RESUMO: O presente artigo tem por objetivo discutir as possibilidades jurídicas de aplicação do instituto da liberdade provisória com fiança diante de alguns crimes militares. Desse modo, neste estudo faz-se uma investigação qualitativa de método dialético-dedutivo através de exames bibliográficos e de pesquisas documentais em jurisprudências, livros e artigos científicos sobre o Direito Militar na legislação pátria, com o foco da análise para aplicação do instituto da liberdade provisória com fiança, nos crimes militares. Como conceito básico desta verificação tem-se a centralidade da constituição e o princípio da dignidade humana como instrumentos norteadores da relação jurídica em discussão, como forma de indicar novos parâmetros hermenêuticos para estabelecimento dos objetivos traçados nesta pesquisa.
Palavras Chaves: Liberdade Provisória com Fiança, Crimes Militares, Constitucionalização.
INTRODUÇÃO
O estudo do Direito Militar no Brasil nos últimos anos tem se intensificado e em justa medida foi ampliado a partir das mudanças legislativas recentes, promovidas pela Lei Federal nº 13.491/2017, que trouxe ao Direito Militar o conceito de crimes militares por extensão.
Em que pesem diversos trabalhos acadêmicos nesse ramo do direito, algumas temáticas da vida castrense ainda são tratadas de maneira conservadora, e necessitam de avanços, no sentido de modernização de conteúdos, atualização de institutos e conceitos jurídicos.
De sorte que pode ser percebido através de algumas observações da prática jurídica militar, que nos conteúdos tratados nos tribunais militares, em sua grande maioria tem sido aplicada uma intepretação tradicional caracterizada por um modelo de subsunção da lei penal militar.
Essa subsunção é em grande parte produto de uma legislação retrógada e desatualizada, anterior ao novo regime constitucional inaugurado em 1988, de modo que, parcela considerável do conteúdo normativo militar não acompanhou as inovações e evoluções interpretativas do modelo constitucional e democrático, ao passo que o Direito Castrense não conseguiu alcançar um processo completo de constitucionalização de suas normas.
A constitucionalização das normas é um processo necessário, pois visa submeter toda a interpretação infra legal aos parâmetros da ordem constitucional.
O Direito Castrense, não dissonante aos novos valores introduzidos pela Constituição de 1988, deve também remodelar-se de forma a se adequar aos valores constitucionais imperativos, sob pena de ser relegada a sua própria imaterialidade.
Dessa forma, este artigo aborda uma investigação qualitativa de método dialético-dedutivo através de um estudo bibliográfico e de pesquisas documentais em jurisprudências sobre o Direito Militar na legislação pátria, fazendo uma análise da aplicação do instituto da liberdade provisória com fiança, nos crimes militares, de forma a estabelecer elementos conceituais hábeis a uma nova hermenêutica do Direito Castrense voltado a completude do processo de constitucionalização das normas militares.
Assim, constitui finalidade desse ensaio ponderar sobre as possibilidades jurídicas de aplicação ou concessão da liberdade provisória com fiança diante de alguns crimes militares, de modo, a responder se seriam os crimes militares, a luz da constituição brasileira e a luz do princípio da hierarquia e disciplina, crimes inafiançáveis.
O substrato conceitual desta análise parte das ideias elementares do neoconstitucionalismo e do pós-positivismo e se estabelece como marco teórico deste estudo a centralidade da constituição e o princípio da dignidade humana como instrumentos norteadores da relação jurídica em análise, como forma de indicar novos parâmetros hermenêuticos para o instituto da liberdade provisória com fiança nos crimes militares.
A superação de um modelo interpretativo retrógado somente pode ser alcançado com os avanços hermenêuticos por meio de uma aplicação direta dos princípios constitucionais que garantam a todos os cidadãos, incluindo os militares, a máxima efetividade de direitos, ao passo que o afastamento dessa visão arcaica, pode ser construído por meio da mudança de paradigmas interpretativos propostos pelo princípio vetor das normas, a saber, a dignidade humana e pela efetividade da centralidade da constituição.
OS NOVOS VALORES CONSTITUCIONAIS NA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS
Se discutir o Direito Militar, sob um viés constitucional, no meio acadêmico principalmente, tem sido um desafio, e isso se deve ao fato de que muito pouco se sabe sobre este ramo do direito, além do que, não se é estudado nas cadeiras das faculdades de direito no Brasil.
Ao passo que o estudo sobre as normas militares fica restrito às corporações, que do ponto de vista científico, o qual o estudo do direito exige, não conseguem fazer uma leitura de modo a ampliar significados, sobretudo, a partir da nova ordem constitucional introduzida em 1988.
A necessidade do olhar das normas sobre o prisma constitucional tem sido uma tendência, e muito mais que uma tendência, um reenquadramento das normas infraconstitucionais aos mandamentos da Carta Magna.
Foi assim com o direito civil que muito embora tenha por objeto a regulação da vida privada, seus temas tiveram que passar por um crivo constitucional a partir de 1988, no sentido, de confirmar que, embora se trate da vida privada, o interesse das relações reguladas não pode se esmerar da cautela dos mandamentos da norma-mãe. Dessa forma destaca Barroso (2013):
Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si com a sua ordem, unidade e harmonia mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do direito. Esse fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores consagrados. (BARROSO, 2013, p. 390).
Por esse movimento interpretativo, de filtragem constitucional, também passou o direito administrativo e os demais ramos do direito, como o direito do trabalho, direito comercial e outros, que passaram a integralizar suas normas peneirando-as aos ditames constitucionais (BARROSO, 2013, p. 390).
Não obstante a esse movimento integralizador e interpretativo, que se pode dizer consolidado no direito brasileiro, o Direito Militar vem sofrendo leituras importantes, mas ainda incidentais e singelas quando comparadas as dimensões possíveis para o alcance desse ramo do direito.
A verdade é que pouco se discute sobre a constitucionalização do Direito Militar, se achando mais cômodo a manutenção das normas castrenses, sempre as considerando em uma perspectiva de um ramo excepcional, de conteúdo e exceção constitucional.
A grande questão em discussão é que nenhuma exceção pode exceder os limites e preceitos estabelecidos na norma maior, sob pena de relegar tal ramo do direito a imaterialidade. Portanto, qualquer que seja o conteúdo excepcional, deve este ter conteúdo materialmente constitucional, e o Direito Militar em hipótese alguma pode se afastar desse tipo de análise.
Isso significa submeter o Direito Castrense a uma releitura voltada à centralidade constitucional, de modo que [...] toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional (BARROSO, 2013, p. 390).
Portanto, o centralismo da constituição nada mais é do que alinhar os conteúdos infraconstitucionais ao escopo e finalidades almejadas pela norma constituinte, a luz de seus princípios norteadores, isto é, o total reconhecimento e sujeição de todas as normas ao Tribunal Constitucional.
O que se pretende fazer neste ensaio de Direito Castrense é uma discussão sobre as mudanças e transformações do pensamento filosófico e jurídico constitucional e suas implicações e aplicações diretas e indiretas no Direito Militar, especialmente relativo ao instituto da liberdade provisória com fiança.
Não se pode fazer sob hipótese alguma, seja qual for o ramo do direito em discussão, uma análise jurídica com uma visão excêntrica e meramente instrumental. Esse pragmatismo jurídico estabelecido a partir da concepção da teoria pura do direito veio por séculos definir parâmetros metodológicos dos quais afastam as interpretações e aplicações da normatividade jurídica, fazendo uma separação em campos interpretativos distintos, entre o direito e a moral, o que consequentemente, afastou do direito os componentes axiológicos necessários.
Esse superado modelo interpretativo segundo Novelino (2013) pautou-se em um olhar sob o prisma de uma objetividade absoluta e sob o dogma descritivo da neutralidade, com um forte formalismo interpretativo de viés legiscentrista, onde o privilégio de observância do conteúdo legal representaria de fato o direito.
Contudo, a partir das concepções de Ronald DWORKIN e Robert ALEXY, possibilitou-se por meio da teoria da norma o reconhecimento definitivo da normatividade dos princípios e de sua importância como critério de decisão, sobretudo na solução de casos difíceis (NOVELINO, 2013, p. 190).
Os valores pós-positivistas recepcionaram a superação e o abandono da concepção estritamente legalista das fontes do direito e permitiram o reconhecimento definitivo da força normativa da constituição (NOVELINO, 2013).
Surgiu a partir de então, o conceito do novo constitucionalismo que pretende dentre outras coisas, promover as mudanças estruturantes na interpretação constitucional, alcançando desde mudanças filosóficas e teóricas até mudanças históricas do pensamento jurídico.
Essas mudanças parte do ideário de superação de um formalismo jurídico, em que a máxima do direito é a lei, onde não se questiona a legitimidade das normas. O que se pretende trazer em discussão é que nem sempre a lei pode constituir o interesse da justiça, e desse modo, o direito não pode se olvidar de tentar buscar e promover acima de tudo o bem-estar jurídico das pessoas, isto é, o sentimento do justo.
Tais postulados inaugurados pelas concepções de correição substancial de ALEXY trouxeram ao direito algo além dos dois pressupostos básicos do positivismo jurídico, a saber, de validade formal e da eficácia social, trazendo assim o elemento corretivo ou de adequação, de modo a ampliar o alcance daquilo que integra o direito, de forma que A incorporação da correção substancial ao conceito de direito tem por finalidade estabelecer um patamar mínimo de justiça material que deve estar presente em qualquer ordenamento jurídico e fixar um limite para além do qual o direito não pode ter validade: a extrema injustiça Novelino (2013, p. 202).
A superação desses ideais sugere uma dimensão mais ampla do pensamento jurídico, que somente foi possível a partir das concepções pós-positivistas evidenciadas após a 2ª Guerra Mundial.
O pós-positivismo inaugura e traz à tona às ideias de justiça e dignidade da pessoa humana, como bem destaca Barroso (2013).
O pós-positivismo se apresenta, em certo sentido, com uma terceira via entre as concepções positiva e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política. Contesta assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especialidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer a impossibilidade de trata-los como espaços totalmente segmentados, que não se influenciam mutualmente. (BARROSO, 2013, p. 270).
As atrocidades promovidas no período da 2ª Guerra Mundial demonstraram que a interpretação de que a lei representava o direito, não foi e nunca seria o melhor dos entendimentos e se comprovaram fracassadas, uma vez que, tentou-se justificar pela lei, o direito de extermínio, de segregação e de dominação racial e cultural da humanidade, de forma como bem observado por Barroso [...] o fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismo de matrizes variadas (BARROSO, 2013, p. 263).
Exemplo claro desse tipo de visão foi revelada no julgamento de Nuremberg na Alemanha pós-guerra, nos anos de 1945, onde os nazistas acusados justificaram suas barbáries sob argumento de que não se desviaram da lei e, que, portanto, tinham o direito de praticar os horrores e as desumanidades cometidas.
Desde então não foi difícil perceber que esse formalismo jurídico era decadente e insuficiente para interpretação das leis e das normas, e a partir de então as transformações e mudanças foram possíveis em uma perspectiva onde o direito não é a expressão literal da lei, significa mais do que isso, por representar um verdadeiro meio e canal de promoção de justiça e dignidade as pessoas.
Desse modo, Após a Segunda Grande Guerra, a dignidade tornou-se um dos grandes consensos do mundo ocidental, materializado em declarações de direitos, convenções internacionais e constituições (BARROSO, 2013, p. 273).
Do ponto de vista teórico as mudanças foram mais significativas e foram além, ao trazer uma abordagem constitucional antes não percebida. Outrora do advento pós-positivista e do novo constitucionalismo a ideia de constituição não passava de um mero documento político, que servia ao povo e a nação como um panfleto de objetivos.
Ao passo que no tocante as mudanças ocasionadas, a constituição passa a ter força normativa, isto é, passa a ser um documento jurídico com a real necessidade de sua eficácia. A dignidade humana assim é assumida como um valor e mais que um valor, como o princípio interpretativo matriz nessa nova abordagem, como bem observa Barroso (2013):
Como valor e como princípio, a dignidade humana funciona tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo para os direitos fundamentais. Na verdade, ela constitui parte de conteúdo dos direitos fundamentais. Os princípios constitucionais desempenham diferentes papéis no sistema jurídico. Destacam-se aqui dois deles: a) o de fonte direta de direitos e deveres e b) o interpretativo. Os princípios operam como fonte direta de direitos e deveres quando do seu núcleo essencial de sentido se extraem regras que incidirão sobre situações concretas. (BARROSO, 2013, p 273).
Assim, o novo pensamento constitucional representa um elemento interpretativo fundamental e serve como instrumento que possibilita um novo paradigma, uma nova abordagem e um novo olhar na leitura das normas jurídicas, dessa vez de modo suficiente a permitir uma releitura para o reenquadramento, ou melhor, para o reajustamento das normas aos valores constitucionais vigentes.
Essa nova metodologia interpretativa do direito significa o ponderamento e a saturação de temas de extremo relevo, a uma série de valores que necessariamente não se esgotam, mas que devem ser harmonizados a fim de atingir um determinado fim sobreposto, conforme a problemática.
A sociedade contemporânea é heterogênea e se caracteriza por uma pluralidade de pensamentos e uma diversidade de valores que invariavelmente circulam no meio social, sendo inevitável a existência de conflitos ante ao choque de direitos e interesses antagônicos.
Nessa perspectiva muito facilmente se verificará diante das temáticas constitucionais contemporâneas a existência de conflitos ou colisões de direitos constitucionais que não poderão e não serão resolvidos com a simples aplicação do método da subsunção de normas.
A mera aplicação da lei não logrará êxito na solução de colisões de direitos constitucionais, visto que, determinados direitos são abstraídos não de uma, mas de duas ou mais normas constitucionais.
Os atuais temas constitucionais não são objeto apenas de um conceito, mas são produtos de uma série de valores e antinomias que o método tradicional de interpretação das normas infraconstitucionais não é suficiente para viabilizar a solução mais adequada.
Conforme observa Barroso (2013) quando o assunto é a colisão de direitos constitucionais, percebe-se a existência, basicamente de três conflitos ou colisões de direitos: colisão entre princípios constitucionais, colisão entre direitos fundamentais e colisão entre direitos fundamentais com outros valores e interesses constitucionais.
Uma vez verificada a existência de colisões constitucionais, diferentemente do método tradicional, os princípios e direitos fundamentais não sofrem intervenção hierárquica de normas, não se podendo falar em sobreposição hierárquica de um princípio ou direito fundamental sobre o outro.
Essa insuficiência dos critérios tradicionais na solução dos conflitos constitucionais sugere o aprimoramento de outros critérios interpretativos; para tanto, a nova interpretação utiliza-se da técnica da ponderação dos princípios e valores constitucionais como forma de dar uma solução, a luz do caso concreto, aos conflitos constitucionais porventura existentes.
A técnica da ponderação requer um nível de abstração elevado, pois é posta diante de casos complexos, e, portanto, consiste: [...] em uma técnica de decisão jurídica, aplicável aos casos difíceis, em relação a qual a subsunção se mostrou insuficiente. A insuficiência se deve ao fato de existirem normas de mesma hierarquia indicando soluções diferenciadas (BARROSO, 2013, p. 361).
Esse novo pensamento jurídico somente foi possível a partir dos valores introduzidos pelo pós-positivismo, e sobremodo na perspectiva constitucional, do neoconstitucionalismo que passou a colocar os direitos fundamentais como objeto central e em primeiro plano na interpretação constitucional, ampliando parcialmente uma ideologia constitucionalista moderna e clássica, em que a meta central na construção dos documentos constitucionais era tão somente com preocupação na imposição de limites ao poder estatal.
Ao se trazer ao centro constitucional os direitos fundamentais, se projeta uma dimensão em que há a obrigação moral de obedecer a constituição e às normas compatíveis com ela, desse modo, rompe-se com o tradicional modelo jurídico que creditava obrigação moral de obediência à lei (teoria da obediência absoluta da lei enquanto tal), sintetizada no aforisma, Gesetz ist Gesetz (Lei é Lei) (NOVELINO, 2013, p. 196).
Nesse sentido, o processo de constitucionalização do Direito Castrense deve passar por uma releitura onde os valores e princípios constitucionais sejam integralizados as normas militares, e que tais normas não sejam vistas e interpretadas erroneamente como mera categoria de exceção constitucional, mas que sejam aplicadas em compatibilidade aos demais princípios constitucionais, evidentemente, a luz e discussão de casos existentes.
DA POSSIBILIdADE DA CONCESSÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA COM OU SEM FIANÇA NOS CRIMES MILITARES
Assunto emblemático e pouco tratado na seara do Direito Castrense são os institutos da liberdade provisória com ou sem fiança. A liberdade provisória sem fiança em alguns raros casos é admitida dentro dos critérios definidos no art. 253 e 270 do Código de Processo Penal Militar (BRASIL, 2019).
No tocante a fiança, a legislação militar é omissa, de modo que na prática judicial militar há meio que um consenso quanto à inexistência e a possibilidade de fixação de fiança para os crimes militares.
Tais restrições e limitações na ampliação no rol das possibilidades da concessão da liberdade provisória sem fiança e na impossibilidade da fiança, em grande parte se devem a um pensamento de manter preservado o princípio da hierarquia e disciplina e a salvaguarda das instituições militares.
De sorte que esses institutos são relegados ou deixados de lado na seara militar por se acreditar que a menagem (art. 263-269 CPPM) seja um instrumento prático de concessão da liberdade provisória.
Instituto tipicamente militar é o benéfico outorgado pela lei a certos acusados, os que respondem por crimes cujo máximo de pena não exceda a quatro anos, para ficarem presos sob palavra, fora do cárcere, um vez preenchidos os requisitos legais.
Trata-se de medida que evita o recolhimento provisório do acusado à prisão, substituindo o instituto da prisão provisória para a maioria da doutrina. Na prática, é uma forma de prisão provisória, pois restringe a liberdade do agente, o que diferencia daquela é que não a cumpre em prisão. (GIULIANI, 2009, p. 176).
Muito embora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal venha admitindo a aplicabilidade de medidas cautelares previstas na Lei Federal nº 13.403/2011 na Justiça Militar, no tocante a fiança, entretanto, há uma flagrante resistência para superação de uma visão tradicional de mera subsunção da lei, de forma que a matéria não foi enfrentada com a relevância e a dimensão que ela merece, preferindo se admitir que na seara penal militar não há previsão legal de fiança, imperando a máxima de que a menagem está para o crime militar, assim como a fiança está pra o crime comum Dircêo Torrecillas, apud, STF HC 135.047/AM, Relator: Min. Gilmar Mendes, DJe, 2ª Turma, 27.9.2016).
Habeas corpus. 2. Penal e Processual Penal Militar 3. Furto de fuzis pertencentes ao Exército (art. 240, §§ 4º e 5º, do Código Penal Militar.). 4. Prisão preventiva. Necessidade de garantia da ordem pública. Manutenção dos princípios da hierarquia e disciplina militares. Fundamentação idônea que recomenda a medida constritiva. 5. Instituto da menagem. Incabível. Ausência do requisito objetivo exigido: pena cominada ao delito superior a 4 anos. 6. Aplicabilidade das medidas cautelares previstas na Lei n. 12.403/2011 na Justiça Militar. Não incidência. Princípio da especialidade. 7. Ausência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. (STF - HC 135.047, Relator: Ministro Gilmar Mendes, DJe 27.9.2016).
Nesse sentido, há o fortalecimento da ideia de que os bens e valores militares são inalienáveis e admitir a liberdade provisória com fiança representaria uma afronta aos pilares militares da disciplina e hierarquia, tornando-os alienáveis.
Com as devidas vênias, respeitadas, algumas peculiaridades relacionadas às especialidades deste ramo do direito, entende-se que se faz necessário uma releitura desses institutos a partir da nova ordem constitucional inaugurada em 1988.
Por estes motivos a Ordem Constitucional vigente trouxe a liberdade como regra e como exceção a prisão, seja do cidadão civil seja do militar. Seria muito presunçoso afirmar que o escopo constitucional em respeito às liberdades e garantias individuais são restritas tão-somente ao civil, não se aplicando ao cidadão militar.
Desse modo, sempre que o constituinte quis dar relevo a determinados tipos criminais, o fez expressamente, informando comandos explícitos do interesse constitucional sobre a questão.
Foram assim, o tratamento dado as condutas consideradas ofensivas e dignas de total proteção por parte do Estado, de forma que a vontade constitucional descreveu quais condutas seriam inafiançáveis, e por uma interpretação a contrário senso, aquilo que o constituinte ou a lei não definiu como inafiançável, pode ser arbitrado à fiança.
Dessa forma, como bem esclarece Denilson Feitoza (2008):
Em regra, a lei não fala em que hipóteses cabe a liberdade provisória mediante fiança, mas sim, estabelece em que hipóteses não cabe a fiança. Faz-se um raciocínio a contrario sensu: sabendo-se em que casos expressamente não cabe, chegamos à conclusão, por exclusão, dos casos em que cabe, ou seja, os demais. (PACHECO, 2008, pag. 804).
Observe que no plano constitucional as condutas consideradas inafiançáveis são: o racismo, a tortura, o tráfico de drogas, o terrorismo, os definidos como hediondos e ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (BRASIL, 1988).
Não obstante, parece claro o interesse da Constituição de elencar alguns crimes dos quais não seriam possíveis à liberdade provisória com fiança e em nenhum momento a ordem constitucional incluiu dentre esses crimes, os crimes militares.
Há quem possa acreditar na vedação expressa da fixação da fiança aos crimes militares a partir do comando legal do art. 324, II do Código de Processo Penal Comum. Contudo, tal conteúdo não parece ter uma aplicação prática no Direito Castrense, visto que o tratamento da fiança aos crimes militares pelo direito comum é um objeto que não se vincula a norma com a especialidade do Direito Militar, haja vista a incompatibilidade do objeto, bem como a ausência de indicação do âmbito de aplicação da norma, isto é, a matéria deve ser tratada pela norma processual penal militar e não a comum.
O próprio conteúdo constitucional não traz uma vedação expressa à fixação da fiança aos crimes militares. Evidentemente, muito embora a Constituição não tenha previsto não significa que ela tenha se silenciado sobre o assunto, pelo contrário, é nesse sentido que os princípios são aplicados para complementar à interpretação constitucional, e em uma visão sistêmica percebe-se que a concessão indiscriminada iria frontalmente de encontro aos princípios da hierarquia e disciplina, e quanto a isso, se concorda totalmente.
Todavia, generalizar a interpretação de que não é possível concessão de fiança a crimes militares não representa a completude de ida e vinda constitucional diante das leis militares.
Por esta razão, o atual contexto de crime militar trazido pela Lei Federal nº 13.491/2017 abrange uma série de condutas que se não for garantido ao militar tal possibilidade de liberdade provisória com ou sem fiança, tem-se como regra a prisão, e a liberdade do militar, como uma exceção, sentimento totalmente oposto aos mandamentos constitucionais.
Nesse sentido, a melhor configuração possível a uma interpretação a permitir o alcance aos militares aos direitos e garantias estabelecidas na Constituição caminha na admissibilidade da liberdade provisória sem fiança nos moldes aplicados na legislação comum a qualquer cidadão, bem como na admissibilidade de fixação de fiança em crimes militares, desde que em ambas as hipóteses sejam para crimes militares impróprios e aos crimes militares por extensão sobre os quais não recaia qualquer ofensa ao sentimento de dever e ao pundonor militar.
Tal entendimento preserva ontologicamente os princípios da hierarquia e disciplina, ao mesmo tempo em que permite ao cidadão militar o acesso de direitos garantidos a todo cidadão brasileiro.
A fiança dentro do ordenamento jurídico brasileiro muito embora possa ser associado diretamente ao instituto da liberdade provisória, não pode ser com esta confundida, visto a sua própria natureza jurídica, diferente da liberdade provisória que é um direito subjetivo do acusado.
Anteriormente a Lei Federal nº 12.403/2011 a fiança era uma medida de contracautela consistente na caução, [...] em dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar (art. 330, CPP), destinada a garantir o cumprimento das obrigações processuais (PACHECO, 2008, pag. 803).
Em outros termos, a fiança constituía-se em uma garantia de que as obrigações processuais impostas ao acusado sejam asseguradas no curso da concessão da liberdade provisória.
Nesse sentido, a fiança visa desencorajar o descumprimento das obrigações processuais fixadas, bem como ainda, ser um instrumento de reparação econômico financeiro em decorrência da prática de ilícitos penais praticados.
A bem da verdade com as mudanças legislativas da Lei Federal nº 12.403/2011 a fiança tronou-se uma medida cautelar diversa da prisão, podendo ser concedida em qualquer fase do processo ou da investigação criminal até o transito em julgado da sentença penal condenatória.
Muito embora, muitos possam considerar a fiança um instituto que na prática cada vez mais esteja caindo em desuso ante a tão vasta possibilidade de concessão de liberdade provisória sem fiança ou de outras medidas cautelares diversas da prisão, este ensaio visa estabelecer dentre outras coisas, no tocante a fiança, o restabelecimento de uma interpretação jurídica que permita a perfeita aplicação desse instituto.
Isso porque a concessão de liberdade provisória em regra deve ser por intermédio de fiança, somente sendo sem fiança, em casos excepcionais, dentre eles, quando contiver a expressão proibição constitucional, ou quando o réu não possuir condições financeiras capazes de arcar com a medida, ou ainda quando não existentes outros elementos capazes de manter o seu confinamento preventivo, o que não autoriza a prisão preventiva, não, sendo, portanto, razoável manter o acusado preso tão somente por uma questão de hipossuficiência, concedendo desse modo a liberdade provisória sem fiança.
Tanto é assim que o próprio Capítulo VI do CPP ao tratar da liberdade provisória com ou sem fiança em nenhum momento estabelece critérios para concessão da liberdade sem fiança, aliás, nem sequer fala a respeito, pelo contrario o Código restringe-se a regular tão somente os casos, valores e circunstancias do pagamento da fiança.
Muito embora não fale em liberdade sem fiança, a lei processual penal, todavia não a desconsidera, sobretudo, baseando-se nos princípios da dignidade da pessoa humana e da presunção da inocência, admitindo sua hipótese excepcional, dos quais, por um critério de hipossuficiência, como dito, e é claro considerando os critérios objetivos da própria lei.
O instituto da liberdade provisória, portanto, só admite como espécie, duas categorias ou modalidades, a liberdade provisória com fiança e excepcionalmente a liberdade provisória sem fiança, sempre analisada subsidiariamente a ausência dos requisitos para imposição da prisão preventiva.
Os casos de liberdade temporária, e não provisória, são em detrimento da ordem de relaxamento de prisão, ou pela revogação da prisão preventiva, de forma que, uma vez configurado o flagrante e este sendo considerado sem vícios, não caberia nenhum juízo de convicção legal sobre possibilidades de liberdade provisória, já que esta é subsidiaria a ausência dos elementos da prisão preventiva, devendo se dar na modalidade por fiança, como regra.
Por fim, chegar-se a uma conclusão importante nesta análise, de que é o flagrante delito o elemento balizador para concessão da liberdade provisória, pois se o flagrante não for convertido em prisão preventiva por ausência dos requisitos do art. 312 CPP deverá ser subsidiariamente aplicado a concessão da liberdade prevista no art. 321 CPP, de regra com fiança.
Assim, se a fiança é espécie do gênero liberdade provisória, esta só será admitida por meio de pagamento de caução, como regra; sendo a excepcionalidade a liberdade por falta da caução por razões de hipossuficiência em predominância ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Portanto, quando a Constituição fala que alguns crimes, dentre eles os hediondos ou assemelhados como o tráfico de drogas são inafiançáveis designa que a estes é vedada a concessão da liberdade provisória, que vimos se concretiza com o pagamento da fiança que é a regra da concessão.
Os eventuais casos de liberdade no curso da prisão em flagrante são em virtude da liberdade temporária pelo relaxamento da prisão ou pela revogação da preventiva, e não em decorrência da liberdade provisória que é uma análise preliminar para concessão da medida para aqueles que a prisão em flagrante não tiver os elementos suficientes (art. 312 CPP) para decretação da prisão preventiva.
Feitas as devidas considerações sobre essa visão de subsidiariedade da prisão provisória com ou sem fiança passe-se a algumas considerações acerca desses institutos na seara militar.
A primeira ponderação e já apresentada ao longo dessa discussão é que a norma processual penal militar é inerte no tocante aos institutos da liberdade provisória, em particular neste estudo, a liberdade provisória com fiança.
O que não nos parece um problema, visto que a integralização de todas as normas, dentre elas as militares, como vimos, deve ser submetida a um processo de ida e vinda constitucional, o que significa dizer que toda interpretação infra legal deve ser uma interpretação constitucional.
A Constituição parece bem clara em definir quais crimes ela determina a inafiançabilidade, crimes esses já vistos não incluem necessariamente todos os crimes militares, isso por que, aos crimes militares hediondos ou equiparados, também se aplica a determinação constitucional vigente.
Para os demais crimes militares faz-se necessário uma verificação da possibilidade de concessão da liberdade provisória com fiança.
Essa verificação como já adiantado parte de uma análise direta de uma afronta aos bens jurídicos militares protegidos, sobretudo, em salvaguarda dos princípios constitucionais da organização militar, ou seja, da hierarquia e disciplina.
Nesse sentido, entende-se que os principais e os mais importantes bem jurídicos tutelados pela norma penal militar, na ótica de proteção aos princípios da hierarquia e disciplina, foram distinguidos na categoria dos chamados crimes propriamente militares, ou seja, crimes os quais estão descritos tão somente na norma penal militar tanto aplicável a pessoa do militar ou a civil a depender do tipo penal, como por exemplo, o crime de insubmissão.
A essa categoria de crimes, os propriamente militares, não se coaduna com o interesse constitucional a possiblidade de concessão de liberdades provisória com fiança, sem uma afronta direta aos princípios da hierarquia e disciplina, sendo nesse sentido, incompatível com os princípios supramencionados qualquer concessão de medidas cautelares, sob pena, de secularizar os bens jurídicos castrenses que demandam maior rigor em sua proteção.
Entretanto, existe uma série de outras categorias de crimes militares, que muito embora, tenha como objeto a tutela dos valores militares, a violação desses valores não causa um impacto direto aos bens jurídicos constitucionais da organização militar.
Dentre essas categorias de crimes estão os crimes impropriamente militares, ou seja, os crimes militares definidos de modo diverso na legislação comum, e ainda os crimes militares por extensão, categoria definida a partir das inovações da Lei Federal nº 13.491/2017, isto é, todos os crimes previstos na legislação penal, quando praticados nas circunstâncias a caracterizá-lo como crime militar.
A todos esses crimes, desde que a sua prática a depender do caso concreto, não afete diretamente aos bens jurídicos constitucionais e não recaia diretamente em qualquer ofensa ao sentimento de dever e ao pundonor militar, em uma interpretação extensiva, não há qualquer impeditivo ou proibição legal ou constitucional para fixação de fiança.
Pensar de outro modo implicaria na admissão de uma interpretação onde a prisão do militar é uma regra, e a liberdade seria uma exceção, movimento este contrário aos mandamentos constitucionais estabelecidos, aos princípios da dignidade humana e aos direitos fundamentais consolidados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, diante de toda discussão traçada nesta análise traz-se ainda uma importante ponderação acerca da possibilidade jurídica de aplicação da liberdade provisória com fiança diante de crimes militares, em uma leitura sobremodo, a harmonizar a interpretação desses institutos a uma aplicação direta do princípio da vedação da proteção deficiente, e do princípio da presunção da inocência com objetivo de garantir e assegurar a tutela penal eficiente para todos, inclusive o militar.
Pelo princípio da vedação da proteção deficiente nem o Estado e tão pouco a lei podem tutelar os direitos fundamentais de forma insuficiente. Assim, cria-se por este instituto um dever de proteção integral para o Estado, não permitindo aos agentes estatais o abandono efetivo da tutela dos direitos fundamentais.
A liberdade provisória com ou sem fiança é direito fundamental. Admitir que no Direito Militar não existe a possibilidade de concessão de liberdade provisória com fiança é reconhecer tutela penal deficiente e deixar o cidadão militar desprovido da garantia de seus direitos fundamentais, o que é vedado pela própria Constituição.
Um caso possível dentro do contexto da Lei Federal nº 13.491/2017 é um crime militar de trânsito, no qual um militar da ativa de folga dirigindo um veículo de maneira imprudente, com excesso de velocidade, atropela e mata outro militar de serviço. Dentro das circunstâncias do art. 9º, inciso II, alínea a do CPM, é um crime militar.
Ora e por se tratar de crime militar, não existe fiança, devendo, obedecidos os demais critérios legais, ser o militar levado à prisão, ainda que a aplicabilidade da fiança para este caso fosse mais eficiente para garantia das obrigações processuais impostas ao acusado, bem como para futura reparação econômica financeira do ilícito penal militar cometido.
No caso acima, e em tantos outros possíveis, parece razoável a aplicabilidade da fiança, uma vez o dever do Estado em garantir a proteção dos direitos fundamentais de forma a evitar a tutela penal insuficiente. O Estado deve proteger seus cidadãos adotando medidas que assegurem a todos os direitos fundamentais constituídos como forma de manter a paz social, em todos os níveis, de modo a não permitir que a prisão seja regra e a liberdade exceção.
O que se pretende afirmar com isso é que, quando o constituinte estabeleceu que ninguém é culpado até que transite em julgado sua sentença penal condenatória, reafirma o sentimento de que até o fim da persecução penal deve qualquer cidadão ser considerado inocente, garantindo-o uma série de direitos, dentre eles o direito de responder o processo em liberdade, o direito de não ser mantido preso por excesso de prazos e o direito a liberdade provisória com ou sem fiança para todos os crimes em que não há uma expressa vedação constitucional ou legal, estabelecendo um verdadeiro mecanismo de proteção social, seja do cidadão civil ou militar, ou seja, para todos.