4 DIREITO DE REGRESSO
O direito de regresso garante àquele que vier a sofrer o prejuízo, posteriormente, recuperá-lo de terceiro, que por algum motivo, é seu garante. A denunciação da lide é o instrumento processual que visa a incluir no processo nova ação, fundando-se no direito de regresso.
Tendo em vista a influência que a denunciação da lide exerce sobre o direito de regresso, suscitando controvérsias sobre a possibilidade de seu cabimento na responsabilidade patrimonial do Estado, já que pode interferir na responsabilidade objetiva, optou-se por tratar desse assunto no último capítulo desta monografia.
4.1 Noções sobre o direito de regresso
O direito de regresso, em sede de responsabilidade estatal, é uma ação da pessoa jurídica de direito público, ou privada prestadora de serviço público, contra o agente público responsável pelo evento danoso, caso tenha este agido com dolo ou culpa. Sobre essa ação, vejam-se as lições de Diogenes Gasparini (2005, p. 909), conceituando-a, fazendo comentários e estabelecendo requisitos para seu cabimento:
[...] A ação regressiva é medida judicial de rito ordinário, que propicia ao Estado reaver o que desembolsou à custa do patrimônio do agente causador direto do dano, que tenha agido com dolo ou culpa no desempenho de suas funções. Essa ação não cabe se o agente público não agiu com dolo ou culpa. Tal medida deve ser interposta, uma vez transitada em julgado a sentença que condenou a Administração Pública, ou após esse pagamento, nos casos de acordo. [...]
São requisitos dessa ação: a) a condenação da Administração Pública a indenizar, por ato lesivo de seu agente; b) o pagamento do valor da indenização; c) a conduta lesiva, dolosa ou culposa do agente causador do dano. Desse modo, se não houver o pagamento, não há como justificar-se o pedido de regresso, mesmo que haja sentença condenatória com trânsito em julgado e o agente tenha-se conduzido com dolo ou culpa. Observe-se que o primeiro requisito pode não existir se a satisfação do prejuízo causado aconteceu por via amigável. Neste caso, devem ficar cabalmente demonstrados os dois últimos, ou seja, o pagamento e a culpa ou dolo do agente público.
Observando os requisitos colocados por Diogenes Gasparini (2005), percebe-se que a ação regressiva necessita da comprovação da culpa ou do dolo do agente causador do dano, fato esse que caracteriza a ação em estudo como de responsabilidade subjetiva.
A ação regressiva do Estado se encontra no art. 37, § 6ª, parte final, da Constituição de 1988, que, similarmente ao contido em Constituições anteriores, reza o seguinte:
Art. 37 [...]
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (Grifos do autor)
[...]
A Constituição do Estado do Ceará, por sua vez, no capítulo IV, sobre o título Da Administração Pública, em sua seção I (Disposições gerais), no art. 154, parágrafo 4º, também concede o direito de ação regressiva contra o agente de pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviço público, que causare danos a terceiros. A Lei Orgânica do Município de Fortaleza, no art. 87, parágrafo 1º, também prevê a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e privado prestadoras de serviço público pelos danos que causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável pelo dano, nos casos de dolo ou culpa.
Comentando o direito de regresso consoante o texto constitucional, diz Yussef Said Cahali (1996) ser de caráter absoluto, não admitindo atenuação do legislador ordinário. No mesmo sentido, é a jurisprudência fornecida pelo autor referido (2005, p. 277):
TJRS, Órgão Esp.: ‘O Prefeito de São Luiz Gonzaga ajuizou ação direta de inconstitucionalidade do art. 55 da Lei Orgânica do Município de São Luiz Gonzaga, por afronta ao dispositivo nos arts. 29, supra, e 37, § 6º., da Constituição. Com efeito, diz o aludido artigo: ‘Art. 55. Todo servidor público é responsável por atos praticados nessa condição e, em caso de infração, responderá pelas conseqüências legais respectivas’. ‘Parágrafo único. O Município responderá pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, sendo obrigatório o uso de ação regressiva contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa grave, na forma da Constituição.’ O preceito municipal é inconstitucional, porquanto diminui a esfera de responsabilidade do servidor, para dizer que existe somente em caso de dolo ou culpa grave, quando o princípio constitucional é mais amplo: dolo e culpa, não aludindo a grau de culpa. Acolhe-se a ação para retirar a expressão ‘grave’ que se segue ao substantivo ‘culpa’ (4.11.91, maioria, RJTJRS 154/213)’. (Destaques do original)
Segundo Inacio de Carvalho Neto (2000), o direito de regresso é obrigatório apenas para as pessoas jurídicas de direito público, haja vista a indisponibilidade do interesse público, ao passo que é facultativo para as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, que podem dispensar seus agentes da ação regressiva.
A ação regressiva contra o agente culpado é de procedimento ordinário ou sumário, de acordo com as regras do estatuto processual civil (arts. 274 e 275). Ademais, é imprescritível, conforme art. 37, § 5º, da Constituição: "A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento". (Grifos do autor).
Entendendo ser imprescritível a ação regressiva, afirma Diogenes Gasparini (2005, p. 910) que:
O direito de regresso não prescreve, consoante expressamente declara a parte final do § 5º do art. 37 da Lei Maior. A ação de regresso pode ser ajuizada contra o agente causador do dano e, na sua falta, contra seus herdeiros ou sucessores, dado que obrigação meramente patrimonial. Ademais, pode ser intentada após o afastamento (exoneração, demissão, disponibilidade, aposentadoria) do agente causador do dano de seu cargo, emprego ou função pública. (Destaque do original)
Há possibilidade de ajuizamento de ação regressiva contra os herdeiros ou sucessores do agente causador do danos, conforme diz, expressamente, a Lei nº 8.112/90 (dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais), no art. 122, § 3º: "A obrigação de reparar o dano estende-se aos sucessores e contra eles será executada, até o limite do valor da herança recebida".
No tópico seguinte, a título de exemplo, estuda-se o direito de regresso no âmbito federal, de acordo com a Lei n° 4.619/65.
4.2 Ação regressiva da União contra seus agentes
Sem embargo de dispositivos legais estaduais e municipais, que dispõem sobre a ação regressiva, discorre-se, neste tópico, sobre a ação regressiva no âmbito federal. A lei federal nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, trata da ação regressiva no art. 122, § 2º: "Tratando-se de dano causado a terceiros, responderá o servidor perante a Fazenda Pública, em ação regressiva". Especificamente sobre o direito de regresso da União contra seus agentes, trata a Lei nº 4.619/65, a qual foi recepcionada pela Constituição vigente, já que não a fere direta ou indiretamente.
De acordo com o art. 1°, da Lei n° 4.619/65, percebe-se que é obrigatória a proposição da ação regressiva e que há a necessidade de os funcionários serem declarados culpados, a fim de que seja efetivada a ação regressiva. Veja-se o art. 1º:
Art. 1º Os Procuradores da República(6) são obrigados a propor as competentes ações regressivas contra os funcionários de qualquer categoria declarados culpados por haverem causado a terceiros lesões de direito que a Fazenda Nacional, seja condenada judicialmente a reparar.
O termo "funcionário" é explicitado pelo parágrafo único, desse artigo: "Considera-se funcionário para os efeitos desta lei, qualquer pessoa investida em função pública, na esfera Administrativa, seja qual for a forma de investidura ou a natureza da função".
O art. 2º, por sua vez, estabelece o prazo para ajuizamento da ação regressiva: 60 (sessenta) dias, a partir da data do trânsito em julgado da condenação imposta à Fazenda Pública. Caso haja descumprimento desse prazo, questiona-se se implicaria em prescrição. Diogenes Gasparini (2005, p. 909) diz que não há prescrição, e sim, infração administrativa: "[...] Se não proposta [a ação regressiva] nesse prazo, isso não significa a prescrição do direito. O descumprimento desse prazo pode implicar uma infração administrativa, nunca a perda do direito".
Contudo, a Lei nº 4.619/65, ainda em vigor, rege a ação regressiva na esfera federal. Ademais, é a mesma obrigatória, de forma que, caso incorram os casos legais, o Poder Público tem a obrigação de cobrar do agente estatal o valor despendido.
4.3 Denunciação da lide
Neste tópico, estuda-se a denunciação da lide formulada pelo réu. Mediante a denunciação da lide, a ação regressiva se efetiva não somente por meio de uma ação autônoma, proposta após o ressarcimento da parte lesionada, mas, também, de forma incidental, ou seja, na mesma ação proposta pela parte adversária do denunciante. A importância do seu estudo tem que ver por se relacionar com o direito de regresso efetuado pelo Estado.
4.3.1 Considerações sobre a denunciação da lide
A denunciação da lide é feita para resguardar o direito de regresso no mesmo processo, em face do princípio da eventualidade, visando a vincular o terceiro ao quanto decidido na causa e à sua condenação à indenização. Com efeito, o denunciante visa ao ressarcimento pelo denunciado de eventuais prejuízos que, porventura, venha a sofrer em razão do processo pendente.
Quando é formulada pelo réu a denunciação da lide, há uma intervenção de terceiro provocada: o terceiro é chamado a integrar o processo, porque a primeira demanda lhe é dirigida. Surge, portanto, a segunda demanda, que é incidental à demanda principal. Na sentença, o magistrado trata da relação jurídica entre a parte e o denunciante, e entre este e o denunciado. Primeiramente, analisa-se aquela relação; se for procedente, ou melhor, se o denunciado sucumbir, será analisada a ação de denunciação, que tanto poderá ser procedente como improcedente; se a ação principal for improcedente, a ação regressiva sequer será analisada.
O Código de Processo Civil trata da denunciação da lide no art. 70, que exprime o seguinte:
Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:
I- ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta;
II – ao proprietário ou ao possuidor indireto quando, por força de obrigação ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício, do locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direta da coisa demandada;
III – àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda. (Grifos do autor)
No caso em epígrafe, interessa a denunciação da lide fundamentada no inciso III, do art. 70, do CPC, uma vez que trata da ação regressiva, que pode permitir ao Estado a efetivação do direito de regresso constante do art. 37, § 6°, da Constituição de 1988.
Típico exemplo de denunciação da lide, com base no inciso III, sem ter o Poder Público como denunciante, é o caso das relações de contrato de seguro. Nesse caso, a empresa seguradora está obrigada a indenizar, em ação regressiva, os prejuízos de alguém, que é parte em ação judicial. A denunciação, então, inclui no processo instaurado, também, a demanda de regresso, para a eventualidade de o beneficiário vir a sucumbir na ação principal, caso em que será examinada a demanda subordinada.
4.3.2 Procedimento da denunciação da lide formulado pelo réu
Quando quem alega ser titular da pretensão regressiva for o réu, este deverá oferecer a denunciação da lide e requerer a citação do denunciado no mesmo prazo que dispõe para contestar a ação principal, isso sem prejuízo de oferecer, desde logo, sua resposta ao pedido demandado.
Se o denunciado aceitar a denunciação e contestar o pedido, o processo prosseguirá, de um lado com o autor, e de outro com os litisconsortes, denunciante e denunciado (art. 75, I, CPC). À primeira vista, parece que a denunciação da lide não acarreta nenhuma conseqüência negativa ao autor da ação, posto que continuaria no processo contra o réu, e este contra o denunciado. Ocorre que, na realidade, o denunciado assume poderes equivalentes aos de um litisconsorte unitário, e não de um assistente simples, posto que, conforme Fred Didier Jr. (2006), passa a defender interesses do denunciante em face de seu adversário (autor da ação), sem qualquer vínculo de subordinação. Com efeito, a contestação do pedido inicial pelo denunciado o coloca na condição de litisconsorte, sujeito, portanto, aos efeitos da sentença, direta e solidariamente, com o primitivo réu.
Se o denunciado confessar os fatos alegados pelo autor, poderá o denunciante prosseguir na sua defesa (art. 75, III, CPC), sem qualquer prejuízo, porquanto a confissão de um litisconsorte não pode prejudicar o outro (art. 350, do CPC). Caso o denunciado for revel, ou comparecer apenas para negar a qualidade que lhe foi atribuída, cumprirá ao denunciante prosseguir na defesa. É o que reza o art. 75, II, do CPC: "Feita a denunciação pelo réu: se o denunciado for revel, ou comparecer apenas para negar a qualidade que Ihe foi atribuída, cumprirá ao denunciante prosseguir na defesa até final;".
Criticando o art. 75, II, do CPC, acima transcrito, obtempera Fredie Didier Jr. (2006, p. 326), "[...] esse inciso foi pensado de acordo com o regramento do antigo chamamento à autoria, não estando em conformidade com a denunciação da lide. É, pois, regra que não deve ser aplicada. [...]". Entende, portanto, o referido autor (2006, p. 326), que "Revel o denunciado, cabe ao denunciante tomar a postura que mais bem lhe convier, não lhe sendo imputado o dever de prosseguir na defesa até o final, acaso assim não queira (inciso II do art. 75 do CPC). [...]".
Em suma, a denunciação da lide realizada pelo réu é utilizada durante o prazo da contestação. Realizando essa providência, o denunciado participa do processo juntamente com o réu, num litisconsórcio unitário.
4.3.3 Denunciação da lide pelo Estado
O Estado, fundado no princípio da economia processual, tem muito se utilizado da denunciação da lide, exercendo o direito de regresso contra o agente causador do dano, e muitos juízes têm deferido tal intento. Por intermédio desse instituto processual, obtém-se, na mesma sentença, a condenação do agente, sem que seja necessária a propositura de nova ação. Dessa feita, deflui-se que a denunciação da lide é assaz vantajosa ao Poder Público.
Ocorre que, conforme ventilado alhures, há controvérsia sobre o cabimento da denunciação da lide, sendo que há os que pugnam pelo seu cabimento, e os que enfatizam seu descabimento. Dessa controvérsia, surgiram as seguintes teorias: favorável, relativa e negativista.
4.3.3.1 Favorável
A maioria da doutrina processualista entende ser cabível a denunciação da lide pelo Estado, mesmo diante de responsabilidade objetiva. Argumentam que o art. 70, III, do CPC, rege as relações jurídico-processuais não somente entre particulares, mas, também, entre particulares e o Poder Público, este na qualidade de denunciante.
José dos Santos Carvalho Filho (2002) noticia que há quem entenda ser a denunciação da lide pelo Estado obrigatória, tendo em vista o que dispõe o caput do art. 70, do CPC ("A denunciação da lide é obrigatória:"). Deveras, sem adentrar no mérito da possibilidade de denunciação em sede de responsabilidade do Estado, não tem razão a tese da obrigatoriedade da denunciação da lide, posto que, em que pesem os entendimentos contrários, a denunciação somente é obrigatória na hipótese do inciso I, do art. 70, do CPC, e facultativa nas demais hipóteses (incisos II e III), senão veja-se o entendimento de Fredie Didier Jr. (2006, p. 310):
[...] a discussão sobre a ‘obrigatoriedade’ da denunciação da lide restringe-se à hipótese do inciso I do art. 70, que cuida da denunciação em caso de evicção. Em relação aos demais incisos (I e II), não há mais qualquer discussão: a não-denunciação da lide apenas implica a perda da oportunidade de ver o direito regressivo ser apreciado no mesmo processo, sendo permitido o ajuizamento de demanda autônoma para o exercício da pretensão de ressarcimento. [...](Destaques do original)
Outrossim, dando a entender que há quem afirme ser facultativa a denunciação da lide, e não obrigatória, diante da responsabilidade do Estado, posto que haveria um litisconsórcio facultativo, José dos Santos Carvalho Filho (2002, p. 452) cita a jurisprudência, dizendo que essa posição já foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal.
Averbando que o art. 70, III, do CPC, abrange o Poder Público, e não somente as relações jurídico-processuais entre particulares, diz Humberto Theodoro Júnior (2001, p. 113):
Em se tratando de responsabilidade civil do Estado, é a Constituição que, ao mesmo tempo que consagra o dever objetivo da Administração, de reparar o dano causado por funcionário a terceiros, institui também a ação regressiva do Estado contra o funcionário responsável, desde que tenha agido com dolo ou culpa (art. 37, § 6º).
Se o art. 70, nº III, do CPC, prevê a denunciação da lide ‘àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda’; e se o texto constitucional é claríssimo em afirmar que o Estado tem ‘ação regressiva contra o funcionário responsável’, não há como vedar à Administração Pública o recurso à litisdenunciação. (Destaques do original)
Comentando a orientação do Superior Tribunal de Justiça, ainda, diz Humberto Theodoro Júnior (2001, p. 114):
A moderna orientação do STJ é, porém, a de que, mesmo não sendo medida obrigatória, nada impede que a Fazenda Pública utilize a denunciação da lide ao seu servidor, quando demandada para responder civilmente por ato deste. Aliás, tem sido destacado que ‘é de todo recomendável que o agente público, responsável pelos danos causados a terceiros, integre, desde logo, a lide, apresente sua resposta, produza prova e acompanhe a tramitação do processo’. Portanto, pode e deve a entidade pública promover a denunciação da lide ao preposto, nas ações indenizatórias. (Destaque do original)
No mesmo sentido de Humberto Theodoro Júnior (2001), diz Inacio de Carvalho Neto (2000, apud FRIEDE, 1996, p. 454):
Reis Fiede, de forma muito semelhante à doutrina de Humberto Theodoro Júnior, leciona:
‘...A denunciação, para que o Estado exercite a ação regressiva contra o funcionário faltoso, realmente não é obrigatória. Mas, por se tratar de ação regressiva expressamente assegurada pela Constituição, uma vez exercitada, não pode ser recusada pelo juiz.
[...]’.
Mais adiante, afirma, ainda, o autor:
‘Se o art. 70, n° III, do CPC, prevê a denunciação da lide àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda; e se o texto constitucional é claríssimo em afirmar que o Estado tem ação regressiva contra o funcionário púbico responsável, não há como vedar à Administração Pública o recurso à litisdenunciação’. (Destaques do original)
Inacio de Carvalho Neto (2000, p. 176) cita outros autores que anuem com o cabimento da denunciação da lide: "Adelnilson Cruz, André Renato Miranda Andrade e Luiz Irajá Nogueira de Sá Júnior também concordam com este entendimento".
Em recentes decisões, o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a existência de prejuízos causados ao autor da ação em face do Estado gerados pela denunciação da lide, entendendo não ser a mesma obrigatória, afirmando que o Estado não perde o direito de regresso se não se utiliza do mesmo por intervenção da denunciação da lide, já que está garantido esse direito no art. 37, § 6°, da Constituição. Com efeito, ao afirmar o STJ que a denunciação da lide não é obrigatória, admite, por via oblíqua, seu cabimento. Como exemplo, veja-se a decisão abaixo:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. DENUNCIAÇÃO DA LIDE AO SERVIDOR. NÃO-OBRIGATORIEDADE. DIREITO DE REGRESSO ASSEGURADO. PRECEDENTES DO STJ. DESPROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. 1. A denunciação da lide ao servidor público nos casos de indenização fundada na responsabilidade objetiva do Estado não deve ser considerada como obrigatória, pois impõe ao autor manifesto prejuízo à celeridade na prestação jurisdicional. Haveria em um mesmo processo, além da discussão sobre a responsabilidade objetiva referente à lide originária, a necessidade da verificação da responsabilidade subjetiva entre o ente público e o agente causador do dano, a qual é desnecessária e irrelevante para o eventual ressarcimento do particular. 2. Ademais, o direito de regresso do ente público em relação ao servidor, nos casos de dolo ou culpa, é assegurado no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, o qual permanece inalterado ainda que inadmitida a denunciação da lide. 3. Orientação pacífica das Turmas de Direito Público do Superior Tribunal de Justiça. 4. Recurso especial desprovido. (STJ, REsp 606224, Relator(a) Ministra Denise Arruda (1126), Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA, Data do Julgamento 15/12/2005, Data da Publicação/Fonte DJ 01.02.2006 p. 437) (Grifos do autor)
Como se vê, há forte entendimento favorável ao cabimento da denunciação da lide em sede de responsabilidade patrimonial do Estado.
4.3.3.2 Relativa
A teoria relativa admite, em parte, a denunciação da lide, permitindo seu cabimento na hipótese de a ação indenizatória contra o Estado estabelecer culpa (ou dolo) do agente público, a fim de não onerar, demasiadamente, o administrado (autor da ação indenizatória), e tendo em vista o princípio da economia processual. Nesse sentido, são as lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006, p. 631):
Em resumo:
quando se trata de ação fundada na culpa anônima do serviço ou apenas na responsabilidade objetiva decorrente do risco, a denunciação não cabe, porque o denunciante estaria incluindo novo fundamento na ação: a culpa ou dolo do funcionário, não argüida pelo autor;
quando se trata de ação fundada na responsabilidade objetiva do Estado, mas com argüição de culpa do agente público, a denunciação da lide é cabível como também é possível o litisconsórcio facultativo (com citação da pessoa jurídica e de seu agente) ou a propositura da ação diretamente contra o agente público. (Destaque do original)
No mesmo pensar, é o escólio de Inacio de Carvalho Neto (2000, p. 183):
De imediato também há que se contrapor à teoria negativista. Negar ao Estado o direito de denunciar a lide ao agente seria cercear-lhe um direito legal, conforme decidiram o Tribunal Regional Federal na 2ª Região e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Ao nosso ver, a tese mais correta é a que admite a denunciação da lide ao servidor com restrições. Se é certo que lei processual não restringe expressamente a denunciação da lide quando o denunciante é o Estado, é também certo, entretanto, que o princípio da economia processual acaba por fazê-lo em alguns casos.
[...]
A nosso ver, o cabimento ou não da denunciação da lide vai depender da forma como os fatos foram descritos pelo autor na inicial da ação reparatória. Se este, já na inicial, reporta-se ao ato culposo do agente causador do dano, não haverá, na denunciação da lide, introdução de fato jurídico novo, não havendo qualquer impedimento à denunciação. Se, ao contrário, o autor descreve os fatos limitando-se aos requisitos mínimos para a configuração da responsabilidade objetiva do Estado, a denunciação da lide ao agente importaria em introdução de fato jurídico novo na discussão da causa, violando o princípio da celeridade processual e causando excessivo gravame ao autor.
Com efeito, para essa teoria, basta o que administrado, na peça exordial, manifeste-se acerca do agente público responsável pelo evento danoso, imputando-lhe culpa (ou dolo), para que o Estado possa denunciar o agente.
4.3.3.3 Negativista
A maioria da doutrina administrativista entende ser incabível a denunciação da lide em sede de responsabilidade objetiva do Estado. Weida Zancaner (1981), Lúcia Valle Figueiredo (1995), José dos Santos Carvalho Filho (2002), Celso Antonio Bandeira de Mello (2005), Diogenes Gasparini (2005), Hely Lopes Meirelles (2006), dentre outros, não admitem a denunciação da lide.
Hely Lopes Meirelles (2006), com clareza meridiana, averba que a ação regressiva a ser proposta pelo Estado em face do agente causador do dano somente deve ser ajuizada após a declaração de culpa do agente público, bem como após o ressarcimento do administrado pelo Estado. Veja-se o posicionamento desse doutrinador (2006, p 659):
A ação regressiva da Administração contra o causador direto do dano está instituída pelo § 6° do art. 37 da CF como mandamento a todas as entidades públicas e particulares prestadoras de serviços públicos. Para o êxito desta ação exigem-se dois requisitos: primeiro, que a administração já tenha sido condenada a indenizar a vítima do dano sofrido; segundo, que se comprove a culpa do funcionário no evento danoso. Enquanto para a Administração a responsabilidade independe de culpa, para o servidor a responsabilidade depende de culpa: aquela é objetiva, esta é subjetiva e se apura pelos critérios gerais do Código Civil. (Grifos do autor)
Tal entendimento corrobora com o art. 1º, da Lei nº 4.619/65, alhures comentado, que dispõe sobre a ação regressiva da União contra seus agentes, estabelecendo ser obrigatória a ação regressiva contra os funcionários somente após os mesmos serem declarados culpados. Destarte, como admitir a denunciação da lide se o agente público sequer foi declarado culpado?
José dos Santos Carvalho Filho (2002) faz uma analogia com o Código de Defesa do Consumidor, o qual não admite a denunciação da lide em se tratando de responsabilidade objetiva:
Aliás, o instituto da proteção ao hipossuficiente em relações jurídicas de caráter indenizatório foi o mesmo adotado pelo Código de Defesa do Consumidor, que, na relação de regresso, exige processo indenizatório autônomo, vedando expressamente a denunciação à lide. Nas hipóteses em que o comerciante é solidariamente responsável com o fabricante, construtor, produtor ou importador, o consumidor pode demandar qualquer deles e, para não ser prejudicado, a lei impõe que aquele que pagar a indenização deve exercer seu direito de regresso contra o outro responsável em ação diversa da ajuizada originariamente pelo consumidor. (Grifos do autor)
O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, é categórico no sentido de não ser cabível a denunciação da lide na responsabilidade objetiva, rezando ser cabível o direito de regresso somente após a efetivação da reparação do dano ao prejudicado, conforme se depreende da leitura do art. 13, parágrafo único. In verbis: "Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso". Como se não bastasse, o estatuto consumerista foi mais explícito em outro dispositivo, senão veja-se o art. 88: "Na hipótese do art. 13, parágrafo único deste código, a ação de regresso poderá ser ajuizada em processo autônomo, facultada a possibilidade de prosseguir-se nos mesmos autos, vedada a denunciação da lide". (Grifos do autor)
Weida Zancaner (1981, p. 64 - 65) frisa que, se for possível o cabimento da denunciação da lide, há prejuízos para o autor da demanda, procrastinando a ação do administrado contra o Estado:
Procrastinar o reconhecimento de um legítimo direito da vítima, fazendo com que este dependa da solução de um outro conflito intersubjetivo de interesses (entre o Estado e o funcionário), constitui um retardamento injustificado do direito do lesado, considerando-se que este conflito é estranho ao direito da vítima, não necessário para a efetivação do ressarcimento a que tem direito. (Destaque do original)
Realmente, o cabimento da denunciação da lide gera prejuízos ao administrado, procrastinando a ação judicial. O inciso LXXVIII, do art. 5°, da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda Constitucional n° 45/2004, por exemplo, assevera que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". Destarte, deflui-se que o instituto da denunciação da lide infringe o preceito constitucional em comento. Ademais, fere os princípios da celeridade e da economia processual.
Ora, se somente a ação de indenização contra o Estado já é retardada, mais delongada ainda se torna se cabível a denunciação da lide. Sem a intenção de criticar alguns fatos que retardam a ação proposta pelo administrado, posto que se fazem necessárias para o devido resguardo da coisa pública, impende destacar algumas delas:
- O prazo para contestação da Fazenda Pública é elastecido: em quádruplo: 60 (sessenta) dias, ou seja, dois meses, conforme a inteligência dos arts. 297 c/c 188, ambos do CPC;
- O prazo de recurso também é elastecido: em dobro, conforme art. 188 do CPC;
- Caso o administrado logre êxito na ação, e caso o Estado não interponha recurso, a sentença proferida pelo Juízo a quo somente tem efeito após a confirmação do Tribunal, conforme o art. 475, I, CPC;
- O Poder Público, em regra, tem o dever de recorrer até as últimas instâncias. Assim, após eventual decisão de primeira instância favorável ao autor da ação indenizatória, a fase de execução somente será iniciada após um imenso lapso temporal, possivelmente após decisão do Supremo Tribunal Federal;
- Iniciada a fase de execução, não será seguido o rito normal do CPC, com possibilidade de penhora sobre bens móveis ou imóveis, e sim o regramento específico, como o art. 730 dessa legislação processual e o art. 100 da Constituição Federal, o qual dispõe sobre o instituto dos precatórios;
- A fase dos precatórios em si também é retardada, sendo que, diga-se de passagem, às vezes, o ente estatal frustra a ordem cronológica de pagamento, fato esse que enseja ao administrado o requerimento ao Presidente do Tribunal de seqüestro da quantia devida.
Como se percebe, a ação do administrado é retardada. E veja-se que nem se adentrou na questão da morosidade do Poder Judiciário. No entanto, mais lenta se tornaria essa ação, na hipótese de cabimento da denunciação da lide.
Questão também interessante a destacar é de que a denunciação da lide acarreta um pedido novo no processo, diverso do da exordial. Nesse sentido, diz Fredie Didier Jr. (2006, p. 307): "De fato, a denunciação da lide é uma demanda, exercício do direito de ação. Dessa forma, ao promover a denunciação da lide, o denunciante agrega ao processo pedido novo, ampliando o seu objeto litigioso. O processo terá duas demandas: a principal e a incidental". Também nesse sentido é a doutrina abaixo citada:
A denunciação da lide constitui modalidade de intervenção de terceiro em que se pretende incluir no processo uma nova ação, subsidiária àquela originariamente instaurada, a ser analisada caso o denunciante venha a sucumbir na ação principal. Em regra, funda-se a figura no direito de regresso, pelo qual aquele que vier a sofrer algum prejuízo, pode, posteriormente, recuperá-lo de terceiro, que por alguma razão é seu garante. Na denunciação, portanto, inclui-se nova ação, justaposta à primeira, mas dela dependente, para ser examinada caso o denunciante (aquele que tem, frente a alguém, direito de regresso, em decorrência da relação jurídica deduzida na ação principal) venha a sofrer prejuízo diante da sentença judicial relativa à ação principal. (MARINONI; ARENHART; 2006, p. 190) (Destaque do original)
Outro argumento desfavorável ao cabimento da denunciação da lide existe quando se observa que a ação regressiva é subjetiva, ao passo que a ação do administrado, aqui estudada, é objetiva. Assim, admitir a denunciação da lide é anuir com a existência de ação subjetiva no interior de uma ação objetiva, ou melhor, é frustrar a responsabilidade objetiva. Fredie Didier Jr. (2006, p. 319) é contra o cabimento da denunciação da lide com base nesse argumento, senão vejam-se suas palavras:
É com base nesta linha de pensamento que não se admite a denunciação da lide ao servidor, pelo Estado, em demandas de responsabilidade civil contra este interpostas – como o Estado responde objetivamente pelos prejuízos causados, a denunciação da lide introduziria fundamento jurídico novo, que é a responsabilidade subjetiva do servidor (art. 37, § 6º, CF/88). (Destaque do original)
A principal razão de não se admitir a denunciação da lide tem que ver com o fato de que seu cabimento frustra a responsabilidade objetiva. Deveras, a responsabilidade objetiva estatal é uma conquista para o administrado, é uma vitória confirmada pela história, consoante alhures demonstrado. Dessa forma, um instituto processual, previsto em lei ordinária (CPC), não pode desrespeitar a Constituição Federal, não pode agatanhar a responsabilidade sem culpa.
Quanto ao argumento de que o CPC, no art. 70, III, também abrange a responsabilidade do Estado, não há pertinência, eis que a Constituição Federal não dá ensejo a esse desiderato. A fim de comprovar essa assertiva, mister se faz realizar uma comparação com a Constituição de 1934, a qual, de maneira diversa da de 1988, previa, realmente, a existência de litisconsórcio entre o agente público e a Fazenda Pública, de forma que permitiu o cabimento da denunciação da lide, senão veja-se o art. 171, § 1º: "Na ação proposta contra a Fazenda Pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte".
Deveras, a permissão do Código de Processo Civil de cabimento da denunciação da lide não alcança as ações contra o Poder Público, sob pena de contrariar a Constituição de 1988. Nesse sentido, é a seguinte decisão judicial, citada por Inacio de Carvalho Neto (2000, p. 173 - 174), proferida ainda na vigência da Constituição de 1969:
Responsabilidade civil do Estado – Denunciação da lide do funcionário público – Inadmissibilidade – Responsabilidade objetiva que impede a discussão a respeito da culpa do servidor – Norma constitucional que afasta aquele da demanda – Inteligência do art. 70, III, do CPC e aplicação do art. 107 da CF de 1969.
Inexplicavelmente, o Código de Processo Civil determina a denunciação da lide àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda (art. 70, III), sem excepcionar expressamente desse chamamento o funcionário causador do dano. Mas é intuitivo que esse dispositivo não alcança os servidores públicos nas ações indenizatórias movidas contra a Administração, já que a norma processual não pode contrariar a Constituição, que estabelece a responsabilidade exclusiva e objetiva da Administração perante a vítima. (Destaque do original)
Em resumo, a denunciação da lide deve ser incabível pelos seguintes argumentos:
- A ação regressiva somente deve ser ajuizada após o ressarcimento do administrado pelo Estado, bem como após a declaração de culpa do agente público;
- Analogicamente ao Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista à parte hipossuficiente da relação jurídico-processual, como, por exemplo, o administrado, a denunciação da lide não é cabível em responsabilidade objetiva;
- Viola os princípios da celeridade e da economia processual;
- Procrastina o direito do administrado;
- A ação regressiva é subjetiva, ao contrário da ação promovida contra o Estado, que é objetiva;
- A permissão de denunciação da lide constante do Código de Processo Civil não alcança o Poder Público.
Destarte, diante de casos de responsabilidade objetiva do Estado, deve o magistrado indeferir o pedido de denunciação da lide, a fim de respeitar o direito autoral, o qual lhe é devido o mais depressa e da forma menos onerosa possível. Não de assegurar o direito material do administrado, mas o de garantir a rapidez (ou uma menor demora) do litígio. Assim sendo, resta ao Estado promover a ação regressiva pelas vias autônomas.