tutela pode importar em prejuízo econômico irreversível em relação ao réu, caso futuramente fique provado que a indenização não era devida nos moldes em que foi determinada, lado outro a sua não concessão importa em prejuízos irreversíveis atinentes aos direitos à honra subjetiva, à intimidade, à vida privada, os quais estão intimamente ligados à dignidade da pessoa humana, sendo que estes revelam-se prementes em virtude do dano presente, e são hierarquicamente superiores àqueles de ordem econômica, nos termos da Magna Carta. Ademais, no curso do processo podem ocorrer modificações na órbita econômica do réu, de tal sorte que o torne impossibilitado de cumprir uma possível sentença condenatória contra si, fazendo com que todo o processado tenha se tornado inútil para a parte vencedora.

Não é demais recordarmos que o juiz deve sempre orientar seu desígnio no sentido de que a lei existe pra servir à sociedade, e não o contrário, sob pena de se privilegiar a disposição literal do texto legal em detrimento do seu real espírito. Novamente recorremo-nos ao magistério de Luiz Fux, ao citar Miguel Reale, assinalando que "a tutela de evidência é regra in procedendo para o aplicador do direito que não está tão atrelado assim à ‘lógica formal’ mas antes à percepção dos fatores lógicos, axiológicos e éticos que antecedem essa operação de aplicação jurisdicional do direito".Somado a isto, como sempre faço questão de repetir em meus textos, há que se atentar para a regra contida no art. 5º da LICC, o qual orienta o julgador a observar os fins sociais a que a lei se dirige, e o regramento a ser observado nos fatos trazidos à baila é o contido no código consumerista, cujo espírito é o da proteção do consumidor em razão de sua vulnerabilidade no mercado de consumo, em função de nossa coexistência em uma sociedade massificada, conseqüentemente sujeita aos mais variados riscos. Assim sendo, o direito reclama uma tutela plenamente capaz de satisfazer os anseios do corpo social quando da ocorrência de fatos como este que examinamos, onde muitas vidas foram perdidas de uma só vez. Nada justifica a extremada cautela do magistrado a evitar possíveis danos de natureza econômica atinentes à pessoa do réu no processo quando o direito da parte ex adversa se revela cristalino, líquido e certo.

Em sede conclusiva, fica demonstrado, assim, o direito dos familiares das vitimas do acidente com o vôo 1907 em haver a respectiva indenização por danos morais, de forma sumária, diante do dano inconteste, sendo até mesmo dever do juiz conceder a antecipação dos efeitos da tutela pretendida, uma vez demonstrados seus pressupostos. É direito da parte, anote-se. Tudo isso se reveste de legitimidade em razão de estarmos diante de fatos cujas conseqüências são amparadas pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, concebido a garantir efetiva proteção aos respectivos tutelados, por serem a parte vulnerável na relação de consumo, fazendo jus, pois, à indenização devida, diante da possibilidade de cognição sumária do juiz em relação à prova inequívoca do dano sofrido.

Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. Vôo Gol 1907: da possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional.: Dano moral incontroverso e da responsabilidade objetiva do transportador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1239, 22 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9193. Acesso em: 19 dez. 2024.

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Título original: "Vôo Gol 1907: da possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional em face do dano moral incontroverso e da responsabilidade objetiva do transportador".

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