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História do direito e direito civil

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Agenda 02/06/2022 às 19:35

Ao contrário do que postulavam os positivistas, o direito não é criador, mas sim criatura; não é responsável pela mudança libertadora, mas sim pela manutenção dos grilhões da dominação.

RESUMO: A História e o Direito estão intrinsecamente ligados. Este trabalho, com efeito, traz à tona discussões conceituais, fáticas, sob auspício descritivo-crítico, numa ênfase civilista. A multidisciplinaridade faz-se necessária em tempos hiperespecializados e de monoculares. Portanto, no presente artigo, a interdisciplinaridade permeia todas as suas palavras, como numa aventura no oceano do saber.

Palavras-chave: História; História do Direito; Direito; Direito Civil; Sociologia do Direito.


INTRODUÇÃO

A dignidade da pessoa humana é direito universal a todos seres humanos. É incabível, em tempos hodiernos, questionar a humanidade do(a) próximo(a), quiçá vilipendiar a existência alheia, seja por razões políticas, religiosas, étnicas e/ou sociais.

Neste trabalho, a História e o Direito Civil se encontram e resultam numa síntese crítico-descritiva, a qual parte de um esboço conceitual e termina numa ponderação sobre os caminhos legiferante-jurídicos cíveis no Brasil.

Diante a tantos ataques contemporâneos à República e aos direitos cidadãos conquistados pela história humana, faz-se dever do jurisconsulto delinear e denunciar os desmandos reacionários através do conhecimento, do aparato judicial, das instituições e da sociedade.

Eis, com efeito, uma pequena colaboração ao Estado Social Democrático de Direito e à nação brasileira. Sonho com uma cultura jurídico-institucional-social pátria efetivamente justa, equitativa, acolhedora, empática e feliz.

1. ANÁLISE CONCEITUAL DE HISTÓRIA DO DIREITO

1.1 O que é História?

O conceito de história é polissêmico e problemático, passou por mudanças substanciais durante a trajetória intelectual humana e até hoje é intensamente debatido.

Nas três últimas décadas do século XIX, a palavra História intitulava cursos, cadeiras e até seções em estabelecimentos de nível superior na África, América, Ásia, Europa e Oceania. O domínio assim designado se havia institucionalizado e especializado nas mais prestigiadas instâncias de produção do conhecimento daquele período. Parte considerável das entidades que abrigavam tais iniciativas (faculdades, écoles, collèges, escolas normais e universidades) explorava a História em suas funções utilitárias e/ou autotélicas.[3]

Durante o século XIX, a História, no sentido estrito de campo próprio de conhecimento acadêmico, encontrava-se diluída entre as mais diversificadas áreas do saber, isto é, incluída no multifacetado caleidoscópio universitário-escolar, geralmente em introduções amadoras dispostas em manuais escolares.

Com efeito, foi durante o Iluminismo, época em que a sistematização e a organização do conhecimento tornaram-se objetivos acadêmicos europeus, que o ensino de História começou a ser reconhecido como área específica científica, digna de ser particularmente estudada, sob método próprio.

Nas organizações superiores mais conhecidas (universidades), em geral, predominou a estrutura quadripartite medieval, constituída pelas Faculdades de Filosofia (ou Ciências, Letras ou Artes), Teologia, Direito e Medicina. Tal estrutura sobrevivia integralmente em alguns lugares. Em uns estava ausente o Direito, a Medicina ou a Teologia. Em outros, era ampliada pelas repartições da Filosofia em Ciências Naturais ou Ciências Físico-Matemáticas, pela introdução de uma Faculdade de Farmácia ou de Veterinária, a inclusão de um Museu, de Escolas de Artes ou de Línguas Orientais ou a interação de faculdades com um Instituto Histórico estatal ou privado. Isso valia para organizações predominantemente protestantes, católicas ou anglicanas. No lugar onde avançou a mão do imperialismo ou os ventos de um chamado processo civilizatório, esses mecanismos de reprodução do saber e poder funcionaram com tais configurações. (...) Os casos de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador devem ser entendidos à luz das orientações coloniais.[4]

Ressalte-se que todas as nações e, por conseguinte, diversos pensadores das mais variadas culturas desenvolveram contribuições notáveis à História. Ocorre que, devido à colonização europeia, os países ditos ocidentais seguiram a linha eurocêntrica de perquirição científica e, portanto, os métodos conceituais, analíticos e pedagógicos assumidos, chamados laconicamente como escola clássica de formação, são provenientes do Velho Mundo.

Nessa toada, faz-se mister analisar o sentido substancial do termo História, isto é, pode ser definido como área institucionalizada do saber científico.

Instituição (do latim Institutio) significa lei fundamental, regra ou preceito, ato de conferir um benefício, nomeação e estabelecimento (educacional, por exemplo). Institucionalizar é dar a qualquer coisa o caráter de instituição. O termo tem uso amplo, no Direito, como lei. Na Sociologia, é a norma que causa o fato ou ação social ou (de modo inverso) a norma estruturada pelo habitus. Na História, em geral, é uma ideia ou uma prática legitimada coletivamente ao longo do tempo. Os historiadores consultados para este trabalho se inclinaram a empregar o termo instituição nos dois primeiros conjuntos de significados. A História estava, assim, institucionalizada quando as expressões ...de História ou História de eram insertas em dispositivos jurídicos prescritivos (a exemplo de lei, estatuto, regimento, programa de ensino, regulamento de exames, diplomações, aquisições de graus) mesmo que tais dispositivos não estivessem efetivamente em cumprimento.[5]

Além da abordagem como prática legitimada coletivamente, o termo História pode ser entendido como disciplina escolar, como manual de ensino ou como revista especializada, com finalidades definidas de acordo com variáveis ético-morais.[6]

Com relação à epistemologia historiográfica, faz-se necessário pontuar que a dimensão histórica do sujeito e do objeto de estudo é variável influente na análise a ser produzida, isto é, tanto o(a) estudioso(a) quanto o objeto de estudo são vinculados ao contexto fático em que se situam.

Como a dimensão histórica é a condição de possibilidade da hermenêutica, o homem não estabelece sentido fora da história. Daí ser possível afirmar que somente no horizonte de sua vinculação com o mundo - tradição, cultura, história - é que ele é capaz de compreender alguma coisa. Por isso o homem não é o dono dos sentidos. Os seres humanos, portanto, compreendem a partir das possibilidades de sentido (pré)constituídas em uma determinada tradição. Daí por que, para Gadamer, muito mais do que juízos particulares, os pré-conceitos de um indivíduo representam a realidade histórica de seu ser, de sua pertença a uma tradição, a uma historicidade, o que significa uma maneira de se compreender para além da consciência de si mesmo.[7]

Portanto, História é um conceito polissemântico e deve ser definido pelos interlocutores de acordo com o contexto em que o vocábulo é utilizado.

1.2 O que é o Direito?

Para a fiel conceituação de Direitos Humanos, faz-se necessário discorrer sobre o sentido de Direito.

Ora, para tentar atingir essa pretensiosa proposta, faz-se necessário apoio em doutrina de estatura internacional. Nessa toada, com efeito, o professor Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, leciona que, in litteris:

Quanto ao Direito, poderemos conceituá-lo à luz do normativismo jurídico concreto de Miguel Reale como um conjunto de normas que, em determinada sociedade e num dado momento da sua história, mediante a interferência decisória do Poder, ordena os fatos sociais em conformidade com certos valores, entendendo-se tais normas não como simples proposições lógicas, abstratas ou formais, mas como substratos que dialeticamente integram e superam, que sintetizam, portanto, as tensões entre fatos e valores, os quais, nelas e por elas, tornam-se fatos e valores especificamente jurídicos[8]

Não obstante, Miguel Reale, um dos maiores jusfilósofos pátrios, entende que o Direito seria uma combinação de: vetor axiológico (valor), como parcela ético-moral; vetor normativo (norma), como a redação posta na lei, positivada; vetor fático seria a análise ontológica, do fato em si, in litteris:

A Teoria Tridimensional do Direito foi uma intuição da juventude. Intrigou-me o fato de grandes filósofos do direito italiano coincidirem na divisão da Filosofia do Direito, para fins pedagógicos, em três partes: uma destinada à teoria dos fenômenos jurídicos; outra cuidando dos interesses e valores que atuam na experiência jurídica e, finalmente, uma terceira relativa à norma jurídica[9]

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Outrossim, o famigerado pensador austríaco, Hans Kelsen, em sua vasta obra conceitua Direito numa perspectiva pretensamente pura. Desenvolve, pois, uma proposta ousada e, infelizmente, com consequências nefastas pelo século XX, em que há o rompimento das bases jusfilosóficas político-morais perante o conceito de Direito. Simplificando sua proposta, o Direito seria uma vertente dissociada da justiça, fato que foi reiteradamente usado como fundamento jurídico do nazifascismo.

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação[10]

Importante ressaltar que o tema não é exaurido por pensadores jurídicos. Ora, desde a antiguidade, o conceito de justiça é deliberado e, por conseguinte, o significado de Direito foi vastamente explorado.

Com efeito, o contemporâneo professor brasileiro Rafael Diehl leciona que, em toda história da humanidade, houve três grandes vertentes filosóficas sobre o Direito.

Assim, há três tipos de Direito:

Direito positivo - aquele que resulta da legislação humana, isto é, as leis e normas estabelecidas pelos homens.

Direito natural - aquele que provém da natureza no sentido filosófico, que expusemos anteriormente.

Direito divino - aquele que provém da formulação ou intervenção direta da divindade[11]

Quanto à linha jusnaturalista, faz-se necessário elencar as lições de Santo Tomás de Aquino em sua valorosa conceituação de Direito Positivo, de Direito Natural e de Direito Divino.

SOLUÇÃO Como já dissemos o direito ou o justo implica uma obra adequada a outra por algum modo de igualdade. Ora, de dois modos pode uma coisa ser adequada a um homem. - De um modo, pela natureza mesma da coisa; por exemplo, quando alguém dá tanto para receber tanto. E este se chama o direito natural. - De outro modo, uma coisa é adequada ou proporcionada a outra, em virtude de uma convenção ou de comum acordo; por exemplo, quando alguém se julga satisfeito se receber tanto. O que pode se dar de dois modos. De um modo, por uma convenção particular, como quando pessoas privadas firmam entre si um pacto. De outro modo, por convenção pública; por exemplo, quando todo o povo consente que uma coisa seja tida como que adequada e proporcionada a outra; ou quando o príncipe, que governa o povo e o representa, assim o ordena. E a este se chama direito positivo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO O natural a um ente de natureza imutável há de ser necessariamente tal, sempre e em toda parte. Ora, a natureza do homem é mutável. Por onde, o natural ao homem pode, às vezes, falhar. Assim, a igualdade natural exige que ao depositante lhe seja restituído o depósito. O que se deveria observar sempre se a natureza humana sempre fosse reta. Mas, como às vezes se dá que a vontade do homem é má, há certos casos em que um depósito não se deve restituir, afim de que um homem de vontade pervertida não venha a usar mal dele; por exemplo, se um furioso ou um inimigo do estado exigisse as armas que depositou.

RESPOSTA À SEGUNDA A vontade humana, em virtude de um consentimento comum, pode determinar o justo, em coisas que por si mesmas em nada repugnam à justiça natural. E a tal se aplica o direito positivo. Por isso, o Filósofo diz que o justo legal é o que, ao princípio, pode ser indiferentemente de um modo ou outro; mas, uma vez estabelecido, deve permanecer no que é. Mas, o que em si mesmo repugna ao direito natural não pode a vontade humana torná-lo justo. Por exemplo, se disser que é lícito furtar ou adulterar. Por isso, diz a Escritura. Ai dos que estabelecem leis iníquas.

RESPOSTA À TERCEIRA Chama-se direito divino o que foi divinamente promulgado. E ele abrange, em parte, o justo natural, mas, cuja justiça escapa aos homens; e, em parte, o justo por instituição divina. Por onde, também ao direito divino pode aplicar-se, como ao direito humano, a divisão referida. Assim, a lei divina ordena certas coisas, por serem boas e proíbe certas por serem más. Mas, outras são boas porque são ordenadas e más porque proibidas[12]

Ora, após toda essa profícua análise conceitual, faz-se mister delimitar como o vocábulo Direito será utilizado neste trabalho. Tratar-se-á de ordenações ou mandamentos, sejam descritivos, sejam deontológicos, podendo ser utilizado quanto ao conjunto ou quanto ao individual.

1.3 Sobre o que é História do Direito

Ora, numa análise filosófico-epistemológica da metodologia da ciência, faz-se mister estabelecer certos parâmetros, isto é, devem-se ser conceituados os vocábulos realismo, idealismo e realismo mitigado.

O termo realismo denota uma família de posições filosóficas que adotam a visão geral de que existe um mundo real, externo à mente humana, com o qual a mente humana pode entrar em contato, entendendo-o e representando-o, mesmo que parcialmente. A credibilidade do realismo deriva diretamente dos sucessos do método experimental ao revelar padrões de comportamento observacional que parecem ser mais bem-explicados com base em um ponto de vista realista. (...) O realismo científico é, portanto, pelo menos em parte, uma tese empírica.

(...)

A principal característica de um realismo crítico é o reconhecimento de que a mente humana está ativa no processo de percepção.

(...)

O idealismo é uma abordagem ao nosso conhecimento do mundo que admite que os objetos físicos existem no mundo, embora sustentando que podemos conhecer apenas como as coisas nos aparecem, ou são experimentadas por nós, não as coisas como são em si mesmas. A versão mais familiar dessa abordagem é a associada ao grande filósofo idealista alemão Immanuel Kant (1724-1804), que argumentou que devemos lidar com aparências ou representações, e não com coisas em si mesmas.[13]

Com efeito, há um ambiente acadêmico divergente, pujante e de intensa discussão em relação à delimitação conceitual de História do Direito.

Em geral, a história do direito é tomada como um conjunto de saberes com uma compleição bem definida e definível, como algo dado, como algo que talvez nem mereça uma discussão sob um crivo teórico-metodológico. Enfim, pode-se pensar que quando falamos de História do Direito já sabemos do que se trata.

De fato, o nosso senso comum teórico costuma definir rapidamente o que significa esta disciplina da seguinte forma: se não for uma ciência, um saber (no sentido de a disciplina da história do direito, ou a história do direito ensina que) certamente que ela vai significar o objeto deste saber, que é precisamente o passado jurídico. Ou, em outros termos: neste segundo sentido, a história do direito seria o conjunto de eventos e fatos que compõe o passado jurídico da humanidade, reconstituídos através de procedimentos controlados (se não mesmo objetivos), hauridos do ramo das ciências humanas (em verdade teoricamente muito tumultuoso) que é a ciência da história. A história do direito seria assim definida rápida e tranquilamente, pois parece haver pouco a ser discutido ante a certeza de que a história do direito é, por um lado, o ramo do conhecimento que se ocupa do passado jurídico, e, por outro, ela é, afinal, o conjunto dos eventos que compõe este passado.[14]

Resta claro que a análise acima é válida, porém não basta, não exaure o tema: a perspectiva de abordagem é definida pelos critérios e pelos metacritérios escolhidos pelo sujeito, sejam tácitos ou expressos, sejam conscientes ou não.

Uma reflexão mais detida, todavia, demonstraria que as coisas não se passam bem assim. Um filósofo idealista diria que os fatos e eventos não têm uma materialidade exterior ao pensamento, mas que existem somente ideias destes fatos. (...) A partir deste tipo de reflexão, poderíamos então dizer que o passado do direito (entendido como o conjunto de eventos concretos e materiais) não existe; o que existem são somente ideias ou representações sobre eles.

(...)

Por outro lado, se pensarmos no conceito de história do direito como saber (e não como objeto deste saber), e se o saber histórico, como dito acima, fosse o conjunto de fatos do passado humano, haveria ainda outra possibilidade teórica - sem precisar sermos necessariamente idealistas - que consistiria simplesmente em duvidar dos critérios tradicionais de escolha dos fatos que compõem o saber histórico jurídico.

Portanto, o conceito de História do Direito e do próprio Direito em si depende do contexto de inserção do sujeito, o qual analisa o objeto por meio de perspectivas históricas contemporâneas à abordagem. Passemos, pois, às correntes mais famosas dentro do enorme espectro doutrinário jurídico-histórico.

1.4 e quais as suas principais correntes

Numa perspectiva jusnatural, predominante durante a Idade Média, o Direito teria sentido teológico, principalmente durante o período escolástico.[15]

Ora, quanto à abordagem sustentada por partidários da Escola da Exegese do século XIX, a História do Direito deveria ser analisada sob perspectiva da Codificação, meramente da vontade expressa pelo legislador, estritamente positivista, como um simples e estrito compêndio de sistematizações jurídicas, de linhas doutrinárias e de decisões jurisprudenciais, num aspecto hermenêutico-gramatical.

Ao se abordar alguns aspectos desta ampla corrente de pensamento (sobretudo na forma como ela se manifestou no século XIX, quando nasceu e teve enorme influência), convém, antes de tudo, demarcar de modo claro que a maneira como o positivismo incidiu no âmbito filosófico, sociológico, jurídico e histórico não foi simétrico. Muito embora possa ser identificada uma matriz epistemológica comum (sobre a qual se refletirá logo adiante), o fato é que podemos assinalar a existência de um positivismo filosófico, um sociológico, um jurídico, outro histórico e assim por diante. Em outras palavras, apesar de haver entre estes ramos uma identidade epistemológica, há uma divergência de abordagem, e por isto existem especificidades próprias (mesmo no surgimento histórico das manifestações teóricas particulares) em cada um destes positivismos.

Talvez, em função disso, seja um tanto problemático falar-se em um positivismo puro. Pode-se dizer mais apropriadamente que existem positivismos diferentes: existe o positivismo de Augusto Comte (conhecido como o fundador dessa corrente de pensamento), que seria uma espécia de positivismo filosófico (do qual, de modo curioso, o chamado positivismo histórico, do qual adiante se comentará, irá se afastar em vários aspectos). Existe um positivismo sociológico, que é aquele de Émile Durkheim (que, também paradoxalmente, mais tarde inspirou grandemente alguns historiadores tremendamente antipositivistas, Marc Bloch). No âmbito jurídico, quando se fala em positivismo, pensa-se em primeiro lugar (não sem certa controvérsia, aliás) na Escola da Exegese francesa, integrante do movimento do positivismo jurídico, como consta na conhecida obra do filósofo italiano Norberto Bobbio. Mas, uma pesquisa acurada veria poucos reflexos do positivismo filosófico nesse âmbito jurídico - até porque esse positivismo jurídico é, em certa medida, até mesmo anterior ao chamado positivismo filosófico de Comte.[16]

Noutra toada, a Escola Histórica do Direito, liderada por Savigny, reconheceria fatores filosóficos, religiosos, sociológicos, políticos, culturais, entre outros. Ora, segundo o ilustre jurisconsulto, assim como a sociedade, o Direito seria vivo, mutável e modificável com o passar do tempo.[17]

Já a Escola Racionalista, por outro lado, entendia o Direito como vontade do julgador e fomentou a análise jurídica sob prisma das Ciências Naturais, sob estulta premissa de que a humanidade estaria num progresso, numa evolução, num desenvolvimento natural histórico do Direito[18], seja tácita ou expressa.[19]

Um último ponto deve ser frisado ao avaliar a abordagem de Kuhn às revoluções científicas. Que explicação pode ser oferecida para o progresso na teorização científica, em oposição à mudança na teorização científica? O termo progresso implica claramente um julgamento - que essas mudanças são para melhor. Então, uma revolução científica necessariamente leva a uma melhor compreensão da verdade sobre a natureza?[20]

A Escola Sociológica, por sua vez, aborda o Direito como fato social, isto é, em clara contraposição ao mero normativismo positivista de outrora.[21]

Na acepção hodierna, a corrente jurídica preponderante é a Escola Alternativa do Direito, na qual a implementação da justiça é priorizada, com clara perquirição de justiça social. Nesse viés, o Direito se torna um instrumento eficaz e, outrossim, fundamento argumentativo para busca de equidade coletiva.[22]

Portanto, o estudo jurídico pode ser abordado por diversos pontos de vista e, a depender da corrente escolhida, o conceito do vocábulo Direito é completamente ressignificado. Eis, com efeito, a necessidade de estudo sério e exaustivo da História do Direito, visto que é uma matéria literalmente fundamental, no tocante às premissas jurídicas utilizadas, seja na prática, seja na pesquisa acadêmica.

2. ANÁLISE HISTÓRICA DO DIREITO CIVIL

2.1 Breves apontamentos internacionais

É possível encontrar rastros de Direito em todas as civilizações humanas pela história, fato que teve grande contribuição de arqueólogos, de historiadores, de sociólogos e de juristas, desde o século XIX, até os dias hodiernos.

Os direitos sempre foram espelhos das épocas.

O Tigre e o Eufrates refletiram menos o povo mesopotâmico do que o baixo-relevo descoberto por Morgan, representando Shamash, o deus da justiça, entregando ao rei faustoso o código cuneiforme.

E o Timbre, com suas águas tintas do sangue romano, desde Rômulo, muito menos retratou o povo das sete colinas, do que a Lei das XII Tábuas.

Inspirados nas necessidades de cada tempo, eles não foram benignos nem draconianos: foram o espírito ático de Sólon e a alma acanhada de Dracon, traduzindo os merecimentos de suas épocas.

Desta forma, a força acessual dos direitos nunca procedeu do individualismo, pois o homem sempre foi um fio do tecido social, ou uma lasca da linha de cumieira das civilizações.

(...)

Essa contextura de regras, eivada mais de religiosidade do que laicismo, foi lenta e preocupada; não, porém, tão laboriosa como fora a locubração do primeiro machado de pedra, durante a qual muitas borbulhas de suor escorreram da testa curta do homem primitivo, sob o olhar bestializado dos seus irmão trogloditas.

(...)

Pelos direitos, os homens lutaram, morreram e sobreviveram.

Podemos estabelecer a seguinte esquematização para a sua gênese:

I - Legislação mosaica.

II - Código de Hamurabi.

III - Código de Manu.

IV - Lei das XII Tábuas.

V - O Alcorão.

VI - A Magna Carta.

VII - Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

VIII - Dos Delitos e das Penas.

XI - Diversos Direitos.

  1. Código de Napoleão
  2. Ordenações do Reino.
  3. Código Bustamante.
  4. A Consolidação e o Esboço, de Teixeira de Freitas.

X - Declaração Universal dos Direitos do Homem.[23]

Ora, como bem pontua o professor ALTAVILA (2013), o Direito espelha o momento de sua confecção, de sua propositura. A vida civil, com efeito, sempre foi prioridade nas regulamentações jurídico-sociais, isto é, os vínculos intersubjetivos diários, sejam comerciais, familiares ou das mais diversas naturezas sempre foram enfatizados nas mais variadas normas pela história humana, bem como as sanções penais.[24]

Nesse sentido, serão utilizados, na seguinte ordem, o Código de Hamurabi, o Código de Manu e a Lei das XII Tábuas para ilustrar as mais diversas vertentes e preocupações pretéritas de legisladores e, mormente, de sociedades anteriores às contemporâneas.

Capítulo VII

Art. L. Se um mercador emprestou grão com juros, ele tomará um gur de grão [...] como juros. Se ele emprestou prata com juros, ele tomará um siclo de prata com juros, de siclo e seis grãos.

Art. M. Se um homem tem uma dívida e não tem prata para restituir, mas tem grão, o mercador tomará com juros o correspondente em grão de acordo com as prescrições do rei. Se o mercador exigiu como juros mais do que [...] por um gur de grão ou de sicolo e 6 grãos por um siclo de prata, perderá tudo que emprestou.[25]

IV - Das dívidas

Art. 124. Quando o credor reclama com o rei a restituição de uma soma emprestada que o devedor retém, que o rei faça o devedor pagar, depois que o credor fornecer a prova da dívida.

Art. 125. Um credor, para forçar seu devedor a satisfazê-lo, pode recorrer aos diferentes meios em uso na cobrança de uma dívida.

Art. 126. Por meio conforme ao dever moral, por demanda, pela astúcia, pela ameaça e, enfim, pelas medidas violentas, pode um credor se fazer pagar a soma que lhe devem.

Art. 127. O credor que força seu devedor a lhe restituir o que lhe emprestou não deve ser censurado pelo rei por haver retomado seu bem.[26]

Tábua terceira

Dos direitos de crédito

1. Se o depositário, de má-fé, pratica alguma falta com relação ao depósito, que seja condenado em dobro;

2. Se alguém coloca seu dinheiro a juros superiores a um por cento ao ano, que seja condenado a devolver o quádruplo;

3. O estrangeiro jamais poderá adquirir bem algum por usucapião.[27]

Assim como os exemplos da Antiguidade, a Idade Moderna nos brinda com diversos arquétipos jurídicos. É necessário ressaltar como a organização ocidental passou por mudanças sensíveis desde o marco histórico de 1789 até os tempos hodiernos.

Ora, foi nesse ínterim em que os Estados Absolutistas colapsaram e deram lugar aos Estados de Direito, momento em que o povo passou a ser entendido como sujeito-legitimador-criador-destinatário de direitos, como cidadãos, não apenas mera fonte de custeio do aparato dominante;

O século XVIII, por diversas razões, é um século diferenciado. Por quê? Porque muitos processos históricos, cujas origens encontram-se no final da Idade Média e início da Idade Moderna (séculos XV e XVI), atingem nesse século sua culminância. Vejam-se, por exemplo, a Reforma e a Contrarreforma religiosas, e a destruição do Estado monarquista absoluto. Ao lado destes, o mais importante processo histórico que se origina é o que dá início ao processo de construção do homem comum como sujeito de direitos civis. Embora esse processo tenha seus primórdios nos séculos anteriores, será no século XVIII - com as Revoluções Americana (e a Declaração de 1776) e Francesa (e a Declaração de 1789, especialmente), e a Revolução Industrial - que de maneira decisiva deslanchar-se-á.[28]

Como a ênfase deste artigo é o Direito Civil, faz-se mister, ao menos, transcrever breves fragmentos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o qual serviu de paradigma jurídico-ideológico para os Estados burgueses modernos, inclusive o Brasil.

IV - A liberdade consiste em fazer tudo quanto não incomode o próximo; assim não tem limites senão nos que asseguram o gozo destes direitos. Estes limites não podem ser determinados senão pela lei.

(...)

X - Ninguém pode ser incomodado por causa das suas opiniões, mesmo religiosas, contanto que não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.

XI - A livre comunicação de pensamentos e de opinião é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, pois, falar, escrever, imprimir livremente, salvo quando tiver de responder do abuso desta liberdade nos casos previstos pela lei;

(...)

XVII - Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente reconhecida, o exige, evidentemente e sob a condição de uma justa e anterior indenização.[29]

Após essa breve apresentação e esboço do advento internacional do Direito Civil, o qual sob muitos aspectos se confunde com análise de Direitos Humanos, faz-se imperativo analisar o desenvolvimento jurídico cível brasileiro.

2.2 Esboço crítico da História do Direito Civil no Brasil

As relações civis brasileiras foram, durante o período colonial e imperial, reguladas mediante normas jurídicas lusitanas. Tardiamente, apenas em 1º de Janeiro de 1916 a Lei de número 3.071 foi promulgada, sob auspício da Primeira República (República Velha).

Ora, como o imaginário jurídico tradicional claramente traz traços positivistas. Nessa toada, os legisladores seguiram a tendência de codificação, inaugurada na Europa, popularizada pela Revolução Francesa e por sua Escola da Exegese Jurídica.[30]

Enganaram-se aqueles que creram na saciedade legislativa dos parlamentares nacionais. De 1916 até os dias hodiernos, são quase 15.000 leis editadas e sancionadas, uma média de quase 130 leis por ano.

Se a intensa quantidade legiferante impressiona, a qualidade não deixa a desejar, porém em um sentido negativo. O Código Civil de 1916 foi uma evidente tentativa de fossilização da posição de subordinação feminina ao marido, do alijamento de direitos homoafetivos e da descaracterização da cidadania infantil. Em suma, o antigo Código Civil é uma fonte de análise pertinente para constatarmos a cultura brasileira patrimonialista, machista, preconceituosa e sectarista, um retrato daquilo que o professor Sérgio Buarque de Holanda bem conceitua de Homem Cordial.[31]

Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:

II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.

(...)

Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal.

Compete-lhe:

IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal.

(...)

Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251):

I. Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235).

II. Alienar, ou gravar de onus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, nº II, III, VIII, 269, 275 e 310).

III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outra.

IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado.

V. Aceitar tutela, curatela ou outro munus público.

VI. Litigiar em juízo civil ou comercial, anão ser nos casos indicados nos arts. 248 e 251.

VII. Exercer profissão (art. 233, nº IV).

VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal.

IX. Acceitar mandato (art. 1.299).

(...)

Art. 251. À mulher compete a direção e a administração do casal, quando o marido:

I. Estiver em lugar remoto, ou não sabido.

II. Estiver em cárcere por mais de dois anos.

III. For judicialmente declarado interdito.[32]

Apenas com advento do século XXI, em 10 de janeiro de 2002, o Congresso Nacional entendeu por necessário atualizar as regras civis nacionais, resultando no famigerado Código Civil atual, lei de número 10.406. Esta, por sua vez, não solucionou a maioria das questões cidadãs contemporâneas e, outrossim, ignorou as novidades tecnológicas nascentes, todavia serviu de substrato jurídico para mudanças sensíveis que viriam a ser experienciadas nas décadas seguintes.

3. CONCLUSÃO

O imaginário e o simbolismo fundantes da cultura brasileira são permeados de perversidade social cotidiana, mormente na produção legiferante e/ou desenvolvimento jurisprudencial pátrios.

Espero que, a partir da intensa deliberação e pesquisa acadêmica, os estudantes e os meios de comunicação possam enfatizar a necessidade diária de reafirmação cidadã, de busca cotidiana pela implementação de Direitos Humanos e de criticidade quanto ao papel do Direito na sociedade.

Ao contrário do que postulavam os positivistas, o Direito não é criador, mas sim criatura; não é responsável pela mudança libertadora, mas sim pela manutenção dos grilhões da dominação; não se legitima, quiçá se exaure em si, mas é regido pelo binômio fundamento-finalidade, o qual se alicerça na sociologia, na filosofia, na antropologia, na história e na cultura.

O Direito não pode ser alheio ao mundo, como numa espécie de esquizofrenia jurídica, muito menos deve ser instrumento de perpetuação de domínio social elitista e/ou sectarista. O Brasil é para todos e para todas. Almejamos uma pátria amada, não armada de conflitos, de ódio e/ou de sexismo.

Sobre o autor
Fernando Luz Sinimbu Portugal

Mestre em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2023-2024). Graduado em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015); especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017); especialista em Direito Constitucional (2021); Direito Administrativo (2021); Direito Civil e Direito Processual Civil (2021) e em Ciências Criminais (2021); em Direitos Humanos (2023) e em Ensino à Distância (2023) no Centro Universitário União das Américas - Uniamérica; graduado em Teologia (2022), em História (2023) e em Administração (2023) na Universidade Estácio de Sá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTUGAL, Fernando Luz Sinimbu. História do direito e direito civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6910, 2 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97746. Acesso em: 21 nov. 2024.

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