2 RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR CONDUTA COMISSIVA
Condutas comissivas são comportamentos que denotam uma ação, divergindo, portanto, das condutas omissivas, que ensejam uma inação. Como exemplo de um procedimento comissivo, ensejando responsabilidade estatal, cita-se o caso do agente da polícia que, visando a efetuar a prisão de um indivíduo, agride-o, fisicamente, sem nenhuma necessidade, causando-lhe lesões corporais.
Com efeito, diante de condutas comissivas ou omissivas dos agentes públicos, pode o Poder Público ser responsabilizado. Ocorre que, quanto às condutas omissivas, há controvérsias, posto que doutrinadores há que dizem ser a responsabilidade subjetiva, enquanto há outros que pregam que há responsabilidade objetiva.
No sentido de que a responsabilidade do Poder Público, em decorrência de danos causados por conduta omissiva, é subjetiva, há quem diga que o texto constitucional, que positiva a responsabilidade objetiva, dispõe de núcleo que denota apenas um procedimento comissivo, não rezando sobre conduta omissiva. Assim, para esse entendimento, a conduta omissiva caracteriza a responsabilidade subjetiva. Nesse sentido é o entendimento de Diogenes Gasparini (2005, p. 913):
O texto constitucional em apreço [art. 37, § 6º, da Constituição Federal](3) exige para a configuração da responsabilidade objetiva do Estado uma ação do agente público, haja vista a utilização do verbo ‘causar’ (causarem). Isso significa que se há de ter por pressuposto uma atuação do agente público e que não haverá responsabilidade objetiva por atos omissivos. (Destaques do original)
Celso Antonio Bandeira de Mello (2005, p. 935), comentando a responsabilidade objetiva do Estado, diferenciando-a da responsabilidade subjetiva, ensina o seguinte:
Há responsabilidade objetiva quando basta para caracterizá-la a simples relação causal entre um acontecimento e o efeito que produz. Há responsabilidade subjetiva quando para caracterizá-la é necessário que a conduta geradora de dano revele deliberação na prática do comportamento proibido ou desatendimento indesejado dos padrões de empenho, atenção ou habilidade normais (culpa) legalmente exigíveis, de tal sorte que o direito em uma ou outra hipótese resulta transgredido. Por isso é sempre responsabilidade por comportamento ilícito quando o Estado, devendo atuar, e de acordo com certos padrões, não atua ou atua insuficientemente para deter o evento lesivo. (Destaques do original)
Deveras, como o presente trabalho monográfico tem a finalidade de caracterizar a responsabilidade objetiva do Poder Público, as condutas estatais aqui estudadas são apenas as comissivas, já que é pacífico o entendimento de que caracterizam a responsabilidade sem culpa.
2.1 Fundamentos da responsabilidade objetiva
Os fundamentos da responsabilidade objetiva do Estado estão diretamente relacionados com a história da responsabilidade do Estado. Com o passar dos tempos, o Estado se tornou responsável para com seus administrados; atualmente, existe a responsabilidade objetiva do Poder Público. Explicitando os fundamentos da responsabilidade objetiva, invocando a teoria do risco administrativo, dentre outros relevantes argumentos, ensina José dos Santos Carvalho Filho (2002, p. 430):
Foi com lastro em fundamentos de ordem política e jurídica que os Estados modernos passaram a adotar a teoria da responsabilidade objetiva no direito público.
Esses fundamentos vieram à tona na medida em que se tornou plenamente perceptível que o Estado tem maior poder e mais sensíveis prerrogativas do que o administrado. É realmente o sujeito jurídica, política e economicamente mais poderoso. O indivíduo, ao contrário, tem posição de subordinação, mesmo que protegido por inúmeras normas do ordenamento jurídico. Sendo assim, não seria justo que, diante de prejuízos oriundos da atividade estatal, tivesse ele que se empenhar demasiadamente para conquistar o direito à reparação dos danos.
Diante disso, passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior quantidade de poderes haveria de corresponder um risco maior. Surge, então, a teoria do risco administrativo, como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado. (Grifos do original)
A necessidade da responsabilidade objetiva tornou desnecessário o ônus da comprovação da culpa do agente responsável pela lesão. Se assim não fosse, dificilmente seria o responsabilizado o Poder Público, eis que há uma desigualdade jurídica entre os administrados e o Poder Público, porquanto este dispõe de prerrogativas de direito público, que visam à tutela do interesse da coletividade, assegurando a prevalência jurídica destes interesses ante o particular.
Destarte, os fundamentos da responsabilidade objetiva do Estado dizem respeito aos motivos que originaram essa responsabilidade, como se depreende do entendimento da teoria do risco administrativo, que tornou desnecessário o ônus da comprovação de culpa ou de dolo do agente estatal responsável pela lesão, posto ser o administrado a parte hipossuficiente da relação jurídico-processual.
2.2 Pressupostos da responsabilidade objetiva
Para caracterizar a responsabilidade objetiva do Estado, deve o terceiro lesado comprovar o fato administrativo, o resultado (dano) e o nexo causal. A jurisprudência é assente com esses pressupostos, senão veja-se a seguinte decisão:
CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., 1967, art. 107. C.F./88, art. 37, par-6. I. A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa e (sic) irrelevante, pois o que interessa, e (sic) isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, e devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos onus (sic) e encargos sociais. II. Ação de indenização movida por particular contra o Município, em virtude dos prejuizos (sic) decorrentes da construção de viaduto. Procedencia (sic) da ação. III. R.E. conhecido e provido. (STF, RE 113587, UF: SP, DJ 03-04-1992, Rel. Carlos Velloso)
Com a devida vênia, colacionam-se, também, as lições de José dos Santos Carvalho Filho (2002, p. 436 - 437), explicitando os pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado, citando o fato administrativo, o dano e o nexo causal:
Para configurar-se esse tipo de responsabilidade, bastam três pressupostos. O primeiro deles é a ocorrência do fato administrativo, assim considerado como qualquer forma de conduta, comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída ao Poder Público. Ainda que o agente estatal atue fora de suas funções, mas a pretexto de exercê-las, o fato é tido como administrativo, no mínimo pela má escolha do agente (culpa in elegendo) ou pela má fiscalização de sua conduta (culpa in vigilando).
O segundo pressuposto é o dano. Já vimos que não há falar em responsabilidade civil sem que a conduta haja provocado um dano. Não importa a natureza do dano; tanto é indenizável o dano patrimonial como o dano moral. Logicamente, se o dito lesado não prova que a conduta estatal lhe causou prejuízo, nenhuma reparação terá a postular.
O último pressuposto é o nexo causal (ou relação de causalidade) entre o fato administrativo e o dano. Significa dizer que ao lesado cabe apenas demonstrar que o prejuízo sofrido se originou da conduta estatal, sem qualquer consideração sobre o dolo ou a culpa. Se o dano decorre de fato que, de modo algum, pode ser imputado à Administração, não se poderá imputar responsabilidade civil a esta; inexistindo o fato administrativo, não haverá, por conseqüência, o nexo causal. Essa é a razão por que não se pode responsabilizar o Estado por todos os danos sofridos pelos indivíduos, principalmente quando decorrem de fato de terceiro ou de ação da própria vítima. (Destaques do original)
Na decisão exarada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), abaixo epigrafada, há exemplo de conduta danosa de agentes públicos, bem como dos danos sofridos pelos particulares:
RECURSO ESPECIAL - INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS – MORTE DO MARIDO E PAI DOS AUTORES - DISPAROS EFETUADOS POR POLICIAIS MILITARES - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO - ALEGADA VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC - NÃO OCORRÊNCIA - PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS - SÚMULA N. 07/STJ - JUROS MORATÓRIOS A PARTIR DO EVENTO DANOSO - SÚMULA N. 54/STJ - CUMULAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS - SÚMULA N.
37/STJ - AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DO ARTIGO 20, § 4º, DO CPC. No tocante à alegada violação ao artigo 535, II, do Código de Processo Civil, o recurso não logra perspectiva de êxito, uma vez que não há nos autos qualquer omissão, pois o egrégio Tribunal a quo apreciou toda a matéria recursal devolvida. Nesse eito, salientou a Corte de origem que ‘os embargos declaratórios interpostos pela Fazenda ostentam nítida pretensão de reexame de matéria já decidida, o que não se admite’. A questão relativa ao cabimento da prestação de alimentos escapa do âmbito de cognição do recurso especial, pois necessário seria o reexame do conjunto probatório para verificar se a vítima efetivamente provia os meios de subsistência dos autores, o que encontra óbice no enunciado da Súmula n. 07 deste Sodalício. ‘No campo da responsabilidade extracontratual, mesmo sendo objetiva a responsabilidade, como na hipótese, os juros moratórios fluem a partir do evento danoso’ (Corte Especial - EREsp n. 63.608/RJ, Rel. p/acórdão Min. Cesar Asfor Rocha, DJ de 04.08.2003). ‘São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundas do mesmo fato’ (Súmula n. 37/STJ). Ausência de prequestionamento do artigo 20, § 4º, do Código de Processo Civil. Recurso especial não conhecido. (STJ, RESP 403126, Processo: 200200012510, UF: SP, OJ: SEGUNDA TURMA, Data da decisão: 21/08/2003, DJ DATA:25/02/2004, Rel. Franciulli Netto) (Destaques do original)
Com efeito, o fato administrativo diz respeito à conduta do agente estatal, nessa qualidade; o resultado diz respeito ao dano sofrido pelo administrado; e o nexo causal diz respeito ao fato de que o dano decorreu da conduta dos seus agentes.
Os danos sofridos pelos administrados podem ser materiais e morais, isolada ou cumulativamente. Tais danos, notadamente os morais, estão consagrados na Constituição de 1988, no art. 5°, V e X. In verbis:
Art. 5° [...] V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...].
A acumulação de danos materiais e morais foi pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), senão veja-se a Súmula nº 37: "são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato".
No dano material, o patrimônio da vítima é atingido, perdendo ou deteriorando, total ou parcialmente, os bens materiais economicamente avaliáveis; abrange os danos emergentes (os que a vítima, realmente, perdeu) e os lucros cessantes (o que a vítima, razoavelmente, deixou de ganhar). Já o dano moral corresponde à lesão de bens imateriais, denominados bens da personalidade, como, por exemplo, a honra e a imagem.
2.3 Excludentes de responsabilidade
A teoria do risco administrativo permite que o Estado comprove fatos que excluem sua responsabilidade, como a culpa exclusiva da vítima, a culpa de terceiro, o caso fortuito e a força maior. Tais fatos descaracterizam os pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado, já que não é a conduta do Poder Público que causa o evento danoso.
A culpa exclusiva da vítima, como o próprio nome diz, denota apenas a culpa do administrado, e não a do Estado. Como exemplo, cita-se o particular que se arroja em um veículo automotor do Estado, o qual vinha trafegando dentro dos padrões permitidos; nesse caso, não será responsabilizado o Poder Público, porquanto não há nexo causal, posto que a culpa foi do administrado, não decorreu da conduta do agente público.
Celso Antonio Bandeira de Mello (2005, p. 954) explica a ausência de responsabilidade do Estado pela culpa exclusiva da vítima, asseverando não haver nexo causal:
78.
Ainda sobre a culpa da vítima, vale destacar que, caso haja, também, culpa do Estado, a responsabilidade do Poder Público existe, só que de forma branda, de acordo com o calibre da culpa do terceiro. É a chamada culpa concorrente: culpa da vítima e do Estado. Sobre isso, veja-se o que expõe Celso Antonio Bandeira de Mello (2005, p. 954):
80.
A culpa de terceiro é a causada ao administrado por outrem, por um terceiro, e não pelo Estado. Diante dessa hipótese, deve o Poder Público expender esforços no sentido de comprovar a culpa do terceiro, sob pena de ter que indenizar o particular lesionado.
Quanto à força maior, ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 624) que: "[...] é acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, como uma tempestade, um terremoto, um raio. [...]". Deflui-se, portanto, que a ocorrência de força maior, causadora de dano ao administrado, exclui o nexo causal, ou seja, exclui a responsabilidade estatal. Vale ressaltar que a força maior, em alguns casos – omissão no serviço público - pode responsabilizar o Estado, conforme ainda esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 625):
[...] quando as chuvas provocam enchentes na cidade, inundando casas e destruindo objetos, o Estado responderá se ficar demonstrado que a realização de determinados serviços de limpeza de rios ou dos bueiros e galerias de águas pluviais teria sido suficiente para impedir a enchente.
Já o caso fortuito, é o acontecimento gerado por conduta humana, vale dizer, por conduta da Administração. Assim sendo, diante dessa hipótese, pode o Estado se eximir da responsabilidade. Entrementes, há controvérsia, posto que há autores que não a admitem como excludente, como, por exemplo, Celso Antonio Bandeira de Mello (2005) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 625):
Já a hipótese de caso fortuito, em que o dano seja decorrente de ato humano, de falha da Administração, não ocorre a mesma exclusão; quando se rompe, por exemplo, uma adutora ou um cabo elétrico, causando dano a terceiros, não se pode falar em força maior. (Grifos do original)
Já Diogenes Gasparini (2005, p. 902 - 903), admite o caso fortuito e a força maior como excludentes de responsabilidade do Estado:
[...] Em suma, diz-se que não cabe responsabilidade do Estado quando não se lhe pode atribuir a autoria do ato danoso. Afirma-se, assim, que em duas hipóteses o Estado não tem de indenizar.
A primeira diz respeito a acontecimento, imprevisível e irresistível, causado por força externa ao Estado, do tipo do tufão e da nevasca (caso fortuito) ou da greve e da grave perturbação da ordem (força maior). Destarte, demonstrado que o dano é uma decorrência de acontecimentos dessa ordem, não há o Estado que indenizar, dado não ter sido ele causador do dano, conforme decisões de nossos Tribunais, a exemplo do STF (RDA, 128:554) e do Tribunal de Justiça de São Paulo (RT, 509:141). (Destaques do original)
Veja-se que a definição de caso fortuito dada por Diogenes Gasparini (2005) é a mesma definição de força maior dada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006), e a de força maior dada por aquele é a mesma de caso fortuito dada por esta autora. O fato é que aquele autor (2005) admite os acontecimentos gerados por conduta humana – seja denominado de caso fortuito ou de força maior – causadores de danos aos administrados como excludentes de responsabilidade do Estado.
Parece assistir razão à Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006), no que tange aos conceitos de caso fortuito e de força maior, bem como na inadmissão de o caso fortuito (acontecimentos gerados por conduta humana) ser excludente de responsabilidade do Estado, porquanto há, realmente, uma conduta praticada pelo Poder Público. Sem embargo desse entendimento, a presente monografia tem tratado (e continuará tratando) o caso fortuito como excludente de responsabilidade do Estado.
2.4 Direito positivo brasileiro
No Direito brasileiro, a responsabilidade objetiva do Estado é regulamentada pela Constituição da República e pelo Código Civil. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2005, p. 236 - 237), comentando a responsabilidade objetiva do Estado na atual Constituição, ventilando acerca do intento do constituinte, diz o seguinte:
Preocupou-se ainda a Constituição vigente com o problema da responsabilidade do funcionário pelos danos que cause a terceiro no exercício de suas tarefas. Adotou a esse propósito o princípio da responsabilidade objetiva do Estado e das pessoas jurídicas de Direito Privado prestadoras de serviço público, atribuindo-lhes a obrigação de ressarcir os danos sem indagar da culpa ou dolo do agente. Todavia, o Estado e as demais pessoas mencionadas recuperarão o que pagarem se o funcionário se houve com dolo ou culpa.
Veja-se que esse autor (2005) denominou a responsabilidade em estudo de princípio.
2.4.1 Constituição Federal
Desde a Constituição da República de 1946, adotou o Brasil a teoria do risco administrativo (responsabilidade objetiva). A Constituição Federal de 1988, no § 6º, do art. 37, expressando a adoção dessa responsabilidade, vaticina o seguinte:
Art. 37 [...]
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
[...]
Comentando o texto constitucional, destacando-o em face às Constituições anteriores, diz José Afonso da Silva (2005, p. 675):
[...] a Constituição foi mais técnica desta vez, primeiro por incluir no campo da responsabilidade objetiva todas as pessoas que operam serviços públicos, segundo por ter abandonado o termo ‘funcionário’, que não exprimia adequadamente o sentido da norma, substituído pelo termo ‘agente’. (Destaques do original)
A Lei Maior é bastante eloqüente, falando não somente das pessoas jurídicas de direito público, mas também das de direito privado prestadoras de serviços públicos. Assim não era na Constituição anterior, que adotava, expressamente, a responsabilidade objetiva apenas para as pessoas jurídicas de direito público, não mencionando as privadas prestadoras de serviço público, conforme lembra Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 450):
A responsabilidade é objetiva e alcança todas as pessoas públicas ou privadas que prestem serviços públicos. Houve uma ampliação em relação à Constituição anterior (art. 107), que somente fazia referência às pessoas jurídicas de direito público. [...] (Grifo do original)
As pessoas jurídicas de direito público são as integrantes da Administração Pública Direta (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) e as da Administração Pública Indireta (autarquias e fundações públicas). As pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público são: as sociedades de economia mista e as empresas públicas, que integram a Administração Indireta; e as pessoas jurídicas não pertencentes à Administração Indireta, que prestam serviço público mediante delegação, quais sejam, as concessionárias, as permissionárias e as autorizatárias de serviço público.
No sentido de que as permissionárias são pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, é o seguinte excerto: "Entre as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público a que alude o § 6º do artigo 37 da Constituição Federal se incluem as permissionárias de serviços públicos". (STJ, RE 206.711, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 25/06/99)
Vale ressaltar que, no que pertine às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, o Estado responde subsidiariamente, conforme pontifica Diogenes Gasparini (2005, p. 915): "O Estado, em tais casos [responsabilidade das pessoas privadas prestadoras de serviço público], somente respondem subsidiariamente, [...]".
Quanto ao termo "prestadoras de serviço público", deflui-se, notoriamente, que estão excluídas da responsabilidade objetiva as pessoas jurídicas que não prestam serviço público. Assim, estão excluídas as empresas públicas e as sociedades de economia mista que exploram atividade econômica, conforme se depreende dos arts. 173, § 1º e 37, § 6º, ambos da Constituição Federal. Veja-se o que dispõe o art. 173, § 1º, da Constituição Federal:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
De importância fundamental, também, no texto constitucional, é a expressão "seus agentes, nessa qualidade". Destarte, indaga-se quem são esses agentes. A resposta está com Lúcia Valle Figueiredo (1995, p. 177):
Verifica-se, de conseguinte, que o conceito de agente público é bem mais amplo do que o de funcionário, pois incluem-se os agentes políticos, os particulares em colaboração com a Administração Pública, bem como os contratados temporariamente. (Grifos do autor)
Assim, se um agente público causa, indevidamente, mediante conduta comissiva, dano a terceiro, a Constituição garante a este a propositura de ação cível de indenização contra o Estado, o qual terá que ressarci-lo objetivamente.
Caso o agente público responsável pelo dano seja um magistrado, ou um membro do Congresso Nacional, há controvérsias, sendo que há quem diga que podem causar danos patrimoniais os Poderes Judiciário e Legislativo, e há os que entendem não causarem esses Poderes responsabilidade civil. Sem embargo dessa discussão, a fim de não ser desviado o objeto do presente trabalho monográfico, omitir-se-á quanto às referidas controvérsias. Até porque, conforme dito no início do capítulo anterior, a responsabilidade patrimonial aqui estudada não trata das condutas dos agentes do Poder Legislativo nem do Poder Judiciário, senão haveria menção expressa no título desta monografia.
O texto constitucional trata ainda do direito de regresso, instituto que será tratado no último título deste trabalho.
2.4.2 Código Civil
O Código Civil de 1916 (art. 15) previa a responsabilidade civil subjetiva da pessoa jurídica de direito público. Com a construção da responsabilidade estatal com base no Direito Público (teoria do risco administrativo), questionaram esse dispositivo os administrativistas da época, frisando que a responsabilidade do Estado deveria ser objetiva, tendo em vista a desigualdade jurídica entre o Estado e o particular. Com a vigência da Constituição de 1946, positivando a responsabilidade objetiva, todas as dúvidas foram espancadas, restando inaplicável o malfadado art. 15 do Código Civil de 1916.
O Código Civil vigente, já em consonância com a Constituição de 1988, previu a responsabilidade objetiva do Poder Público, conforme se vê na redação do art. 43. In verbis: "As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo".
Ocorre que o Código Civil vigente não menciona as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Nesse caso, dúvidas poderiam surgir no sentido de aplicar ou não a responsabilidade objetiva diante tais pessoas jurídicas. Entrementes, tendo em vista a existência de previsão constitucional, respondem, objetivamente, as pessoas jurídicas em comento, sob pena de a legislação substantiva civil ferir a Constituição da República.
2.5 O caso Vôo Gol 1907
O vôo 1907 da Gol, que levava 155 pessoas (149 passageiros e seis tripulantes), saiu de Manaus (AM) com destino ao Rio de Janeiro, com escala prevista em Brasília. Durante o percurso, colidiu com um jato Legacy, da Embraer, o Boeing 737-800, resultando na sua queda, na tarde da sexta-feira (29.09.2006), no norte do Mato Grosso, a 30 km do município de Peixoto de Azevedo (MT), não deixando nenhum sobrevivente. Não é demais frisar que tal acidente relembra a tragédia de 31 de outubro de 1996, quando um Focker 100 da TAM caiu em São Paulo, logo após sua decolagem, deixando 99 pessoas mortas, a maioria carbonizada.
Na ocasião, a Gol Linhas Aéreas afirmou que reconhecia a sua responsabilidade objetiva quanto às indenizações devidas às famílias das vítimas do acidente com o vôo 1907, informou também iria providenciar o traslado dos corpos até o local de sepultamento, além de tomar medidas para os procedimentos legais e burocráticos para a obtenção dos atestados de óbitos.
Deveras, a responsabilidade da Gol Linhas Aéreas é objetiva, pois se aplica, no caso em comento, o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, porquanto essa empresa é uma pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público. O art. 21, XII, "c", da Constituição da República, afirma que compete à União conceder os serviços de navegação aérea. Portanto, em que pese a contratação da companhia que executa o serviço se dê por meio de um negócio jurídico de direito privado, a atividade que é prestada pela empresa de aviação se caracteriza como serviço público. O contratante, pois, é usuário desses serviços.
Com efeito, têm as famílias das vítimas direito a uma reparação patrimonial, tendo em vista a ocorrência de danos materiais e morais. Assim, podem ajuizar ação cível contra a empresa Gol, sem a necessidade de comprovar a existência de culpa ou de dolo de seus agentes, na prestação do serviço.
Quanto à possibilidade de existência de culpa (imprudência) de terceiro (jato Legacy, da Embraer, o Boeing 737-800), que caracteriza a excludente de responsabilidade estatal, impende à empresa Gol comprová-la, sob pena de arcar com os prejuízos sofridos pelas famílias das vítimas.