Em janeiro, clínicas médicas voltaram a figurar nos noticiários policiais. A operação beleza tóxica cumpriu mandados em duas clínicas médicas de Belo Horizonte, onde são investigados dois médicos e uma biomédica por diversos crimes, inclusive com acusação de homicídio. O caso expõe mais uma vez os grandes riscos da atuação no mercado da aparência perfeita, por parte de médicos, biomédicos e cirurgiões dentistas.
Desde 2018, somos o país que mais realiza cirurgias plásticas (1,5 milhão por ano, e mais 1 milhão de procedimentos estéticos não invasivos segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica). Isso sem contar as outras especialidades médicas, e outras profissões como a do dentista e do biomédico. Diariamente, pessoas cada vez mais jovens realizam procedimentos cada vez mais invasivos e desnecessários. Um quadro preocupante, impulsionado pelo fenômeno das redes sociais.
O culto à aparência perfeita cresceu assustadoramente nas últimas décadas, gerando uma demanda que os cirurgiões plásticos não conseguem atender. Temos atualmente cerca de 5.500 especialistas em cirurgia plástica no Brasil, estando 1/3 situados somente em SP, e 55,3% na região sudeste (além de insuficientes, estão mal distribuídos). Contudo, o próprio Conselho Federal de Medicina dispõe que qualquer médico pode atuar na área, mesmo não sendo especialista (só comete infração, quem afirma ter o título). Com isso, temos médicos de diversas especialidades realizando tratamentos e cirurgias estéticas ou plásticas.
Na mesma esteira, cresceram no mercado da medicina estética outras especialidades como a dermatologia, e no mercado da estética, profissionais de diversas outras áreas. Podemos citar como exemplo o crescimento da harmonização orofacial, especialidade odontológica reconhecida desde 2019.
Além dos médicos e cirurgiões dentistas, diversos outros profissionais passaram a realizar procedimentos e cirurgias estéticas. Seus respectivos conselhos de classe autorizam (cada qual com suas especificações), mas embora alguns profissionais tenham a expertise e assessoria necessária para atuar conforme a lei e a ética, muitos outros fogem à regra e se aventuram sem um direcionamento, assumindo grandes riscos. E uns poucos, simplesmente ignoram as boas práticas, gerando casos como o da reportagem em questão.
A negligência dos próprios pacientes também salta aos olhos. Muitos escolhem o profissional pelo número de seguidores, e pelo volume de likes nas redes sociais. A indicação de outro paciente e os critérios técnicos que deveriam orientar a escolha de um médico ou cirurgião dentista ficam totalmente de lado.
Com o crescimento da concorrência no mercado da estética, as redes sociais se tornaram o caminho para muitos profissionais ganharem sua fatia do mercado. E neste aspecto, vemos uma série de infrações éticas por parte de muitos médicos e cirurgiões dentistas, que atuam no ambiente digital sem ciência das normas legalmente impostas, ignorando medidas preventivas necessárias e potencializando seu risco, sobretudo por não proporcionar ao paciente o devido processo de imersão informacional. Prometem (ainda que indiretamente) um resultado que não podem garantir. Lidam com o paciente como se fosse um consumidor, e com o tratamento como se fosse uma mercadoria. Comprometem a anamnese, a análise de indicação para o procedimento proposto, e o alinhamento de expectativas entre o profissional e o paciente. Por fim, ferem de morte a tradicional relação com o paciente, que deveria orientar todas a tratativa entre as partes, seja médico ou cirurgião dentista.
Todo este ambiente torna os profissionais, médicos e cirurgiões dentistas, presas fáceis para os pacientes mal intencionados, gerando uma imensa demanda jurídica de ações de indenização e processos éticos, que cresce a cada ano. Por este motivo, a atuação do médico no século XXI vai muito além do domínio técnico da medicina e da especialização em sua área de atuação, mas passa por uma estruturação adequada nas searas administrativa, de marketing e sobretudo jurídica. O mesmo vale para o cirurgião dentista, biomédico e outros que atuam na área.
Lidar com o paciente do século XXI é um grande desafio, que demanda do profissional da saúde uma estruturação ético-jurídica adequada. Tanto para orientação dos demais departamentos da clínica em suas frentes de trabalho, quanto para a atuação preventiva diante das demandas geradas pela espinhosa relação com alguns pacientes, no sentido de evitar demandas judiciais e éticas. E o profissional que ignora esta nova realidade, seja médico, cirurgião dentista ou outro ligado à área da saúde, assume o risco de fazer parte de péssimas estatísticas, como a do caso inicialmente citado.