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A (im)possibilidade de aplicação do poder sancionador do CADE aos entes federados

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Agenda 06/05/2022 às 08:30

3. O Abuso de Poder Regulatório Estatal: Um Auto Reflexo da Arbitrariedade Pública

O abuso de poder regulatório estatal ganhou positivação com o advento da Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19), que em seu artigo 4º dele tratou[20], elencando nos incisos as condutas que o constituem. Como apontado no início deste trabalho, concentrar-se-á naquelas que dizem respeito à redação de dispositivos legais e infralegais contrários à livre concorrência.

No entanto, embora disposto normativamente, faltou a lei com a conceituação do que seria esse abuso de poder propriamente dito. Antes de mais nada, deve-se entender que o abuso/excesso de ou em algo significa que, via de regra, esta prática é legitima, apenas o uso desmedido é que lhe é vedado. Assim, o poder regulatório em si é licito, eis que tanto o CADE, quanto as agências reguladoras, e aqui, cabe falar delas também, têm a finalidade de promover a regulação e fiscalização das atividades econômicas desenvolvidas no mercado de competição, restringindo-se as agências reguladoras às indústrias que regulam. Como também já deixado consignado, aqui não entrar-se-á na disputa de competências entre o CADE e as agências reguladoras, de modo que adere-se por um conceito de poder regulatório não só no sentido de regulação stricto sensu, mas também englobando o direito antitruste.

Fazendo uma analogia com o poder de mercado dos agentes econômicos, que segundo a legislação de regência da defesa da concorrência, não é um ilícito per se (diga-absoluto), pode-se dizer que, prima facie, o poder regulatório também não é um ilícito, pois também insculpido nas legislações das agências reguladoras e numa intepretação finalística das normas das Lei 12.529/11, também ao CADE, utilizando-se de um método sistemático de interpretação, o qual ora adotamos.

Quando então é ultrapassada a linha entre o exercício desse poder para o seu abuso? O poder regulatório, como explicado, nada mais é do que o exercício de um direito legal conferido aos entes políticos e administrativos no âmbito da ordem econômica. Por consequência, haverá abuso desse poder, quando usado para criação de atos normativos à revelia dos entes incumbidos da concorrência e regulação, e da própria Constituição.

É importante compreender a quão paradoxal e perigosa é a problemática versada neste tópico: o Estado (aqui compreendidos os quatro entes federativos) a quem incumbe a defesa do Estado Democrático e do bem comum, em favor da coletividade, os quais são pregados pela Constituição Federal e pela Lei 12.529/11, é responsável pela elaboração de atos normativos que vão frontalmente contra aqueles.

3.1 A Normatização de Ilícitos pelos Entes Federados e a Postura do CADE

No ínterim do esposado sobre a edição de enunciados normativos que possam constituir abuso de poder regulatório, cumpre trazer à exemplificação prática de quando o ilícito é cometido pelos próprios entes políticos. A dizer, quando o Estado, aqui especificamente nos referimos entes estaduais e municipais, acabam por editar, no exercício do seu poder regulamentar, atos infralegais, que vão de encontro aos princípios da livre concorrência e iniciativa.

Atente-se, detidamente, aos seguintes casos julgados pelo CADE e qual a postura por ele assumida:

Ato de Concentração nº 08012005516/2001-11: Petrobrás Gás S.A- Gáspetro, Gásgoiano S.A. e Agência Goiana de Gás Canalizado- Goiasgás

Trecho do voto do Conselheiro Relator do CADE- Cleveland Prates Teixeira: (...)entendo que dada a competência estadual para explorar os serviços locais de gás canalizado, e sendo estes serviços públicos, a sua regulamentação pelo Estado de Goiás não pode ser objeto de revisão por este Conselho. O Estado da Federação, por determinação constitucional, dispõe de um poder tão amplo e extenso que é capaz de determinar o padrão concorrencial. Dessa forma, é plenamente possível, sob o ponto de vista estritamente legal, a criação de verdadeiros monopólios" de produção e prestação de serviço. Em contrapartida, é necessária a substituição do autocontrole do mercado pelo sistema regulamentar, que deve passar a estabelecer as variáveis relevantes a serem contratadas, devendo ser inclusive objeto de fiscalização constante pelo poder concedente.

(...)a exclusividade conferida à Goiasgás, para comercialização de gás canalizado no Estado de Goiás, pelo prazo de 30 anos, não parece ser razoável a princípio, considerando, principalmente, as perspectivas de fornecimento de gás natural naquela região e o fato de que não foi apresentado nenhum estudo sobre os custos de investimentos a serem realizados. Note-se que a constatação de que a atividade de comercialização para grandes consumidores é potencialmente competitiva, a médio e longo prazos, é patente, sugerindo a necessidade de um estudo para a revisão da exclusividade conferida.

(...) cabe a este Conselho, com base nos problemas aqui identificados sugerir que o Estado de Goiás leve em consideração a necessidade de promover a competição nos segmentos que suportam a concorrência, e a partir de um juízo de conveniência analise as possibilidades de revisão do contrato de concessão no que se refere à exclusividade conferida a Goiasgás para a comercialização de gás canalizado para os grandes consumidores, pelo período estabelecido, incluindo cláusulas que viabilizem o acesso de terceiros a rede de dutos da distribuidora. (grifo nosso)[21]

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CONSULTA Nº 0034/99

INTERESSADO: Rádio Taxi Brasilia Ltda

REFERÊNCIA: Decreto 20.126 de 29/03/99 do Governador do Distrito Federal

CONSELHEIRA RELATORA: Lucia Helena Salgado e Silva

VOTO

Ementa: Consulta acerca da legalidade/ inconstitucionalidade do Decreto 20.126/99 do Governo do Distrito Federal. Limitação de descontos nas tarifas de taxi do Distrito Federal. Pela ilegalidade do Decreto, determinando a expedição de ofícios ao Governador do Distrito Federal, à Secretaria de Direito Econômico, ao Ministério Público do Distrito Federal e ao Senhor Delegado da 10ª Delegacia de Polícia do Lago Sul (Brasília-DF)

(...) No presente caso, verifico que muito embora seja principio constitucional os Estados Federados poderem organizarem-se e regerem-se por Constituições e leis que adotarem, deverão, primeiramente, observarem os princípios estabelecidos na Constituição Federal, artigo 25, caput e §1º, o que não ocorreu quando da edição do Decreto 20.126/99, por ter o mesmo violado o artigo 170, caput e incisos IV e V, os quais estabelecem, dentre outros, os princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e da defesa do consumidor, tendo o referido decreto limitado a possibilidade de descontos. Por consequência, infringiu também, o estabelecido na Lei 8.884/94, uma vez que o Governo do Distrito Federal prejudicou a livre concorrência e a livre iniciativa, privando os consumidores da oferta de serviços a preços mais baixos, conforme vinha ocorrendo.

Muito embora, considerando que com a edição do referido Decreto, o Governo do Distrito Federal contrariou preceitos constitucionais, prejudicando os maiores interessados, ou seja, os consumidores, quando influenciou claramente as condições do mercado, reconheço que o ato praticado pelo Governo do Distrito Federal (edição de decreto visando seu interesse), seja ato de estado, portanto, dentro dos limites constitucionais, não cabe a esta Autarquia o poder de constrição aos entes públicos (...) (grifei)[22]

Pode-se ver dos votos acima colacionados que o CADE, em ambos os casos concretos analisados, reconheceu pela ilegalidade de atos infralegais que concediam predileção a determinados agencias econômicos em detrimento dos demais, criando, assim barreiras à entrada de novos competidores, por via normativa. Forçoso nos faz reconhecer o ente estadual, em ambos os casos, agiu com abuso do poder de regulação, eis que ultrapassando os limites da competência outorgados pela Constituição Federal, editou atos normativos secundários, que culminavam na diminuição da competição inerente ao mercado.

Trazendo para a sistemática da Lei 13.874/19, poder-se-ia enquadrar o ente estadual no caput do seu artigo 4º, o que lhe suscitaria medidas administrativas e as judiciais, cabíveis.

No entanto, embora reconhecida essa ilegalidade, percebe-se que o CADE, em nenhum dos dois casos acima transcritos, exerceu uma postura ativa. Pelo contrário, constatou a ilegalidade/inconstitucionalidade, porém, eximiu-se em sancionar o ente federativo respectivo, por entender, consoante as explicações dos conselheiros acima, não estar na alçada da autarquia assim agir.

Sendo assim, plausível afirmar, que, a princípio, o próprio CADE responde à questão sobre se ele poderia fazer incidir sanções sobre os entes federados. Todavia, ainda assim, cumpre insistir na questão, não estaria havendo, com tal posicionamento, um esvaziamento da finalidade máxima da entidade autárquica?


4. O CADE E O FEDERALISMO: ABUSO OU EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO?

Assim como o abuso de poder regulatório vem a ser um espelhamento da obsessão do Estado na exorbitância do seu poder regulamentar/normativo, qualificando-o tanto como infrator quanto como vítima, o federalismo, igualmente, também é posto numa posição delicada se pensada na possibilidade de aplicação de sanções administrativas pelo CADE sobre todos os entes políticos que naquele incorrerem.

De fato, já se viu que o próprio CADE esposa entendimento que não poderia adentrar na orbita de competência dos entes federativos, eis que seria sobrepor-se à própria Constituição, em última instancia, uma vez que por ela outorgadas as competências de cada ente. Por isso, permitir que uma autarquia federal seja capaz de ditar e até punir um ente político implicaria subverter a lógica do federalismo, pelo qual o Estado Federal, como centralizador da soberania, estaria submisso à autonomia de uma entidade administrativa, cuja criação só foi possibilidade por aquele, em primeira mão.

Não obstante o raciocínio acima, o qual compreende-se com fortes argumentos, é necessário levar em conta também, que permitir a edição de atos infralegais pelos entes políticos, contrários aos princípios basilares da Ordem Econômica e Social, sem qualquer vislumbre de punição a eles, é como criar uma imunidade político- administrativa pelo simples fato de comporem a República Federativa.

Nessa senda, o limitador da autonomia concedida aos Estados membros vem a ser a própria Constituição que aquela lhes confere, eis que dentro da hermenêutica constitucional, o Texto Maior de uma nação dever ser interpretado como um sistema unitário de normas, sem hierarquia entre elas (princípio da unidade constitucional); além disso, é de fornecer a máxima efetividade às normas que compõe o corpo constitucional, a fim de garantir a melhor realização do regramento ali previsto (princípio da máxima efetividade).[23]

Desse modo, se a própria Constituição diz que a lei reprimirá o abuso de poder econômico e demais práticas ilícitas a ele correlatas, e, como consequência emergiu o CADE, cujo fim último é proceder à prevenção e repressão de infrações contra a concorrência, a aplicação de sanções aos entes federativos por aquele não constituiria rebaixamento da autonomia desses, mas sim atendimento aos preceitos constitucionais e da legislação de regência, de hipótese de subsunção do fato gerador da atuação do CADE.

A fim de corroborar a postura ativa do CADE frente às situações de abuso de poder regulatório estatal, que impliquem, por via reflexa, infrações concorrenciais, exemplifica-se o recente pronunciamento exarado pelo Supremo Tribunal Federal, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 1.083.955[24], no qual atestada a peculiaridade técnica de que goza a referida autarquia federal para opinar, avaliar e decidir matérias atinentes à temática para a qual foi criada. Veja-se, in verbis, trecho elucidativo do acordão:

1. A capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos.

2. O dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras repousa na (i) falta de expertise e capacidade institucional de tribunais para decidir sobre intervenções regulatórias, que envolvem questões policêntricas e prognósticos especializados e (ii) possibilidade de a revisão judicial ensejar efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa.

3. A natureza prospectiva e multipolar das questões regulatórias se diferencia das demandas comumente enfrentadas pelo Judiciário, mercê da própria lógica inerente ao processo judicial.

4. A Administração Pública ostenta maior capacidade para avaliar elementos fáticos e econômicos ínsitos à regulação. Consoante o escólio doutrinário de Adrian Vermeule, o Judiciário não é a autoridade mais apta para decidir questões policêntricas de efeitos acentuadamente complexos (VERMEULE, Adrian. Judging under uncertainty: An institutional theory of legal interpretation. Cambridge: Harvard University Press, 2006, p. 248251).

5. A intervenção judicial desproporcional no âmbito regulatório pode ensejar consequências negativas às iniciativas da Administração Pública. Em perspectiva pragmática, a invasão judicial ao mérito administrativo pode comprometer a unidade e coerência da política regulatória, desaguando em uma paralisia de efeitos sistêmicos acentuadamente negativos.

6. A expertise técnica e a capacidade institucional do CADE em questões de regulação econômica demanda uma postura deferente do Poder Judiciário ao mérito das decisões proferidas pela Autarquia. O controle jurisdicional deve cingir-se ao exame da legalidade ou abusividade dos atos administrativos, consoante a firme jurisprudência desta Suprema Corte.

7. Os controles regulatórios, à luz do consequencialismo, são comumente dinâmicos e imprevisíveis. Consoante ressaltado por Cass Sustein, as normas regulatórias podem interagir de maneira surpreendente com o mercado, com outras normas e com outros problemas. consequências imprevistas são comuns. Por exemplo, a regulação de novos riscos pode exacerbar riscos antigos (...). As agências reguladoras estão muito melhor situadas do que os tribunais para entender e combater esses efeitos (SUSTEIN, Cass R., "Law and Administration after Chevron. Columbia Law Review, v. 90, n. 8, p. 2.071-2.120, 1990, p. 2.090).

8. A atividade regulatória difere substancialmente da prática jurisdicional, porquanto: a regulação tende a usar meios de controle ex ante (preventivos), enquanto processos judiciais realizam o controle ex post (dissuasivos); (...) a regulação tende a utilizar especialistas (...) para projetar e implementar regras, enquanto os litígios judiciais são dominados por generalistas (POSNER, Richard A. "Regulation (Agencies) versus Litigation (Courts): an analytical framework". In: KESSLER, Daniel P. (Org.), Regulation versus litigation: perspectives from economics and law, Chicago: The University of Chicago Press, 2011, p. 13).

(...)

10. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica CADE detém competência legalmente outorgada para verificar se a conduta de agentes econômicos gera efetivo prejuízo à livre concorrência, em materialização das infrações previstas na Lei 8.884/1994 (Lei Antitruste).

11. As sanções antitruste, aplicadas pelo CADE por força de ilicitude da conduta empresarial, dependem das consequências ou repercussões negativas no mercado analisado, sendo certo que a identificação de tais efeitos anticompetitivos reclama expertise, o que, na doutrina, significa que é possível que o controle da correção de uma avaliação antitruste ignore estas decisões preliminares da autoridade administrativa, gerando uma incoerência regulatória. Sob o pretexto de aplicação da legislação, os tribunais podem simplesmente desconsiderar estas complexidades que lhes são subjacentes e impor suas próprias opções (JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros SBDP, 2016, p. 152-155).(grifei)

Por isso, obstar o poder sancionador do CADE aos entes federativos implica, do ponto de vista ora defendido neste artigo, desacreditar o papel desta autarquia especializada justamente no combate às infrações à ordem econômica, cuja própria lei que a gerou lhe permite a punição de pessoas jurídica de direito público, sem ressalvas.

Por conseguinte, aonde o legislador não vedou, não cabe ao interprete fazê-lo, sob o risco de os destinatários da norma colocarem as vestes de legisladores positivos e negativos, quando a situação de infração lhes aprouver.

Sobre a autora
Sarah Freitas

Advogada. Pós Graduada pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Especialização lacto sensu) e Pós Graduada pela Universidade Cândido Mendes em Direito Administrativo. Pós Graduanda em Direito Civil pela Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais. Aprovada nos concursos de tecnico superior juridico da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e procurador da Camara Municipal de Nova Iguaçu.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Sarah. A (im)possibilidade de aplicação do poder sancionador do CADE aos entes federados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6883, 6 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97518. Acesso em: 22 nov. 2024.

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